sexta-feira, 8 de maio de 2015

LIBERTEMOS O DALÍ QUE VIVE EM NÓS

Publicado em artes e ideias por Bianca Ferreira,
em obviusmagazine


”21 anos, ex-estudante de medicina veterinária, atual estudante de artes visuais.
Se pudesse moraria em cada país do mundo, conheceria cada cultura, cada religião, cada povo. Sonha poder viajar e trabalhar ao mesmo tempo, retratar artisticamente as pessoas que encontra e que marcam sua vida, e deixar um pouco dela mesma em cada um que conhece.
Fala e escreve muito sobre direitos humanos. Sempre quis dar aula e trazer às pessoas uma perspectiva diferente sobre a arte, história, realidade. É perdidamente apaixonada pela cultura ameríndia.
Em uma frase: "Todas as coisas estão ligadas, como o sangue que une uma família".


Seja mais. Sinta mais. Respire. Somos humanos cheios de cores, cheios de dores, cheios de amores. Vamos nos entregar aos desejos e aos sonhos. Vamos aceitar nossos defeitos, vamos aceitar-nos uns aos outros. Vamos dar uma trégua à nossa imperfeição e deixá-la fazer parte de nós. Vamos viver!
  


Ora, pois, você deve estar pensando, essa é uma tela de Salvador Dalí? E a resposta é: não. Esta é uma imagem do Projeto Brainbows, da Universidade de Havard. Mais especificamente, esta é a imagem do cérebro de um rato com apenas três proteínas fluorescentes se recombinando diversas vezes, produzindo mais de 90 tons de cores. Então agora você deve estar pensando: mas o que isto tem a ver com Salvador Dalí afinal? Ora, nada. E ao mesmo tempo, tudo!
Seria humanamente impossível dizer em um post tudo o que precisa ser dito sobre Salvador Dalí. E a menos que eu queira fazer os leitores dormirem e babarem em cima do teclado, é preciso desenvolver uma maneira pouco comum de falar sobre arte. Voltarei a falar sobre Dali e seu método outras vezes neste blog, por isso, vamos com calma.

Resumidamente, a história da vida de Dalí é a seguinte: nascido na Catalunha, Espanha, se mostrou excêntrico e narcisista desde criança. Estudou na Escola Belas Artes São Fernando em Madri, antes de ser expulso por fazer a afirmativa peculiar de que ninguém lá era suficientemente bom para avalia-lo. Morando na França conheceu o movimento surrealista, do qual foi expulso por não compartilhar da mesma ideologia política que a maioria dos artistas.
Depois de envolvimentos homossexuais, apaixonou-se por uma imigrante russa conhecida como Gála Éluard, na época esposa do poeta Paul Éluard. Em 1934, Gála casou-se com Salvador Dalí e se tornou sua musa e inspiração. O pai de Dalí, por fim, não aprovava sua relação amorosa com Gála, dez anos mais velha que ele e então divorciada. O rompimento da relação com o pai produziu em Dalí uma obsessão pela pintura, como se esta fosse para ele uma válvula de escape. Segue uma declaração de Dalí sobre sua amada:
“Gala trouxe-me, no verdadeiro sentido da palavra, a ordem que faltava à minha vida. Eu existia apenas num saco cheio de buracos, mole e delicado, sempre à procura de uma muleta. Ao juntar-me a Gala, encontrei a minha coluna vertebral e, ao fazer amor com ela, preenchi a minha pele.”
Sei que as meninas se derreteram com tanta eloquência. Agora, mais do que antes, você que esta a ler esta passagem deve se perguntar: que Dalí é este que eu, a autora, estou incentivando as pessoas a libertarem? Um excêntrico prepotente que oscila entre sua sexualidade e expõe a público suas frustrações? E de novo a resposta é: não. Eu vou chegar lá, meu querido leitor apressado. Agora que conhecemos a história deste ser humano peculiar, vamos entendê-lo.
Dalí soube mostrar uma perspectiva artística desde jovem quando produziu suas primeiras obras, como por exemplo, “Moça à Janela”. Mas foi o seu amadurecimento como pintor, depois de ter conhecido Gála, que expôs toda sua capacidade. Um exemplo disso é sua obra “O Grande Masturbador”. É isso mesmo que você leu. Disponibilizei-a para que você não perca o foco do texto ao procura-la na internet devido à curiosidade:


A interpretação desta obra é interessante graças à quantidade de informações que Dalí coloca em uma só pintura. São obras desse tipo que fazem as pessoas classificarem os artistas como “possuidores de um parafuso a menos”. Contudo, é o entendimento de telas assim que deixa evidente como esses mesmos artistas, tal qual Salvador Dalí, têm na verdade mais parafusos que a maioria. Preciso destacar que muitos estudiosos da área de psicologia fazem paralelos entre as “estranhezas” da obra de Dalí e a psicologia de Freud. Contudo, deixo isso para os entendidos e introduzo aqui apenas os conhecimentos artísticos.
A figura principal que ocupa a maioria da tela e que se assemelha a um rosto virado para baixo, apoiado no chão pelo nariz, é uma figura que está presente em muitas de suas obras, como você pode ver em “A Persistência da Memória” que vem a seguir. Estudiosos acreditam que seja uma referência a uma formação rochosa de Créus, no litoral da Catalunha. Ao mesmo tempo, de olhos fechados e cabelo dividido ao meio, parece também alguém que sonha. A mulher loira que na parte superior da tela acredita-se que seja Gála, musa inspiradora de Dalí e que pode ser vista também em muitas outras obras.
Este quadro, pintado em 1929, pode ser a representação que Dalí fez para o momento em que conheceu Gála. Momento esse que muitos acreditam ter sido a primeira vez na vida em que ele se sentiu atraído por uma mulher. Em uma de suas declarações Dalí conta como falhou diversas vezes em atingir o orgasmo numa relação sexual, tendo que fazê-lo depois através da masturbação. Conhecer Gála foi para ele um momento único, onde esse desejo tão intenso marcou sua vida profundamente, e fazia parte do estilo de Dalí trazer esses fatos pessoais ao público através das imagens.
Elementos como o gafanhoto e as formigas também estão sempre presentes em suas obras, ligados ao medo profundo que o autor tinha dos insetos. Também podem ser vistos na obra “Persistência da Memória” sobre o relógio menor, como se estivessem a devorá-lo. Plumas coloridas e conchas também amedrontaram o autor durante a sua infância. Dalí mostra-nos então sua visão confusa e desconexa sobre o sexo. Ao mesmo tempo em que isso era pra ele instigante, claro, também era perturbador. A lembrança de como seu pai o havia ensinado sexualidade, mostrando-lhe um livro de doenças venéreas, trazia a Dalí uma expectativa que se misturava ao desejo e ao nojo. Subsequente a isso, podemos ver ainda no inferior da tela um homem abraçando uma rocha com formato de um corpo feminino. A frieza da rocha num corpo de mulher talvez nos exemplifique a contradição mental de Dalí, que ao mesmo tempo em que se sentia tão seduzido por uma mulher, pensava que ela talvez jamais fosse capaz de leva-lo ao orgasmo.


Temos ainda diversas outras referências das quais eu poderia escrever páginas e páginas, mas isso deixaria o post chato pra caramba e ninguém ia terminar de lê-lo. Falando, portanto, brevemente, o gafanhoto é também um animal bissexual, e que tem a cabeça arrancada pela fêmea após o coito. Sob o topo da imagem que se assemelha a uma cabeça existe um anzol, dotado de uma conotação um tanto fálica. Um pouco mais acima, pedras, uma rolha e uma concha do mar equilibram-se sobre todas as controvérsias de Dalí. No canto inferior esquerdo, um homem sozinho se afasta no horizonte. O que tudo isso significa eu deixo a seu critério dessa vez. Interprete como a obra faz você se sentir, isso é arte.
E o que era uma imagem sem sentido, tornou-se agora um conjunto de nuances, algumas discretas, outras expostas, algumas sutis, outras evidentes. O fato é que Dalí consegue dar realidade aos sonhos que invadem sua mente. De alguma maneira, toda sua loucura invade as formas e as cores, e o que antes parecia lunático desfere sobre nós um golpe de lucidez. Apesar de egocêntrico, narcisista e prepotente, é essa confiança que Dalí deposita em seu potencial e em si mesmo que fez dele o gênio. Salvador Dalí não buscou exaltar suas qualidades, não tentou convencer ninguém de que era único. Ele acreditou nisso desde o começo, e julgando até mesmo suas frustrações e loucuras dignas de retrato, produziu obras únicas e de uma complexidade chocante.
Eis que se revela então o verdadeiro intuito deste texto. Salvador Dalí, dotado de uma mente que era ao mesmo tempo brilhante e perturbada, genial e paranoica. Uma mente que poderia ter se tornado até mesmo psicótica, tornou-se uma explosão de formas e irrealidades. Se a mente de um pequeno roedor é capaz de produzir 90 tons de cores e uma imagem tão bonita, como seria a mente de Dalí? Existiriam cores suficientes no mundo pra retratar tamanha complexidade? E se eu dissesse que dentro de cada um de nós vive um Salvador Dalí?
Que humano não compartilha das mesmas maluquices? Talvez não exatamente essas, talvez não do mesmo jeito, mas todos nós estamos sempre divididos em nossas opiniões, em nossas concepções. Estamos sempre confusos com relação aos nossos sentimentos, sempre divagando em nossos pensamentos. E a exemplo de Dalí, eu não digo: pense direito. Eu não digo: seja mais racional. Pelo contrário. Eu digo: liberte-se meu amigo. Aceite suas irrealidades, seus defeitos, suas frustrações. Faça delas as frustrações mais belas que alguém já viu. Torne-se esplêndido, um ser humano notável cujos defeitos explodem de sua alma tão coloridos quanto suas qualidades, porque você é brilhante assim.
Mais racional coisa nenhuma. Seja mais sentimental. Seja mais real. Seja mais humano. Seja quem você é. Tenha essa coragem. Deixo aqui minha singela homenagem à alma fascinante que foi Salvador Dalí.



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