sexta-feira, 3 de julho de 2015

COMO UM VELHO BÊBADO VIROU PERSONAGEM DE UMA DAS MELHORES OBRAS DO JORNALISMO LITERÁRIO

Publicado em literatura por Felipe Azevedo

Do encontro entre dois homens que amavam narrar o mundo, nasce O Segredo de Joe Gould, uma obra deliciosa do jornalismo literário que nos transporta para a excêntrica Nova Iorque dos anos 40

O Segredo de Joe Gould é considerado a obra-prima do jornalista norte-americano Joseph Mitchell, que viveu sua solidão de escritor na Nova York gelada da década de 40. No livro estão dois perfis de um velho boêmio de família rica, que perambulava com um ensebado portfólio debaixo do braço pelas ruas frias do Greenwich Village, bairro popular da metrópole americana. Escritos com invejável delicadeza e paciência por Joseph, os dois textos foram publicados em um intervalo de vinte e dois anos. “O Professor Gaivota” recheou a edição da revista The New Yorker do dia 12 de dezembro de 1942, e “O Segredo de Joe Gould”, que saiu nas edições de 19 e 26 de setembro de 1964.



Joseph nasceu em 1908, no estado da Carolina do Norte, sul dos Estados Unidos. Tomou um trem e desembarcou na cidade que serviria de cenário para sua narrativa lenta e deliciosa: Nova York. Trabalhou em diversos jornais até ser contratado como escritor fixo da The New Yorker, uma revista singular onde ter um artigo aceito significava uma elevação de status. Mitchell inaugurou um novo modo de fazer jornalismo literário, usava técnicas de ficção para contar histórias de personagens ou coisas reais – essa pode ser uma das possíveis teorias para sua escrita tão lenta e tão cuidadosa. Seu primeiro texto na The New Yorker foi um perfil de uma cidadezinha chamada Elkton, no estado de Maryland, onde o número de casamentos era espantoso.

Talvez não houvesse um lugar tão perfeito para Mitchell como a The New Yorker. Os editores da revista não estavam interessados em pautas seus escritores, justificavam a liberdade editorial concedida a eles como um princípio fundamental para que os textos fossem verdadeiros, sem encomenda. Nenhuma outra publicação poderia esperar dois ou três anos para que um texto fosse escrito. Era esse o tempo, em média, que levava para que Joseph martelar calmamente sua máquina de escrever até que tomasse vida um dos seus perfis.
Foi assim durante 30 anos até sua morte, em 1996. Cemitérios abandonados, bares, cidades exóticas e pessoas aparentemente desinteressantes foram os personagens escolhidos por Joseph. No posfácio escrito por João Moreira Salles em “O Segredo de Joe Gould” (Companhia das Letras), está à essência do que foi o escritor americano: “em toda sua obra não há nenhuma palavra fora do lugar, Joseph não escreveu uma linha sequer para algo que não achasse interessante”. Era alguém que escutava. Durante 19 anos, de 1938 a 1957, a voz do velho boêmio, para quem escreveu seu perfil mais conhecido, ecoou nos ouvidos de Joseph por horas às vezes ininterruptas – em uma ocasião Gould deu-se a falar e só parou após 600 minutos. Era um velho sujo que quase sempre vestia ternos maiores que ele. Era baixo e dificilmente pesava mais que 50 quilos. O portfólio ensebado que carregava poderia ser uma parte do corpo.
Explica-se: Joe Goud era um excêntrico aventureiro. Uma vez embrenhou-se numa expedição antropológica para medir a cabeça de índios. Após tropeçar num livro de W.B Yeats, leu: “A história de uma nação não está nos parlamentos e nos campos de batalha, mas no que as pessoas dizem umas às outras em dias de feira e em dias de festa, e na maneira como trabalham a terra, como discutem, como fazem romaria”. A partir daí, Goud tomou posse de um caderno velho e se empenhou em efetivamente anotar tudo que se mexesse à sua volta. A figura de um velho mendigo formado em Havard, morto de fome, cheirando a cigarro e que se propunha a escrever “A História Oral de Nosso Tempo” pereceu um prato suculento para um escritor amante e faminto pela vida de quem era invisível.


Gould não era o único boêmio do Village, mas era, de longe, o mais exótico. Durante os encontros com Mitchell nos diversos bares do Village, entortava tubos inteiros de catchup em cima do ovo frito pago pelo escritor, “esse é o único grude de graça que eu conheço”, dizia. Falava muito. Começava contando sobre sua relação difícil com os pais, passando sobre o dia em que quase morreu de fome e não cansava de comentar sobre a sua peculiar habilidade de se comunicar com as gaivotas. Chamado de “o professor gaivota” pelos garçons e habitantes do bairro, Gould um dia demonstrou para Joseph um pouco de sua destreza: levantou da mesa onde conversaram e rodopiou com os braços para trás. “Gru, gru”, gritava para o incômodo dos clientes.
“A minha obra é enorme, não sei quantas vezes o tamanho da bíblia”. Joe Gould se gabava de estar escrevendo o maior livro que havia existido no mundo. Era financiada pelo Fundo Joe Gould, uma espécie de contribuição paga por alguns amigos e intelectuais que acreditavam na sua obra. Dizia que os escritos estavam espalhados em lugares estratégicos, o que continha nas mãos eram apenas as anotações recentes, “a parte principal eu guardo, escondo em locais espalhados, por segurança”, dizia. Joseph teve acesso mais de uma vez aos textos e reparou que, curiosamente, os títulos dos capítulos se repetiam quase sempre.
A paciência e o interesse inesgotável de Joseph por Gould parecem ser duas características fundamentais para que os encontros e conversas entre eles acontecessem durante tanto tempo. Joe Gould passava fome, às vezes pedia um jantar ou um café fumegante antes de cada conversa. No primeiro perfil, “O Professor Gaivota”, Joseph narrou em poucas páginas os seus encontros com Gould. Contou o quão era singular aquele homenzinho magro, rabugento, que guardava ponta de cigarro dentro do bolso e comia dia sim, outro não. Descreveu com delicadeza o velho sujo que anotava frenético cada conversa que ouvia, cada som que lhe viesse aos ouvidos fazia parte da História oral de Joe Gould. Anos mais tarde, decidiu escrever “O Segredo de Joe Gould” onde a narrativa passa por questões curiosas, onde o leitor poderá se perguntar até onde Joe Gould está totalmente lúcido sobre sua obra extraordinária.


O livro é pesado, de tão leve. Uma aula de jornalismo literário escrita por um homem solitário, calado e lento. Joseph Mitchell foi um escritor paciente e extremamente observador. João Moreira Salles, ainda no posfácio da obra, narra o dia em que Joseph se deitou no meio do mato e fixou seus olhos em um binóculo por duas horas. Ele observava quieto o trabalho de um pica-pau que bicava sem parar o tronco de uma árvore. Ficou ali e viu o pássaro romper a casca, depois o tronco até que a madeira se partiu e a árvore caiu no chão. “Foi uma das coisas mais extraordinárias que vi na vida”, disse Mitchell. São raros os que teriam a mesma paciência espontânea.
Em seu cubículo na redação da The New York, Joseph passou 30 anos de sua vida traçando seus personagens incríveis. Não abandonou a máquina de escrever até o a sua morte, em 1996. Os amigos e colegas se perguntavam nos bastidores da revista o que Joseph poderia estar escrevendo, havia anos que não publicava e mesmo assim, todas as noites escutavam-se as batidas de tecla que vinham de trás do seu biombo. De manhã a equipe de limpeza jogava fora as bolinhas de papel jogadas no lixo.
Joseph e Joe eram homens incomuns. Duas histórias de quem escrevia história e que se encontraram durante anos, um ouvia e o outro falava. O resultado foi uma obra singular do jornalismo literário, leitura obrigatória para quem deseja um dia aprender a narrar o mundo.


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