Literatura
Publicado em literatura por Marcel Camargo,
é graduado em Letras e Mestre em "História,
Filosofia e Educação" pela Unicamp/SP, atua como Supervisor de Ensino e
como Professor Universitário e de Educação Básica. É apaixonado por leituras,
filmes, músicas, chocolate e pela família.
Análise
comparativa entre as categorizações de colonizador e de colonizado
desenvolvidas nos estudos de Albert Memmi sobre a opressão colonial e as
personagens centrais do romance indianista “Iracema”, de José de Alencar.
Em “Retrato do Colonizado precedido pelo Retrato do Colonizador”, Albert
Memmi enfoca o processo de colonização enquanto necessidade de coabitação entre
duas culturas antagônicas e irreconciliáveis, analisando as consequências
provindas do choque entre a metrópole e a colônia a partir das complexas
relações sociais e psicológicas aí encerradas, configurando a sistemática
colonialista como um sistema de dominação. O autor tece múltiplas reflexões à
medida que focaliza a colonização em si (seus sentidos, elementos
constituintes), categorizando o colonizador em suas diferentes vertentes e
respectivas implicações, assim como o faz com o colonizado.
O autor
ressalta que quase sempre o colonizador passa a desvalorizar sistematicamente o
colonizado, evidenciando as diferenças entre si mesmo e o outro, valorizando em
seu favor tais diferenças e alçando-as ao absoluto, legitimando, desse modo, a
sua pretensa superioridade sobre o dominado, negando-lhe, inclusive, a
liberdade de escolha entre ser ou não colonizado. Consequentemente, a este, em
determinado momento, não restará outra saída a não ser mudar de condição,
embrenhando-se numa vã tentativa de igualar-se ao modelo prestigioso de
riquezas, honrarias, técnica e autoridade que se lhe impõe na figura do
colonizador, não se importando com o anular-se ou o perder-se nesse modelo
pretendido.
Segundo
Memmi, no afã de doutrinar e explorar o colonizado, neutralizando-o e
privando-o de sua identidade, o dominador atinge a cultura do dominado,
tolhendo-lhe, ao mesmo tempo, a aquisição de novos saberes. Nesse contexto,
para sobreviver e imbuir-se de identidade, o dominado necessita suprimir a
colonização e o colonizado que se tornou. Para isentar-se de seu papel
usurpador, fugindo à própria condenação pessoal, não se aceitando como
privilegiado ilegítimo, o colonizador, por sua vez, precisa também superar e
destruir o dominador que se tornou. Trata-se, como se vê, de uma dinâmica
dialética de construção e desconstrução de identidades, em que os antagonismos
sistematicamente afastam e aproximam os atores históricos.
Tais
estudos inevitavelmente nos remetem à obra “Iracema’, de José de Alencar, cujos
protagonistas sintetizam, a seu modo, tal confronto histórico e cultural, ao
retratar o índio puro - colonizado/dominado - que se integra ao branco -
colonizador/dominador -, para formarem uma nova nacionalidade, haja vista que a
obra surge num contexto de busca dessa identidade da nação brasileira. Nesta
obra, a chegada do homem branco às terras selvagens desestrutura a cultura
local, até então equilibrada. A união entre o colonizador Martim e a colonizada
Iracema prenuncia o desenrolar consonante com as reflexões de Memmi, em cujo
cerne avulta a afirmação de que o laço entre colonizado e colonizador destrói e
constrói – o entrelaçamento entre as personagens do romance atingem tanto a
eles próprios quanto aos que os circundavam, a ponto de nada mais ser como
antes a partir de então. E, por mais que tente integrar-se à cultura do
colonizado, Martim encontra-se como um exilado em sua colônia, acalentando sua
saudade da metrópole, mesmo após ter se tornado Coatiabo, assim como Iracema
também se sente uma exilada quando deixa sua tribo em nome de seu amor branco.
Em certo
momento, Martim aparentemente renega aos seus, adotando a pátria da esposa
índia em cerimonial que lhe confere o status de guerreiro vermelho, filho de
Tupã. Ao mesmo tempo, porém, sua relação com Iracema a descaracteriza perante
sua tribo, pois já não era mais a virgem de Tupã. Além disso, a índia ainda
coabita com o dominador e com a tribo inimiga, chegando a lutar ao lado desses
inimigos contra seus irmãos. Percebemos, aqui, que a índia, em razão de sua
união com o branco, desvinculou-se de sua cultura, mas não assimilou nenhuma
outra, encontrando-se, assim, culturalmente aérea, visto que, àquela altura, já
se isentava de identidade. Martim, por sua vez, parece tomar consciência de seu
papel tirano, no sentido de que chega a desestruturar toda uma cultura (desloca
e descaracteriza Iracema diante de sua tribo, cria desentendimentos entre os
tabajaras, entre outros). Como sustentado por Memmi, enquanto o guerreiro
(colonizador) coabitar com o dominado (colonizado), esse mal-estar não cessará.
Emblemática
da incoerência dessa relação entre Martim e Iracema é o “sono de jurema”
(aquele que, segundo a cultura tabajara, traz a felicidade), estado
ritualístico onírico, alucinógeno, sob o qual os amantes camuflam o idílio
amoroso, como se a sua consumação carnal fosse impossível de ser vivificada
conscientemente; ou seja, o laço que une colonizado e colonizador torna-se,
enquanto tal, indevido – e as personagens de Alencar parecem pressentir as
desastrosas consequências dessa união.
Martim
parte para lutar contra os brancos, assim como já lutara Iracema contra seu
povo. Sozinha e solitária, a índia dá à luz o filho do casal, Moacir, o filho
da dor, das descaracterizações, das assimilações incoerentes e das perdas que a
relação indevida entre a índia e o português carrega consigo. Como afirma
Memmi, o colonizador domina a colônia e traz consigo seus hábitos, festas,
tradições, religião, em detrimento da cultura e dos saberes do colonizado.
Iracema (sugestivo anagrama de América) morre, assim como possivelmente
ocorrerá com sua cultura após a dizimação de seu povo. Nem Martim nem Iracema
suprimem aquilo que se tornaram – colonizador e colonizado, respectivamente.
Moacir, nesse sentido, assomando-se como predestinação da futura nação
brasileira, das lutas, das mortes, da usurpação que brotará do sistema colonial
a ser aí implantado, não deixa de retratar o sofrimento inerente ao seu próprio
destino.
Tais são as
implicações encerradas na união entre Martim e Iracema (colonizador e
colonizado), um laço destruidor e, paradoxalmente, criador. Destruidor porque
aniquila seus participantes, privando-lhes, sobretudo, a liberdade de escolha,
em meio a um processo em que o dominador, pouco à vontade, usufrui de vantagens
advindas do esmagamento da identidade do dominado. Criador porque o sistema
colonial cria colonizadores e colonizados, quase nunca sem que se enfrentem
resistências. Ao entrarem em contato um com o outro, a lógica colonialista e
tudo o que ela encerra entram em decurso. Sendo assim, o desenrolar da união das
personagens de Alencar encontra-se inscrito no fato colonial em si, defendido
por Memmi. E, embora a colonização deva ser suprimida para se anularem tais
papéis, em “Iracema” o colonizador assume seu protagonismo, dando sequência à
colonização da América, engendrando, nesse contexto, a formação da nova nação
brasileira - da qual Moacir, filho do sofrimento, parece ser seu retrato mais
fiel.
Hoje,
porém, ouso vislumbrar um cenário menos pessimista, ao olhar nosso passado
colonial, acrescentando que esse laço criou, também, resistências e formas de
combate à supressão total das culturas colonizadas, visto que a presença do
oprimido ainda perdura, lutando para se manter viva, embora sob preconceitos
e/ou violência de toda ordem. Carregamos em nós, não há como negar, muito das
cores, dos sabores, dos sons, das crenças dos habitantes primeiros da nação
brasileira, a qual, felizmente, está em constante evolução, caminhando entre as
rupturas e permanências, lutando para firmar uma identidade própria frente ao
cenário mundial, mesmo que Moacir pareça timidamente ensaiar seus primeiros
passos.
© obvious: http://obviousmag.org/pensando_nessa_gente_da_vida/2015/em-retrato-do-colonizado-precedido.html#ixzz3fxjhytN3
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