quarta-feira, 8 de abril de 2015

SANTE SCALDAFERRI

Arte pictórica

 O pintor baiano da crítica social

 

Por Luiz Carlos Facó


Um escritor arremata toda sua genialidade numa única frase. Um escultor, ao escolher a pedra que irá burilar. O pintor, ao imprimir o seu primeiro traço, ao dar a sua primeira pincelada.
Esse é o caso de Sante Scaldaferri. Desde que empunhou os pinceis e paletas, preenchendo a planura das telas vazias com matizes harmônicos, revelou-se um gênio.



Eu o conheço desde o final dos idos da década de cinquenta, frequentadores que éramos da Gruta de Lurdes, o famoso café de Bernadete, na Rua Chile, ponto de encontro de políticos, escritores, artistas e da elite intelectual baiana. E, desde essa época, já me enamorara pelo seu trabalho. Tanto assim, que a primeira boa pintura que adquiri, com grande sacrifício, na Galeria Oxumaré, na fugaz esperança de formar uma boa pinacoteca, foi um quadro de sua lavra: um saveiro pintado a guache, até hoje acarinhado pelos meus olhos e pelo meu coração.


Como eu gostaria, nesta hora em que falo de um dos maiores artistas brasileiros, ser um conhecedor profundo da arte pictórica. Opinaria, por certo, com mais desenvoltura, com firmeza. Mas, após breve reflexão, concluí que, para ocupar-me de uma obra genial, de Sante Scaldaferri, eu não careço de qualificações melhores do que aquelas que me são fornecidas pela minha capacidade de apreciar o belo e a susceptibilidade que possuo para descobrir a força poderosa que emana de um artista. Atrevo-me, portanto, a invadir a seara alheia, sem remorsos, na certeza de que meu juízo terá o endosso dos expertos.


Na literatura, concordo com os mais diversos autores que admitem Jorge Amado com o escritor que mais compreendeu a alma da gente baiana. Na pintura, concedo a Sante essa virtude. Ninguém como ele soube captar e transmitir com tamanha lucidez, crueza, força e poesia a inteireza do nosso arquétipo. Numa linguagem própria, sem remoques. Por isso, a obra de ambos é tão ao gosto do povo. Temperadas que são com os condimentos que fazem parte do seu dia a dia.


Li, algures, escrito pelo próprio Sante: “Dentro da minha pintura, existem vários segmentos: o da arte popular, o da política, das fraquezas do caráter humano, enfim, das alegrias, dos pecados. É uma pintura de amor; não uma pintura de agressão.” Econômico e modesto, ao excepcional criador faltou acrescentar que ela é uma pintura impactante, de rara e poderosa beleza, sensualidade, jocosidade, remetendo-nos à reflexão, porquanto ela é também denunciadora das chagas sociais. A principal delas acerca das desigualdades que permeiam a sociedade, simbolizada nos seus ex-votos, nos seus gordos, nos acompanhantes das procissões, nos seus beatos. Embora pareça segmentada, ela não o é, pois possui a unidade de linguagem própria, revelada em cada um dos seus traços, na harmonia das suas cores, nos temas que abraça e desenvolve. Com parecença regional, porém ultrapassando os confins da universalidade.


Dizer mais da pintura de Sante Scaldaferri e dele próprio é qualificá-lo como um mestre no seu ofício. Senhor de todas as técnicas. Com exuberância da encuástica que ele pratica religiosamente, técnica rara entre seus pares. É dizer que na sua arte convivem, indissolúveis, a ternura, o lirismo, a irreverência e até o deboche. É, enfim, cognominá-lo o pintor da crítica social.


Desconheço qualquer outro, pelo menos na minha geração, que tenha impregnado em suas obras tanta religiosidade e cultura popular como Sante Scaldaferri. Tampouco que tenha conservado posições tão definidas quanto ele. Sem fazer concessões, por mínimas que sejam, sem abdicar dos seus postulados, como também por imprimir nas suas figuras, propositadamente grotescas, deformadas, obesas, muitas vezes excessivamente maquiadas, outras tantas, a aura do encantamento, uma dimensão lírica sem precedentes, um rigor estético incomum.


Outrora, diziam-no um pintor acadêmico. Outros o qualificavam como moderno. Eu sempre o reputei à frente dos demais, um gênio contemporâneo.

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