Arte pictórica
O pintor
baiano da crítica social
Por Luiz
Carlos Facó
Um escritor arremata toda sua
genialidade numa única frase. Um escultor, ao escolher a pedra que irá burilar.
O pintor, ao imprimir o seu primeiro traço, ao dar a sua primeira pincelada.
Esse é o
caso de Sante Scaldaferri. Desde que empunhou os pinceis e paletas, preenchendo
a planura das telas vazias com matizes harmônicos, revelou-se um gênio.
Eu o conheço
desde o final dos idos da década de cinquenta, frequentadores que éramos da
Gruta de Lurdes, o famoso café de Bernadete, na Rua Chile, ponto de encontro de
políticos, escritores, artistas e da elite intelectual baiana. E, desde essa
época, já me enamorara pelo seu trabalho. Tanto assim, que a primeira boa
pintura que adquiri, com grande sacrifício, na Galeria Oxumaré, na fugaz
esperança de formar uma boa pinacoteca, foi um quadro de sua lavra: um saveiro
pintado a guache, até hoje acarinhado pelos meus olhos e pelo meu coração.
Como eu
gostaria, nesta hora em que falo de um dos maiores artistas brasileiros, ser um
conhecedor profundo da arte pictórica. Opinaria, por certo, com mais
desenvoltura, com firmeza. Mas, após breve reflexão, concluí que, para
ocupar-me de uma obra genial, de Sante Scaldaferri, eu não careço de
qualificações melhores do que aquelas que me são fornecidas pela minha
capacidade de apreciar o belo e a susceptibilidade que possuo para descobrir a
força poderosa que emana de um artista. Atrevo-me, portanto, a invadir a seara
alheia, sem remorsos, na certeza de que meu juízo terá o endosso dos expertos.
Na
literatura, concordo com os mais diversos autores que admitem Jorge Amado com o
escritor que mais compreendeu a alma da gente baiana. Na pintura, concedo a
Sante essa virtude. Ninguém como ele soube captar e transmitir com tamanha
lucidez, crueza, força e poesia a inteireza do nosso arquétipo. Numa linguagem
própria, sem remoques. Por isso, a obra de ambos é tão ao gosto do povo.
Temperadas que são com os condimentos que fazem parte do seu dia a dia.
Li, algures,
escrito pelo próprio Sante: “Dentro da
minha pintura, existem vários segmentos: o da arte popular, o da política, das
fraquezas do caráter humano, enfim, das alegrias, dos pecados. É uma pintura de
amor; não uma pintura de agressão.” Econômico e modesto, ao excepcional
criador faltou acrescentar que ela é uma pintura impactante, de rara e poderosa
beleza, sensualidade, jocosidade, remetendo-nos à reflexão, porquanto ela é
também denunciadora das chagas sociais. A principal delas acerca das
desigualdades que permeiam a sociedade, simbolizada nos seus ex-votos, nos seus
gordos, nos acompanhantes das procissões, nos seus beatos. Embora pareça
segmentada, ela não o é, pois possui a unidade de linguagem própria, revelada
em cada um dos seus traços, na harmonia das suas cores, nos temas que abraça e
desenvolve. Com parecença regional, porém ultrapassando os confins da
universalidade.
Dizer mais
da pintura de Sante Scaldaferri e dele próprio é qualificá-lo como um mestre no
seu ofício. Senhor de todas as técnicas. Com exuberância da encuástica que ele
pratica religiosamente, técnica rara entre seus pares. É dizer que na sua arte
convivem, indissolúveis, a ternura, o lirismo, a irreverência e até o deboche.
É, enfim, cognominá-lo o pintor da crítica social.
Desconheço
qualquer outro, pelo menos na minha geração, que tenha impregnado em suas obras
tanta religiosidade e cultura popular como Sante Scaldaferri. Tampouco que
tenha conservado posições tão definidas quanto ele. Sem fazer concessões, por
mínimas que sejam, sem abdicar dos seus postulados, como também por imprimir
nas suas figuras, propositadamente grotescas, deformadas, obesas, muitas vezes
excessivamente maquiadas, outras tantas, a aura do encantamento, uma dimensão
lírica sem precedentes, um rigor estético incomum.
Outrora,
diziam-no um pintor acadêmico. Outros o qualificavam como moderno. Eu sempre o
reputei à frente dos demais, um gênio contemporâneo.
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