Literatura/cultura
O agitador que mudou o conceito de cultura no país é louvado 70 anos
após sua morte.
CAMILA MORAES, São Paulo, 9 MAY 2015.
El País – O JORNAL GLOBAL
O escritor Mário de Andrade.
Um país é
especialmente contraditório quando dá as costas para aqueles que mais o
defendem. Mário de Andrade fez muito pelo Brasil, mas foram necessárias
sete décadas de ausência sua para que começássemos a fazer jus à sua suculenta
obra artística e ao seu valioso legado de gestor cultural, ainda tão pouco
analisado. Esse lapso por fim se vê ameaçado em 2015, ano em que se celebram os
70 anos de sua morte, com uma série de homenagens e conteúdos que pretendem
jogar luz sobre sua marca modernista e também sobre sua trajetória pessoal.
A agenda é
farta e já foi posta em marcha. Nesse novo amanhecer marioandradista,
surgem ciclos de discussões e debates, como o que está sendo promovido
pelo Sesc-SP, a homenagem que será prestada em julho pela Festa Literária
de Paraty (Flip) e a reabertura da Casa Mário de Andrade, em São Paulo, no
próximo dia 23. Tudo para encaminhar a colocação de sua obra em domínio público,
a partir de 1 de janeiro de 2016, quando de Pauliceia desvairada (1922)
a Macunaíma (1928), passando por seu debut literário, Há
uma gota de sangue em cada poema (1917), todos nos tornaremos
herdeiros de suas valiosas heranças.
Mário de Andrade tinha uns
ombros muito largos, uns óculos muito espessos, um riso muito aberto, uma fala
muito caipira, mas nada descansada, tudo nele respirava irradiação, dinamismo,
exuberância, alegria de viver. Estava trabalhado fisicamente para agitador
Alceu
Amoroso Lima, em 'Companheiros de viagem'
Nessa
toada, como é de se esperar, acontece uma série de lançamentos literários.
Entre eles, já está Eu sou trezentos (Edições de Janeiro,
2015), a primeira biografia de Mário de Andrade, cujo autor, o filósofo carioca
Eduardo Jardim, prefere evitar essa classificação. “Acho que ‘biografia’ guarda
um sentido mais jornalístico. No livro, o que trato de fazer é tecer vínculos
entre a vida e a obra dele, sob um aspecto ensaístico. Mas sigo uma ordem
cronológica, do nascimento à morte”, conta. Magnífico, já que entre a vida de
Mário de Andrade e sua morte, aos 52 anos, por causa de um infarte, há muito
mais coisas do que se pode imaginar.
Mário nasceu e viveu em São Paulo, na Barra Funda,
e amou sua cidade profundamente. Nela, entre as paredes do tradicional Theatro
Municipal, apresentou ideias que fizeram rachar as estruturas mais sólidas do
conservadorismo paulistano e brasileiro, quando lá instalou a Semana de 22, com
uma série de apresentações artísticas e debates que plantaram o modernismo na
mente do país. Não à toa, ele é considerado o “papa do modernismo”: além de ser
um dos cabeças do evento, leu poesias suas modernistas, contra tomates e ovos que
foram atirados pelos atônitos em sua cabeça, e defendeu que o país tinha que
ingressar no “concerto das nações cultas”, sob uma perspectiva universalista
que era gritante naquele então.
Que aproveitem, aqueles que vivem em São Paulo, a reinauguração da Oficina
Cultural Casa Mário de Andrade, à rua Lopez Chaves, número 546, na Barra Funda.
A residência de quase toda a vida do escritor, que há anos funciona como
oficina cultural com foco em literatura, foi restaurada e agora dará lugar a
uma exposição permanente de objetos pessoais de Mário, ao lado das atividades
de formação que já aconteciam por ali.
A reabertura acontece no próximo dia 23, com a exposição sob curadoria
do cineasta, professor e ex-secretário de cultura da cidade de São Paulo Carlos
Augusto Calil, admirador e estudioso de Mário de Andrade, e com a presença virtual do
dono da casa. Explica-se: Mário será representado pelo ator Pascoal da
Conceição, que, graças inclusive à sua semelhança física, o interpretou na
minissérie, e em outras ocasiões.
O próprio Mário, portanto, dará as boas vindas aos visitantes, deixando
para os que vierem depois uma estátua de metal de seis metros de altura com o
seu perfil. Além, claro, de uma programação permanente de estudo e criação de
gêneros literários, jornalismo e crítica, somados a palestras, ciclos de
depoimentos de escritores, leituras dramáticas, recitais, mostras de filmes,
lançamentos de livros e saraus.
Era um
inquieto, artista vasto, íntimo da música como da literatura, e, sobretudo, um
embaixador natural de Cultura. Sua recém-nascida biografia começa com uma
citação de Alceu Amoroso Lima, tirada do livro Companheiros de viagem:
“Mário de Andrade tinha ‘o tipo físico de um índio espadaúdo. Uma boca enorme,
cheia de dentes, que os caricaturistas aproveitavam com razão como foco central
de sua fisionomia. Umas mãos enormes como patas de urso. Uns ombros muito
largos, uns óculos muito espessos, um riso muito aberto, uma fala muito
caipira, mas nada descansada, tudo nele respirava irradiação, dinamismo,
exuberância, alegria de viver. Estava trabalhado fisicamente para agitador’”. E
agitador ele era de fato, preocupado que foi com a arte coletiva, a identidade
cultural brasileira e a cultura popular do país.
Nos anos
30, um período conturbado politicamente no país, sua grande preocupação foi
definir a vocação social da arte. “Isso se concretiza quando ele é convidado
para ser diretor do Departamento de Cultura de São Paulo. Lá, ele fez um
trabalho ímpar, muito diferente de tudo o que havia na época, com o intuito de
por em contato vários segmentos da sociedade. Era para ele um projeto de vida e
do próprio modernismo”, conta Eduardo Jardim.
Sabe-se,
por exemplo, que quando chefiava o Departamento de Cultura, Mário de Andrade
criou um projeto de centros culturais para crianças e jovens que promovessem a
cultura em ambientes de ampla convivência social. Eram “sesquinhos”, na
definição do diretor do Sesc-SP, Danilo Miranda. “Ele chegou a desenhar um
espaço, uma planta de um centro infantil de iniciação à vida, cultura,
atividade física, alimentação – tudo ali, como hoje no Sesc”, revela. Para
Danilo, Mário teve uma “presença luminar” como pessoa e, como modernista,
revolucionou a cultura no país. Fato cultural mais grandioso no Brasil, para
ele, não tem: “A Semana de 22 é a independência do Brasil do ponto de vista da
arte, da cultura, do pensamento”.
Estamos nos distanciando cada
vez mais de um certo Brasil que, por falta de termo melhor, chamemos de
‘popular’. Faz falta o pensamento de Mário de Andrade para entender o país e –
digo mais – colocá-lo num lugar melhor
Antonio
Nóbrega
Com essa
postura inquieta e agregadora, Mário de Andrade mantém até hoje o talento para
inspirar discípulos, entre os quais se destaca Antonio Nóbrega, um dos
maiores criadores e pensadores brasileiros atuais a se preocupar com a cultura
popular e a identidade nacional do país. Para ele, “figuras como Mário não
são simplesmente para serem lidas, estudadas, admiradas e lembradas, mas para
serem colocadas em prática”. “Estamos nos distanciando cada vez mais de um
certo Brasil que, por falta de termo melhor, chamemos de ‘popular’. É ainda
muito mal dimensionado e tem se tornado cada vez mais desconhecido. Faz falta o
pensamento de Mário de Andrade para entender o país e – digo mais – colocá-lo
num lugar melhor. Não só de sua obra artística, mas seu lado de agitador
cultural, de homem das ideias”, prega.
O motor das
contradições
Pouco do que se sabe de Mário Andrade confirma que ele fosse
homossexual, mas, como se isso importasse, várias pessoas de seu círculo de
amizades se preocuparam em alimentar essa ideia ao censurar certas cartas que
trocaram com ele
O
personagem caricaturesco descrito por Alceu Amoroso Lima convivia com uma
sentença permanente de contradição, inerente ao seu caráter, que no entanto
permitiu que ele seguisse adiante com seus projetos artísticos-políticos e
criativos-intelectuais, como defende Eduardo Jardim em seu livro. “Ele sempre
foi um homem dividido entre forças em confronto. Dizia que era dotado de uma
‘bivitalidade’, que se traduzia em forças que não conviviam bem dentro dele.
Tinha um lado exigente e outro sensual”, diz o especialista em modernismo
brasileiro – que publicou também Mário de Andrade: A morte do poeta (Record)
e Limites do moderno: o pensamento estético de Mário de Andrade (Relume
Dumará). Graças a isso, acredita Jardim, ele seguiu ativo.
Mas, na
intimidade, as coisas não eram fáceis. Desse seu chamado constante à
sensualidade, nasce um tema que pautou o tabu, em sua vida pessoal, ao redor da
homossexualidade. Pouco do que se sabe de Mário Andrade confirma que ele fosse homossexual,
mas, como se isso importasse, várias pessoas de seu círculo de amizades se
preocuparam em alimentar essa ideia ao censurar certas cartas que trocaram com
ele. O que Jardim faz a respeito, na qualidade de biógrafo, é pescar o assunto
dentro de sua obra: “Existe um poema de 1923 que faz menção à figura de um
travesti no Carnaval do Rio de Janeiro. E no livro Contos Novos,
tem um relato que se chama Frederico Paciência, sobre um romance
impossível entre dois rapazes. Nesse texto, que demonstra a censura da época,
ele aborda a hipocrisia da sociedade”.
Outro
assunto interdito em seu passado é uma possível inclinação antissemita, que se
deixa entrever na correspondência dele com os pintores Di Cavalcanti e
Lasar Segall, companheiros do modernismo. Sobre esse aspecto, seu biógrafo se
mostra um pouco mais cético: “Esse é um capítulo infeliz da história dele.
Talvez tenha sido uma coisa da época, mas chama a atenção que ele não tenha
sido mais crítico. Achei que era preciso falar disso”.
Mário em
Paraty
A Flip
promete falar de tudo em Mário, sem tabus. Segundo o curador do evento, Paulo
Werneck, a ideia da homenagem que será prestada não é oferecer a Mário de
Andrade um “medalhão” ou encará-lo como uma “múmia literária”, mas “discutir o
Mário que está presente hoje”. “Há aspectos mais analisados e outros menos
compreendidos de sua obra, mas que hoje começam a ser revisitados. Seu trabalho
repercute muito no presente, e acho que o próprio Mário viveria mais à vontade
hoje que na sua época”, opina.
Seu trabalho repercute muito
no presente e acho que o próprio Mário viveria mais à vontade hoje que na
sua época
Paulo
Werneck, curador da Flip
Para
entender Mário de Andrade, há atualmente disponíveis muitos livros que compilam
as cartas trocadas pelo escritor com os amigos modernistas e cúmplices
literários como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Foram editados a
partir dos anos 90 e não só jogam luz sobre sua obra, como são parte central
dela.
Mas em
Paraty haverá um palco de novidades. Seguidores de sua obra aguardam uma versão
em HQ de Macunaíma e um volume de contos e crônicas, que serão
publicados pela Nova Fronteira – editora que detém (até o momento) os direitos
de sua obra. Outra novidade é mais uma biografia: As vidas de Mário de
Andrade, escrita pelo jornalista Jason Tércio com base em cartas inéditas.
Sobre seu legado de gestor, o anúncio de um título apelidado de “Literatura
burocrática de Mário de Andrade” é especialmente animador, reunindo relatórios
e projetos de lei criados por ele, que são referência para as políticas
culturais e de patrimônio histórico Brasil afora.
Werneck adianta
também que os entusiastas da Flip podem contar com algumas mesas que falarão
diretamente sobre ele e outras que projetarão seu legado a partir de diálogos
com escritores contemporâneos. “Uma das mesas abordará a literatura de viagem,
que aparece na obra dele, por exemplo, com Turista aprendiz, em que
ele relata sua expedição pela Amazônia e pelo nordeste brasileiro”, adianta o
curador. Estímulo, pois, não faltará aos que encarem a descoberta desse tesouro
revolucionário que é Mário de Andrade.
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