Ruth Costas Da BBC Brasil em São Paulo, 4 maio 2015
Ricardo
Semler
Sócio
majoritário do conglomerado Semco Partners e ex-professor de Harvard e do
Massachusetts Institute of Technology (MIT), Ricardo Semler tornou-se um dos
empresários brasileiros mais conhecidos no exterior nos anos 90 por aplicar em
sua empresa princípios gerenciais que ficaram conhecidos como 'democracia
corporativa'.
Na Semco, os trabalhadores escolhem seus salários, horário e local de
trabalho, além dos seus gerentes. A hierarquia rígida foi substituída por um
regime em que todos podem opinar no planejamento da empresa.
Recentemente, Semler voltou a ganhar notoriedade no Brasil e no exterior
por dois motivos. Primeiro, porque o desempenho extraordinário de algumas
empresas criadas por jovens empreendedores (como Facebook e Google) aumentou o
interesse por práticas gerenciais inovadoras.
Segundo, em função de um artigo polêmico publicado
pelo jornal Folha de S. Paulo, em que, ao comentar
o caso de corrupção na Petrobras, Semler defendeu que "nunca se roubou tão
pouco" no Brasil.
"Nossa empresa deixou de vender equipamentos para a Petrobras nos
anos 70. Era impossível vender diretamente sem propina. Tentamos de novo nos
anos 80 e 90, até recentemente", escreveu ele.
Semler é filiado ao PSDB, mas o artigo acabou sendo usado por quem
defende o ponto de vista do governo e do PT no escândalo.
Ao comentar o episódio em entrevista à BBC Brasil, o empresário defendeu
que a politização do debate sobre corrupção é contraproducente e que o
escândalo da Petrobras e as repercussões do caso envolvendo a divulgação dos
nomes de brasileiros com conta no HSBC da Suíça são sinais de que o país está
mudando. "Pela primeira vez no Brasil temos gente rica assustada",
afirmou.
O empresário também defendeu um aumento do imposto sobre transmissão
(herança) para os donos de grandes fortunas e disse que aceitaria pagar até
50%. "Isso não afetaria em nada a disposição do empresário em
investir", opinou. Confira abaixo a entrevista:
BBC Brasil: O seu artigo virou referência para quem
defende o governo e o PT nos debates sobre o caso Petrobras. Isso o incomoda?
Semler: O objetivo
(do artigo) não era esse, mas isso não impede que cada um se aproprie dele para
fins próprios. Queria que as pessoas se perguntassem: O Brasil está ou é
corrupto?
Essas questões que estão sendo jogadas contra o governo do dia são muito
antigas. A Petrobras é só a ponta do iceberg. Há corrupção nas teles, nas
montadoras, nas farmacêuticas, nos hospitais particulares. O problema é
endêmico e não adianta fazer de conta que surgiu agora. Se você vai para a
Paulista e grita contra a corrupção, também precisa responder: Está declarando
todos os seus imóveis pelo valor cheio? Nunca deu R$ 50 para o guarda
rodoviário? Nunca pediu meio recibo para um médico? E quem está colocando no
Congresso esses políticos? Não sei se a Paulista não estaria vazia se todo
mundo fizesse um autoexame.
O que ocorre com a corrupção é algo semelhante a nossa percepção sobre
violência. Nunca se matou tão pouco no mundo – pense nas duas grandes guerras,
na guerra civil espanhola, etc. Mas a internet, os debates, a difusão da
informação faz com que tenhamos a sensação contrária.
BBC Brasil: Qual sua posição sobre os protestos?
Semler: Os protestos
são legítimos e positivos. As pessoas estão se mobilizando por causas diversas.
Daqui a pouco, por causa da situação econômica, também vão reclamar da
inflação, do desemprego. Mas sobre esse tema, a corrupção, acho interessante
entender se quem está na rua vai levar os princípios pelos quais está lutando
para sua vida pessoal, a empresa onde trabalha.
BBC Brasil: A politização da questão é um problema?
A sensação de que os ricos podem fazer qualquer
coisa está fraquejando. É um indício de que esse momento do Brasil que durou
50, 60 anos está começando a terminar, mas serão necessários 20, 30 anos para
fazer essa transição?
Semler: A politização
é inevitável, mas não era necessária para essa discussão - porque o que está
acontecendo não tem nada a ver com partidos. Basta olhar para o escândalo do
HSBC. Ele revelou que quase 10 mil brasileiros têm conta no exterior – imagino
que a grande maioria não declarada. Isso não tem a ver com o PT - ou com o
PSDB. Há 30, 40, 50 anos as pessoas mandam dinheiro para a Suíça para pagar
menos imposto.
BBC Brasil: Os casos Petrobras e HSBC indicam
alguma mudança?
Semler: É bom ver
alguns executivos de algema. Pela primeira vez no Brasil, temos gente rica
assustada. Até agora, você tinha uma classe média assustada, os pobres
assustados e os ricos em suas mansões e helicópteros, ou indo para a Europa.
Quando o cara é notificado pela polícia federal para explicar o dinheiro que
ele tinha na Suíça, é um horror para essa elite e é uma beleza para o país.
A sensação de que os ricos podem fazer qualquer coisa está fraquejando.
É um indício de que esse momento do Brasil que durou 50, 60 anos está começando
a terminar, mas serão necessários 20, 30 anos para fazer essa transição.
BBC Brasil: É possível acabar com a corrupção?
Semler: Alguns países
nórdicos e europeus têm um grau de corrupção muito baixo hoje, apesar de terem
sido os grandes corruptores do mundo no século 15, 16 ou 17. Acho que a
educação, sem dúvida, faz parte desse processo. Nesses países, as escolas há
muito tempo também se dedicam a discutir questões éticas e padrões de
comportamento em comunidade. Se você só ensina a estrutura do átomo, a tabela
periódica e equações matemáticas o aluno pode passar no vestibular, mas não vai
ter parado um segundo para pensar em questões fundamentais da vida.
BBC Brasil: Qual a extensão do problema de
corrupção no setor privado?
Semler: Muitas vezes,
o principal interessado em acabar com o problema é o investidor, o dono do
negócio. É esse o caso, por exemplo, de um diretor de compras (de uma empresa),
que age com muita discrição (cobrando propina de fornecedores). Mas é difícil
detectar e acabar com isso. O processo de controle e a gestão clássica das
empresas é muito ineficaz.
BBC Brasil: Por que um milionário ou bilionário
arrisca colocar a reputação em risco para não pagar imposto?
Semler: Acho que a
questão é antropológica-humanística. Por que uma pessoa que tem 20, 30, 40
bilhões de dólares quer ganhar mais cinco (bilhões)? Porque não fica em
Zurique, jogando tênis? Talvez porque pense que com mais um pouquinho vai ser
feliz.
BBC Brasil: É possível ser um empresário honesto no
Brasil?
Semler: Sim. Uma boa
parte dos empresários é honesta. Mesmo gente controversa. O Abílio (Diniz) não
construiu sua rede de supermercados dando propina para ninguém. Pode ser comum
receber a proposta: você me dá dez por cento e eu te ajudo. E aí tem gente que
diz: 'Ah, o Brasil é assim mesmo'. Ou: 'O que adianta eu pagar imposto se essa
turma do PT não vai usar o dinheiro direito'. Isso precisa acabar.
BBC Brasil: Os empresários ricos e donos de grandes
fortunas poderiam pagar mais imposto no Brasil? Há gente que defende que isso
poderia aliviar o peso do aperto fiscal sobre o resto da população, por
exemplo...
Semler: O imposto
sobre a operação já está no limite. Mas acho que particularmente os impostos de
transmissão (herança) são baixos. Quando o patrimônio de um grande empresário
passa para seus filhos, muitas vezes eles compram mais Ferraris, mais mansões,
etc. O uso social desse patrimônio é o mais estúpido possível. Há muito espaço
para aumentar (a taxa) e isso não afetaria em nada a disposição do empresário
em investir. Até porque muitas vezes esse patrimônio foi construído por pessoas
de outras gerações.
BBC Brasil: O senhor aceitaria pagar mais imposto?
Semler: Tranquilamente.
BBC Brasil: Quanto seria aceitável?
Semler: No caso do
imposto de transmissão, não acho chocante o Estado ficar com 50%. No de imposto
de renda, 40% (para a faixa mais alta de renda). Tinha um sócio na Suécia que
chegou a pagar 101% de sua renda em imposto.
BBC Brasil: Como isso é possível?
Semler: É um
princípio difícil de a gente aceitar. Hoje, isso não existe mais. Agora, o
imposto (de renda) máximo lá é 85%, se não me engano. Mas a Suécia dizia o
seguinte: 'Você já tem tanto que seu único papel é devolver um pouquinho'. A
questão é que a pessoa sai na rua e não há pobreza. O dinheiro é usado de forma
eficiente.
Pagar 50% (de imposto sobre herança) é aceitável para muita gente se é
feito bom uso desses recursos. Se você sai na rua e tem a sensação de que está
indo nessa direção (Suécia), mesmo que não chegue a ver o resultado em vida. É
uma opção melhor do que gastar (o dinheiro) em um helicóptero e depois ter de
sobrevoar favelas.
Mas também há muita gente (rica) que prefere fazer homenagem a si mesma.
Temos aquelas doações que são um exercício de vaidade… as pessoas doam dinheiro
para ter uma ala do hospital com seu nome: 'Todo mundo que for esperar para
fazer uma mamografia vai ver o meu nome'. Ao fazer uma unidade de um
determinado hospital ou escola (privados) em Paraisópolis cria-se uma ilha da
fantasia.
São Paulo tem mais 180 favelas aonde ninguém vai. Acho que isso não
funciona, não adianta para a sociedade como um todo. A elite brasileira costuma
se vangloriar de fazer pequenas coisas, mas o Brasil tem problemas muito
maiores.
BBC Brasil: O senhor também tem falado muito sobre
o tema da desigualdade. Qual o papel dos empresários e das empresas na redução
do fosso entre ricos e pobres?
Semler: Tenho a
impressão de que o grande empresário, tal como o sistema está constituído hoje,
com essa liberdade, não vai contribuir em nada. Pense no global. Ele não tem
interesse em dizer: estou lucrando muito aqui, mas tem uma população que vai
mal em Gana, no Camboja... O cara dá de ombros. 'Não tenho nada a ver com isso.
Pago meu imposto', pensa.
A autopropulsão, ou o drive, do empresário está associada a um egoísmo. No
melhor dos casos, a um autocentrismo. Ele até pode pensar 'preciso fazer algum
projeto ambiental’, mas não quer que se metam com seu carro, sapatos caros,
etc. Os grandes empresários tendem a ser egoístas ou autocentrados. No Brasil
ou em qualquer lugar do mundo.
Acho difícil esperar que tenham uma posição altruísta ou idealista em
relação ao resto da humanidade. Figuras como Steve Jobs ou Bill Gates, por
exemplo, não são muito diferentes dos grandes empresários americanos do fim do
século 19, que expandiram as redes de eletricidade e ferrovias do país. São
monopolistas, tentam quebrar os concorrentes, têm um ego enorme.
BBC Brasil: O senhor ficou famoso por aplicar a
chamada democracia corporativa em sua empresa. Os trabalhadores escolhem seus
horários e seus salários. Como isso pode dar certo?
Semler: Se você dá às
pessoas todos os parâmetros para que elas decidam, elas decidem bem. É claro
que o único fator a ser considerado não é, por exemplo, quanto cada um quer
ganhar. Os trabalhadores se organizam para fazer o orçamento dos próximos 6
meses ou 1 ano, analisam o que precisam e que salário é preciso pagar para
isso. Cada um diz o que gostaria e o grupo vê se é possível. O autointeresse é
cotejado pelo coletivo. Em parte, o que fizemos foi mudar esse sistema do 'eu
mando, você obedece' por um sistema em que eu pergunto: 'Quando você quer
trabalhar? Quer vir até aqui ou não?'
BBC Brasil: Há mais interesse por esse sistema
hoje?
Semler: Certamente.
Fiz recentemente uma palestra TED (formato de conferências curtas, que se
popularizaram na internet) que conseguiu 1,2 milhões de views (acessos) em pouco mais de um mês,
principalmente de americanos. Conforme empresas abertas por grupos de jovens
conseguem em poucos anos se equiparar a empresas tradicionais, muita gente está
percebendo que a hierarquia militar que prevalece em algumas companhias não
serve mais.
Olhei esses dias uma lista da revista INC das cem empresas mais promissoras (do globo) e
só conhecia duas. Nunca tinha ouvido falar das outras 98. O novo jeito de se
organizar e de ser criativo, de inovar, não passa mais pela GE (General Electric) e pela GM (General Motors). Essas empresas que aparentemente
tinham o poder e o controle sobre tudo estão perdendo espaço.
Não faz mais sentido dizer que os funcionários de
uma empresa devem chegar às 8h e sair às 5h, que devem se vestir e falar como
mandam seus superiores. Esse sistema criado com a linha de montagem de Henry
Ford, há cem anos, está obsoleto.
BBC Brasil: Qual o objetivo desse modelo de gestão
alternativo? Obter mais lucro ou ter funcionários mais satisfeitos?
Semler: Há 30 anos,
crescemos 41% ao ano, em média. E, ao mesmo tempo, tenho 2% de turnover (rotatividade de empregados) e o índice
de satisfação de nossos funcionários também é bastante alto, embora não seja o
que gostaríamos. Então, o que mostramos é, justamente, que é um falso dilema
dizer que ou a empresa lucra ou seus funcionários ficam felizes.
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