Arte pictórica
Formado em Filosofia pela PUC/SP
completei minha formação na França, Portugal e Holanda.
Publiquei dois livros e alguns artigos todos voltados a área de educação e
formação de professores. Meu trabalho na Filosofia sempre esteve ligado a
Filosofia da Linguagem e aos Medievais
PUBLICADO EM ARTES E IDEIAS POR DANTE
DONATELLI
As diferentes formas de representação
do rosto da Madonna por Michelangelo, Botticelli,
Rafael, Piero della Francesca e Jean de Fouquet.
Rafael, Piero della Francesca e Jean de Fouquet.
A leitura da obra do antropólogo argentino, Nestor Canclini, Culturas Híbridas, (Edusp, SP, 2013, 4º edição, 6º reimpressão) me chamou a atenção para um fato bastante interessante, ao narrar a contrariedade de parte da sociedade mexicana com uma imagem da Madonna, feita por artista popular local, sua expressão, seu rosto não correspondia as pretensões imaginárias da parte mais católica e conservadora da sociedade, e tomaram a peça como sendo uma afronta a santidade da Madonna e a sua fé.
Canclini não se
preocupa em colocar a imagem do rosto em seu livro, sua intensão era discutir
outros temas, porém, fiquei intrigado me perguntando qual a face, o rosto
das Madonnas criadas pelos grandes mestres renascentistas? Me
detive em cinco deles: a Madonna da Sagrada Família de
Rafael; A Pietá de Michelangelo; A Madonna Magnífica de
Botticelli; A Madonna di Segallia de Piero della Francesca;
E A Virgem de Melun de Jean Fouquet.
Partamos das
similaridades, a Pietá de Michelangelo, e as Madonnas de
Rafael e Botticelli tem em comum os mesmos traços de juventude, elas são
jovens, muito jovens, não mais de 25 anos, a boca sempre pequena, mas não
insignificante, ela é delicada, sensível ao ponto de se imaginar que não tolera
o beijo ou se disponha a gula, como se poderia esperar de uma Virgem a
boca, que tem componentes eróticos inegáveis, é por esta razão é quase
imperceptível no conjunto do rosto. Os artistas se esforçaram em projetar uma
mulher na qual a combinação entre traços joviais, delicados e serenos tem em
seu centro uma boca, discreta ao ponto de não dever ser notada.
A Madonna Magnífica de Botticelli
A força da Madonna jovem,
entendemos ser, o recurso mais evidente de ressaltar a relação direta entre
juventude e beleza, duas condições indissociáveis e perseverantes na arte e na
cultura ocidental. Uma Madonna madura, não iria refletir a
intensidade e a força de uma jovem feita a perfeição para ser a mãe do Cristo
Salvador. O sofrimento do Cristo não impede, e nem anula, a possibilidade da
existência do belo e da beleza feminina como adorno fundamental de apresentação
aos observadores, quanto mais bela, mais adorada se é. Não há registro de
queixa ou problemas para qualquer artista dos séculos XV ou XVI ao retratarem a Virgem com
tal encantamento e beleza única e estonteante. Quanto mais bela a Madonna melhor
ela representa a sua santidade.
Madonna de Rafael
O nariz é fino,
respeitando a perfeição desejada e esperada em uma mulher bonita, a tradição
italiana é de uma população com narizes grandes ou avantajados, mas as musas
inspiradoras dos três artistas eram perfeitas, seu nariz é mínimo, de uma
delicadeza e simetria exata para com a boca e o queixo, o conjunto, diríamos, é
mais que perfeito ele se esmera em devotar uma ordem e um requinte visto em
poucas mulheres.
Se a beleza é tão
intensa e nos toma em fascínio, por que elas não são erotizadas? O Segredo é
que as três tem os olhos postos para baixo, o dorso chega a se curvar para
evitar um olhar direto e certeiro sobre o observador, mesmo sendo a Pietá uma
obra escultórica, se notarmos o David do mesmo Michelangelo
veremos uma fronte incisiva, direta e imponente quase a convidar o observador a
lhe tocar e acariciar, ou mesmo uma das ninfas de Botticelli na representação
da Primavera é ela um convite a sedução. A Pietá e as
Madonnas olham sempre para baixo, poderíamos imaginar que estivessem
contemplando os céus, nada mais justo, buscando o assentimento do pai, mas não,
isso implicaria em ressaltar de tal maneira a beleza delas e ao mesmo tempo
projetar o colo, perfeito e ereto sobre o observador que os ares de santidade
virginal poderiam ser comprometidos. É sabido que as mulheres entre os séculos
XV e XVIII valorizavam sobre maneira o busto e colo, e decotes eram apreciados
por todas.
A Primavera de Botticelli
O centro do rosto,
os olhos, e todo corpo ao projetar para baixo, os deixa quase irrelevante a
beleza perfeita imaginada ou quem sabe, lembrada pelo artista, esta
irrelevância se acentua pela impossibilidade de fixar os olhos no centro do
rosto, o nosso olhar gravita para o centro do quadro no qual o Cristo se
apresenta sempre em primeiro plano roubando a centralidade e beleza dos rostos
das Madonnas. Os artistas sabem, como afirmou Merleau-Ponty, que os
olhos são as janelas da alma, coloca-los olhando para o observador, roubaria a
centralidade da obra e exporia toda majestade da sua beleza de uma forma
crítica.
Minha hipótese é
que tanto Michelangelo como Rafael e Botticelli criaram uma imagem ideal da Madonna ela
é a perfeição feminina e jovial na plenitude, o belo ideal como pedia o ideário
platônico presente na mentalidade da maioria dos renascentistas, estas mulheres
não estavam presentes na vida cotidiana destes artistas, não eram “modelos”
observáveis de nenhum deles. São elas a mais pura criação artística.
Afirmo isto pois
estou convencido que a Madonna de Piero é humana, alguém
próximo a ele, note o rosto redondo, as bochechas cheias e pesadas, bem
diferente das demais Virgens, ela tem algo de familiar a todos nós,
uma mulher comum. A boca é pequena, para preservar a não conotação erótica, mas
o nariz é mais protuberante, não poderíamos dizer que é grande, mas é mais
largo, menos fino e muito menos simétrico ao rosto, chega a ser redondo
acompanhando as linhas da bochecha fazendo crer, ao observador, que a Madonna é
um pouco mais gordinha. O queixo quase é imperceptível, une-se ao rosto em um
todo, para evitar perder a forma ou evidenciar algo não belo,, Piero faz uma
pequena cavidade, um sutil detalhe queixo de maneira a valorizar o contorno do
rosto.
Madonna de Piero
A liberdade de
Piero, como lembrou Carlo Ginzburg em sua obra, Indagações Sobre Piero (Paz
e Terra, RJ, 1989) fazia com que o artista buscasse nas pessoas comuns à sua
inspiração. Até onde se sabe, ninguém reclamou ou fez qualquer objeção a esta Madonna,
mas ela parece em tudo uma pessoa comum, uma mulher comum, que serviu ao
artista como inspiração para retratar a mãe do salvador.
O comum parece tão
evidente na Madonna que ao observarmos a orelha direita,
delicadamente sombreada pelo véu branco, se percebe ela um pouco exagerada, um
pouco normal demais quando se comparadas as Virgens de
Michelangelo, Botticelli e Rafael e somente a Madonna rafaelina
se permite mostrar uma das orelhas e mesmo assim ela é perfeita, pequena como
uma pétala encaixada naturalmente no corpo da virgem, em absoluta igualdade de
tamanho e beleza com o restante do rosto.
Na contrapartida a
orelha da virgem de Piero é em tudo normal e idêntica ao que se poderia ver em
uma mulher florentina ou romana do século XV ou XVI, os limites de Piero
terminam nos olhos, baixos como as demais, mas o dorso se mantém ereto e firme,
ela está em pé, apenas os olhos fogem ao atrevimento do observador que poderia
desejar encarar a Madonna, o pescoço denuncia uma certa altivez ao
se manter reto e alto, em uma atitude pouco usual assim como ela estar em pé,
para suavizar, Piero quase anula o busto, evitando que se possa imaginar algo
além da virgem.
Esta é uma tensão
espetacular, pensamos em uma mulher comum, cabível de ser encontrada no cotidiano,
mas o artista preserva a feminilidade evidente da mulher subvertendo na Virgem.
De certa forma é possível que o observador pudesse imaginar que a Madonna era
em tudo uma mulher comum, não no sentido da santidade, mas da sua humanidade
representada na sua condição de gênero.
A última Madonna e
mais surpreendente é de Jean Fouquet, observe a palidez marmoreada, quase
futurista da virgem, diria que é de uma petulância espetacular, se pudéssemos
fazer uma comparação, ela aparece representada várias vezes no cinema
expressionista alemão dos anos 1920 e 1930. Fouquet parece desejar que a Madonna abandone
todos os padrões de beleza conhecidos e se mostre como uma revelação exuberante
e inigualável na realidade, pois, por mais que as mulheres francesas fossem
brancas, pálidas por passarem a vida refugiadas dentro de casa ou na igreja, o
mármore do rosto da Virgem é incrível, nem a Pietá,
talhada no mármore tem tal textura.
Atriz Alemã no Filme Metrópolis de Fritz Lang, 1927
Evidente que não há
qualquer androgenia na Virgem, mas ela não é nem bela como as
italianas e nem comum como em Piero, ela é um verdadeiro deleite artístico
típicos do renascimento, e creio que o segredo que manteve a obra intacta
historicamente sem sofrer represálias ou censuras, é que a Madonna respeita
as exigências estéticas para sua existência. A boca pequena, o queixo e
alinhamento perfeito e simétrico, as faces finas em relação direta com o nariz,
como o artista estica o rosto ele faz com que o nariz acompanhe as linhas, aos
olhos contemporâneos pode parecer que a boca precisaria ser maior para
respeitar a proporcionalidade, mas isto implicaria em um componente erótico
inaceitável e no todo ela é simetricamente perfeita.
Fouquet revela a
orelha pequena e delicada, proporcional, mas evita a vaidade dos cabelos, mais
uma forma de compensar a textura futurista da Virgem, e em seu
lugar coloca uma coroa de pérolas e pedras preciosas. Estou convencido de que
os cabelos ou mesmo o véu sobre a cabeça comprometeria o conjunto estético.
Desde a baixa idade média a Virgem já era cultuada e chamada
de rainha pela igreja e devotos, Fouquet a homenageia com a coroa, um recurso
perfeito para sua obra.
Alguns
historiadores afirmam que a Virgem teve como modelo a amante rei Carlos VII,
Agnès Sorel, dama de beleza única, não há como entrar no mérito se tal
afirmação é verdadeira ou não, nem o desenho feito por Fouquet, e ainda
preservado de Sorel, prova isso, porém, o mais curioso é ter uma mulher
sensual, bonita e libertina servindo como modelo para a Madonna.
Independente destas
questões, o importante é a particularidade da obra em si e a sua representação
da Virgem de uma forma pouco usual e conhecida, suponho até
que se tal obra fosse produzida no século XVIII ou XIX haveria um grande risco
do artista vê-la censurada dada sua particularidade estética.
Este espaço
não permite se colocar todas as imagens necessárias e nem muito menos ir
adiante nas considerações acerca das diferentes faces da Madonna,
porém é interessante como hoje, o simples fato de um transexual se pôr na cruz
criou toda uma comoção, sendo que o Cristo também tem as mais diversas faces.
Assim como no México, como citado por Canclini, a Virgem parece
ter tantas facetas possíveis que todas são validas, como o Cristo, mas curioso
mesmo é perceber como parecemos muito mais incapazes de perceber a beleza hoje
do que um homem da renascença.
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