terça-feira, 28 de julho de 2015

AS FACES DA MADONNA

Arte pictórica


              Formado em Filosofia pela PUC/SP completei minha formação na França,                          Portugal e Holanda. Publiquei dois livros e alguns artigos todos voltados a área de educação e formação de professores. Meu trabalho na Filosofia sempre esteve ligado a Filosofia da Linguagem e aos Medievais

PUBLICADO EM ARTES E IDEIAS POR DANTE DONATELLI

As diferentes formas de representação do rosto da Madonna por Michelangelo, Botticelli, 
Rafael, Piero della Francesca e Jean de Fouquet.

A leitura da obra do antropólogo argentino, Nestor Canclini, Culturas Híbridas, (Edusp, SP, 2013, 4º edição, 6º reimpressão) me chamou a atenção para um fato bastante interessante, ao narrar a contrariedade de parte da sociedade mexicana com uma imagem da Madonna, feita por artista popular local, sua expressão, seu rosto não correspondia as pretensões imaginárias da parte mais católica e conservadora da sociedade, e tomaram a peça como sendo uma afronta a santidade da Madonna e a sua fé.
Canclini não se preocupa em colocar a imagem do rosto em seu livro, sua intensão era discutir outros temas, porém, fiquei intrigado me perguntando qual a face, o rosto das Madonnas criadas pelos grandes mestres renascentistas? Me detive em cinco deles: a Madonna da Sagrada Família de Rafael; A Pietá de Michelangelo; A Madonna Magnífica de Botticelli; A Madonna di Segallia de Piero della Francesca; E A Virgem de Melun de Jean Fouquet.


A Pietá

Partamos das similaridades, a Pietá de Michelangelo, e as Madonnas de Rafael e Botticelli tem em comum os mesmos traços de juventude, elas são jovens, muito jovens, não mais de 25 anos, a boca sempre pequena, mas não insignificante, ela é delicada, sensível ao ponto de se imaginar que não tolera o beijo ou se disponha a gula, como se poderia esperar de uma Virgem a boca, que tem componentes eróticos inegáveis, é por esta razão é quase imperceptível no conjunto do rosto. Os artistas se esforçaram em projetar uma mulher na qual a combinação entre traços joviais, delicados e serenos tem em seu centro uma boca, discreta ao ponto de não dever ser notada.

A Madonna Magnífica de Botticelli

A força da Madonna jovem, entendemos ser, o recurso mais evidente de ressaltar a relação direta entre juventude e beleza, duas condições indissociáveis e perseverantes na arte e na cultura ocidental. Uma Madonna madura, não iria refletir a intensidade e a força de uma jovem feita a perfeição para ser a mãe do Cristo Salvador. O sofrimento do Cristo não impede, e nem anula, a possibilidade da existência do belo e da beleza feminina como adorno fundamental de apresentação aos observadores, quanto mais bela, mais adorada se é. Não há registro de queixa ou problemas para qualquer artista dos séculos XV ou XVI ao retratarem a Virgem com tal encantamento e beleza única e estonteante. Quanto mais bela a Madonna melhor ela representa a sua santidade.

Madonna de Rafael

O nariz é fino, respeitando a perfeição desejada e esperada em uma mulher bonita, a tradição italiana é de uma população com narizes grandes ou avantajados, mas as musas inspiradoras dos três artistas eram perfeitas, seu nariz é mínimo, de uma delicadeza e simetria exata para com a boca e o queixo, o conjunto, diríamos, é mais que perfeito ele se esmera em devotar uma ordem e um requinte visto em poucas mulheres.
Se a beleza é tão intensa e nos toma em fascínio, por que elas não são erotizadas? O Segredo é que as três tem os olhos postos para baixo, o dorso chega a se curvar para evitar um olhar direto e certeiro sobre o observador, mesmo sendo a Pietá uma obra escultórica, se notarmos o David do mesmo Michelangelo veremos uma fronte incisiva, direta e imponente quase a convidar o observador a lhe tocar e acariciar, ou mesmo uma das ninfas de Botticelli na representação da Primavera é ela um convite a sedução. A Pietá e as Madonnas olham sempre para baixo, poderíamos imaginar que estivessem contemplando os céus, nada mais justo, buscando o assentimento do pai, mas não, isso implicaria em ressaltar de tal maneira a beleza delas e ao mesmo tempo projetar o colo, perfeito e ereto sobre o observador que os ares de santidade virginal poderiam ser comprometidos. É sabido que as mulheres entre os séculos XV e XVIII valorizavam sobre maneira o busto e colo, e decotes eram apreciados por todas.

A Primavera de Botticelli

O centro do rosto, os olhos, e todo corpo ao projetar para baixo, os deixa quase irrelevante a beleza perfeita imaginada ou quem sabe, lembrada pelo artista, esta irrelevância se acentua pela impossibilidade de fixar os olhos no centro do rosto, o nosso olhar gravita para o centro do quadro no qual o Cristo se apresenta sempre em primeiro plano roubando a centralidade e beleza dos rostos das Madonnas. Os artistas sabem, como afirmou Merleau-Ponty, que os olhos são as janelas da alma, coloca-los olhando para o observador, roubaria a centralidade da obra e exporia toda majestade da sua beleza de uma forma crítica.
Minha hipótese é que tanto Michelangelo como Rafael e Botticelli criaram uma imagem ideal da Madonna ela é a perfeição feminina e jovial na plenitude, o belo ideal como pedia o ideário platônico presente na mentalidade da maioria dos renascentistas, estas mulheres não estavam presentes na vida cotidiana destes artistas, não eram “modelos” observáveis de nenhum deles. São elas a mais pura criação artística.
Afirmo isto pois estou convencido que a Madonna de Piero é humana, alguém próximo a ele, note o rosto redondo, as bochechas cheias e pesadas, bem diferente das demais Virgens, ela tem algo de familiar a todos nós, uma mulher comum. A boca é pequena, para preservar a não conotação erótica, mas o nariz é mais protuberante, não poderíamos dizer que é grande, mas é mais largo, menos fino e muito menos simétrico ao rosto, chega a ser redondo acompanhando as linhas da bochecha fazendo crer, ao observador, que a Madonna é um pouco mais gordinha. O queixo quase é imperceptível, une-se ao rosto em um todo, para evitar perder a forma ou evidenciar algo não belo,, Piero faz uma pequena cavidade, um sutil detalhe queixo de maneira a valorizar o contorno do rosto.

Madonna de Piero

A liberdade de Piero, como lembrou Carlo Ginzburg em sua obra, Indagações Sobre Piero (Paz e Terra, RJ, 1989) fazia com que o artista buscasse nas pessoas comuns à sua inspiração. Até onde se sabe, ninguém reclamou ou fez qualquer objeção a esta Madonna, mas ela parece em tudo uma pessoa comum, uma mulher comum, que serviu ao artista como inspiração para retratar a mãe do salvador.
O comum parece tão evidente na Madonna que ao observarmos a orelha direita, delicadamente sombreada pelo véu branco, se percebe ela um pouco exagerada, um pouco normal demais quando se comparadas as Virgens de Michelangelo, Botticelli e Rafael e somente a Madonna rafaelina se permite mostrar uma das orelhas e mesmo assim ela é perfeita, pequena como uma pétala encaixada naturalmente no corpo da virgem, em absoluta igualdade de tamanho e beleza com o restante do rosto.
Na contrapartida a orelha da virgem de Piero é em tudo normal e idêntica ao que se poderia ver em uma mulher florentina ou romana do século XV ou XVI, os limites de Piero terminam nos olhos, baixos como as demais, mas o dorso se mantém ereto e firme, ela está em pé, apenas os olhos fogem ao atrevimento do observador que poderia desejar encarar a Madonna, o pescoço denuncia uma certa altivez ao se manter reto e alto, em uma atitude pouco usual assim como ela estar em pé, para suavizar, Piero quase anula o busto, evitando que se possa imaginar algo além da virgem.
Esta é uma tensão espetacular, pensamos em uma mulher comum, cabível de ser encontrada no cotidiano, mas o artista preserva a feminilidade evidente da mulher subvertendo na Virgem. De certa forma é possível que o observador pudesse imaginar que a Madonna era em tudo uma mulher comum, não no sentido da santidade, mas da sua humanidade representada na sua condição de gênero.
A última Madonna e mais surpreendente é de Jean Fouquet, observe a palidez marmoreada, quase futurista da virgem, diria que é de uma petulância espetacular, se pudéssemos fazer uma comparação, ela aparece representada várias vezes no cinema expressionista alemão dos anos 1920 e 1930. Fouquet parece desejar que a Madonna abandone todos os padrões de beleza conhecidos e se mostre como uma revelação exuberante e inigualável na realidade, pois, por mais que as mulheres francesas fossem brancas, pálidas por passarem a vida refugiadas dentro de casa ou na igreja, o mármore do rosto da Virgem é incrível, nem a Pietá, talhada no mármore tem tal textura.

Madonna de Fouquet

Atriz Alemã no Filme Metrópolis de Fritz Lang, 1927

Evidente que não há qualquer androgenia na Virgem, mas ela não é nem bela como as italianas e nem comum como em Piero, ela é um verdadeiro deleite artístico típicos do renascimento, e creio que o segredo que manteve a obra intacta historicamente sem sofrer represálias ou censuras, é que a Madonna respeita as exigências estéticas para sua existência. A boca pequena, o queixo e alinhamento perfeito e simétrico, as faces finas em relação direta com o nariz, como o artista estica o rosto ele faz com que o nariz acompanhe as linhas, aos olhos contemporâneos pode parecer que a boca precisaria ser maior para respeitar a proporcionalidade, mas isto implicaria em um componente erótico inaceitável e no todo ela é simetricamente perfeita.
Fouquet revela a orelha pequena e delicada, proporcional, mas evita a vaidade dos cabelos, mais uma forma de compensar a textura futurista da Virgem, e em seu lugar coloca uma coroa de pérolas e pedras preciosas. Estou convencido de que os cabelos ou mesmo o véu sobre a cabeça comprometeria o conjunto estético. Desde a baixa idade média a Virgem já era cultuada e chamada de rainha pela igreja e devotos, Fouquet a homenageia com a coroa, um recurso perfeito para sua obra.
Alguns historiadores afirmam que a Virgem teve como modelo a amante rei Carlos VII, Agnès Sorel, dama de beleza única, não há como entrar no mérito se tal afirmação é verdadeira ou não, nem o desenho feito por Fouquet, e ainda preservado de Sorel, prova isso, porém, o mais curioso é ter uma mulher sensual, bonita e libertina servindo como modelo para a Madonna.
Independente destas questões, o importante é a particularidade da obra em si e a sua representação da Virgem de uma forma pouco usual e conhecida, suponho até que se tal obra fosse produzida no século XVIII ou XIX haveria um grande risco do artista vê-la censurada dada sua particularidade estética.
Este espaço não permite se colocar todas as imagens necessárias e nem muito menos ir adiante nas considerações acerca das diferentes faces da Madonna, porém é interessante como hoje, o simples fato de um transexual se pôr na cruz criou toda uma comoção, sendo que o Cristo também tem as mais diversas faces. Assim como no México, como citado por Canclini, a Virgem parece ter tantas facetas possíveis que todas são validas, como o Cristo, mas curioso mesmo é perceber como parecemos muito mais incapazes de perceber a beleza hoje do que um homem da renascença.

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