Literatura
O SINGULAR CONTRASTE ENTRE
O ROMANTISMO E O REALISMO DE EÇA DE QUEIRÓS
“... escrevo para dar vida às minhas ideias e
para dar forma aos meus sentimentos.
Sou convicta de que o ato de escrever expressa fidedignamente as mais variadas impressões do indivíduo acerca de ideologias e subjetividades, podendo oferecer uma visão plena dos aspectos do mundo.”
Sou convicta de que o ato de escrever expressa fidedignamente as mais variadas impressões do indivíduo acerca de ideologias e subjetividades, podendo oferecer uma visão plena dos aspectos do mundo.”
O conto de
Eça de Queirós mostra como a estética romântica não se aplica à realidade
mundana. O autor revela o quanto a aparência, elemento primordial do
Romantismo, é valorizada e o quanto ela corrói o que há de mais puro e
essencial. É consolidada uma crítica acerca de como a beleza delicada de uma
jovem mascara a obscuridade de seu caráter.
O conto
Singularidades de uma rapariga loura, de Eça de Queirós, grande autor do
Realismo em Portugal, é marcado por inúmeras características que, juntas, tecem
uma totalidade que engloba todo o sentido da obra e revelam um curioso
contraste entre as estéticas literárias do Romantismo e Realismo. Trata-se do
caso de amor à primeira vista vivido por Macário, guarda-livros de uma loja de
tecidos de Lisboa que se apaixona pela jovem burguesa Luísa, que passa todos os
dias pela janela de seu escritório, com quem deseja se casar. Porém, Macário
passa por inúmeras dificuldades para adquirir recursos materiais e financeiros
necessários para construir uma vida conjugal, e, Luísa vive com a mãe e estão
inseridas em um grupo de burgueses ricos que tem suas posses almejadas pelas
duas. As dificuldades enfrentadas pelo personagem Macário para construir uma
família com a jovem burguesa Luísa são a reprovação do seu tio Francisco, que
não aceita que o sobrinho tenha um envolvimento amoroso com a jovem porque não
acredita na integridade do caráter dela, o trabalho árduo e duradouro para
conseguir dinheiro, pois viaja para um lugar distante para servir de mão de
obra a um trabalho braçal, o endividamento por assumir os prejuízos de uma loja
de ferragens e, por fim, a revelação da má índole de sua amada, que constitui o
desfecho da obra.
A jovem
oportunista dá alguns indícios que vão sendo revelados no decorrer da narrativa
de que não é uma pessoa confiável. Exatamente no dia em que a moça burguesa
visita a loja de tecidos, o proprietário percebe o desaparecimento de uma
mercadoria. Posteriormente, numa mesa de jogo, Macário deixa cair
acidentalmente próximo à Luísa, uma moeda de ouro que desaparece
misteriosamente. No final do conto, temos a ocasião em que Macário vai com a
noiva a uma joalheria e ela é flagrada roubando um anel. O discurso
envergonhado e decepcionado, porém sucinto, dirigido pelo noivo à noiva é este:
“− Vai-te. És uma ladra!”.
No tocante
ao contraste estabelecido por Eça, é importante considerar as intenções do
autor em apresentar determinados valores românticos que caem por terra em sua
obra realista. É válido lembrar que a ironia é a principal ferramenta utilizada
pelo escritor para dada finalidade. No início do conto, o narrador-personagem,
que não tem uma denominação e que já tem o conhecimento completo da desilusão
amorosa de Macário, se descreve como um indivíduo “positivo e realista”, no
entanto, ele confessa que se deixa levar pelo misticismo, pelo transcendental,
e inicia uma descrição mística da paisagem, das pessoas, como se houvesse um
mistério, o que pode ser intrinsecamente relacionado com a personalidade
obscura de Luísa, porém, esta atitude do narrador ora realista, descrente no
amor, ora romântico e místico, pode significar um ataque da ideologia realista
à estética romântica por meio da ironia.
Eça de
Queirós atribui a Macário características de um personagem do Romantismo, pois
o guarda-livros também é parcialmente dotado por esse caráter místico uma vez
que é oriundo de uma família religiosa e que se deixa levar pela emoção, pelos
sonhos e pela fé, como se houvesse uma força que o motiva de realizar o seu
grande sonho de se casar com Luísa, por outro lado, antes de se apaixonar, o
narrador destaca que Macário era extremamente racional – tal como um personagem
realista – e possuía habilidades práticas e aritméticas, o que revela, desta
forma, um dos principais antagonismos da obra, antagonismos estes que também
irão estruturar a grande crítica do autor às mazelas das relações
interpessoais, como a traição e a quebra de confiança, pois, na estética
romântica, a beleza externa era primordial para que alguém se apaixonasse, e
não o caráter do indivíduo.
Descrições
bem detalhadas e subjetivas com adjetivos rebuscados caracterizam o perfil da
obra romântica. Na obra realista de Eça, as descrições são minuciosas. O espaço
é descrito de tal forma que é capaz de traduzir os sentimentos dos personagens,
sobretudo os de Macário. E pode o amor tomar um grande tempo e espaço na vida
de alguém? No Romantismo sim! Vê-se este aspecto em Macário, pois, o seu
encanto pela loura era tão grande que ele se esquecia dos seus deveres e dos
seus problemas cotidianos, pois nada mais lhe importava, somente Luísa.
Retomando a
temática do misticismo, tratado de maneira irônica – assim como qualquer
aspecto da estética romântica presente na obra – as dificuldades enfrentadas
por Macário para se casar com Luísa transmitem a ideia de que, desde o início,
alguma força maior indicava que nada iria dar certo na sua vida e que seu
destino estaria arruinado ao lado da jovem loura, mas, o seu amor por ela não o
deixou desistir apesar de todos os obstáculos, porém, ao mesmo tempo em que a
obra apresenta uma característica idealista sobre o amor, toda a ideia de
romantismo é rompida no final do conto com o furto de Luísa, revelando uma
grande realidade existente na sociedade, que é a corrupção dos homens, e, a
atitude do autor em mostrar os males da sociedade, sobretudo os do homem, é uma
das principais características da estética do Realismo.
O autor português
realista implantou em Macário a alegoria da ingenuidade, da idealização, da
exaltação amorosa, aspectos provenientes da figura do herói romântico. Em razão
do investimento na estética realista em detrimento da romântica, Eça de Queirós
teve a brilhante ideia de depositar em um narrador-personagem irônico a
responsabilidade de uma crítica bem solidificada a respeito de uma ingenuidade
do sentimentalismo humano que não se encontra na realidade das relações
humano-afetivas. O que se vê no conto são personagens com perfis reais vivendo
situações cabíveis ao mundo real, somente para que o leitor se identifique com
a narrativa, mas são personagens cujas características não condizem com a
realidade da história, tornando-se falsas, e, desta forma, fica claramente
exposta a dualidade essência versus aparência. Enquanto o Romantismo diz que
Luísa é uma moça angelical, inocente e puritana, o Realismo toma o lugar e diz
que isso não passa de uma máscara para enganar o tão ingênuo Macário. Para Eça,
o Romantismo engana, esconde, finge, e o Realismo simplesmente investiga,
reconhece e revela. Sumariamente, a chave do entendimento da obra de Eça de
Queirós seria um grande reconhecimento de que a humanidade vem, desde sempre,
sendo edificada por desilusões, por decepções e sofrimentos que desconcertam o
mundo e o ser humano, e o Realismo trouxe à tona esses acontecimentos trágicos
da sociedade e da vida do homem, problemáticas que até então vinham sendo
mascaradas pelo movimento idealista do Romantismo.
PS: As imagens foram retiradas do filme
Singularidades de uma rapariga loura, do cineasta português Manoel de Oliveira.
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