terça-feira, 18 de agosto de 2015

O SINGULAR CONTRASTE ENTRE O ROMANTISMO E O REALISMO DE EÇA DE QUEIRÓS

Literatura


O SINGULAR CONTRASTE ENTRE O ROMANTISMO E O REALISMO DE EÇA DE QUEIRÓS



Publicado em literatura por Stephannie Campos,
“... escrevo para dar vida às minhas ideias e para dar forma aos meus sentimentos.
Sou convicta de que o ato de escrever expressa fidedignamente as mais variadas impressões do indivíduo acerca de ideologias e subjetividades, podendo oferecer uma visão plena dos aspectos do mundo.”



O conto de Eça de Queirós mostra como a estética romântica não se aplica à realidade mundana. O autor revela o quanto a aparência, elemento primordial do Romantismo, é valorizada e o quanto ela corrói o que há de mais puro e essencial. É consolidada uma crítica acerca de como a beleza delicada de uma jovem mascara a obscuridade de seu caráter.




O conto Singularidades de uma rapariga loura, de Eça de Queirós, grande autor do Realismo em Portugal, é marcado por inúmeras características que, juntas, tecem uma totalidade que engloba todo o sentido da obra e revelam um curioso contraste entre as estéticas literárias do Romantismo e Realismo. Trata-se do caso de amor à primeira vista vivido por Macário, guarda-livros de uma loja de tecidos de Lisboa que se apaixona pela jovem burguesa Luísa, que passa todos os dias pela janela de seu escritório, com quem deseja se casar. Porém, Macário passa por inúmeras dificuldades para adquirir recursos materiais e financeiros necessários para construir uma vida conjugal, e, Luísa vive com a mãe e estão inseridas em um grupo de burgueses ricos que tem suas posses almejadas pelas duas. As dificuldades enfrentadas pelo personagem Macário para construir uma família com a jovem burguesa Luísa são a reprovação do seu tio Francisco, que não aceita que o sobrinho tenha um envolvimento amoroso com a jovem porque não acredita na integridade do caráter dela, o trabalho árduo e duradouro para conseguir dinheiro, pois viaja para um lugar distante para servir de mão de obra a um trabalho braçal, o endividamento por assumir os prejuízos de uma loja de ferragens e, por fim, a revelação da má índole de sua amada, que constitui o desfecho da obra.
A jovem oportunista dá alguns indícios que vão sendo revelados no decorrer da narrativa de que não é uma pessoa confiável. Exatamente no dia em que a moça burguesa visita a loja de tecidos, o proprietário percebe o desaparecimento de uma mercadoria. Posteriormente, numa mesa de jogo, Macário deixa cair acidentalmente próximo à Luísa, uma moeda de ouro que desaparece misteriosamente. No final do conto, temos a ocasião em que Macário vai com a noiva a uma joalheria e ela é flagrada roubando um anel. O discurso envergonhado e decepcionado, porém sucinto, dirigido pelo noivo à noiva é este: “− Vai-te. És uma ladra!”.


No tocante ao contraste estabelecido por Eça, é importante considerar as intenções do autor em apresentar determinados valores românticos que caem por terra em sua obra realista. É válido lembrar que a ironia é a principal ferramenta utilizada pelo escritor para dada finalidade. No início do conto, o narrador-personagem, que não tem uma denominação e que já tem o conhecimento completo da desilusão amorosa de Macário, se descreve como um indivíduo “positivo e realista”, no entanto, ele confessa que se deixa levar pelo misticismo, pelo transcendental, e inicia uma descrição mística da paisagem, das pessoas, como se houvesse um mistério, o que pode ser intrinsecamente relacionado com a personalidade obscura de Luísa, porém, esta atitude do narrador ora realista, descrente no amor, ora romântico e místico, pode significar um ataque da ideologia realista à estética romântica por meio da ironia.
Eça de Queirós atribui a Macário características de um personagem do Romantismo, pois o guarda-livros também é parcialmente dotado por esse caráter místico uma vez que é oriundo de uma família religiosa e que se deixa levar pela emoção, pelos sonhos e pela fé, como se houvesse uma força que o motiva de realizar o seu grande sonho de se casar com Luísa, por outro lado, antes de se apaixonar, o narrador destaca que Macário era extremamente racional – tal como um personagem realista – e possuía habilidades práticas e aritméticas, o que revela, desta forma, um dos principais antagonismos da obra, antagonismos estes que também irão estruturar a grande crítica do autor às mazelas das relações interpessoais, como a traição e a quebra de confiança, pois, na estética romântica, a beleza externa era primordial para que alguém se apaixonasse, e não o caráter do indivíduo.
Descrições bem detalhadas e subjetivas com adjetivos rebuscados caracterizam o perfil da obra romântica. Na obra realista de Eça, as descrições são minuciosas. O espaço é descrito de tal forma que é capaz de traduzir os sentimentos dos personagens, sobretudo os de Macário. E pode o amor tomar um grande tempo e espaço na vida de alguém? No Romantismo sim! Vê-se este aspecto em Macário, pois, o seu encanto pela loura era tão grande que ele se esquecia dos seus deveres e dos seus problemas cotidianos, pois nada mais lhe importava, somente Luísa.

Retomando a temática do misticismo, tratado de maneira irônica – assim como qualquer aspecto da estética romântica presente na obra – as dificuldades enfrentadas por Macário para se casar com Luísa transmitem a ideia de que, desde o início, alguma força maior indicava que nada iria dar certo na sua vida e que seu destino estaria arruinado ao lado da jovem loura, mas, o seu amor por ela não o deixou desistir apesar de todos os obstáculos, porém, ao mesmo tempo em que a obra apresenta uma característica idealista sobre o amor, toda a ideia de romantismo é rompida no final do conto com o furto de Luísa, revelando uma grande realidade existente na sociedade, que é a corrupção dos homens, e, a atitude do autor em mostrar os males da sociedade, sobretudo os do homem, é uma das principais características da estética do Realismo.
O autor português realista implantou em Macário a alegoria da ingenuidade, da idealização, da exaltação amorosa, aspectos provenientes da figura do herói romântico. Em razão do investimento na estética realista em detrimento da romântica, Eça de Queirós teve a brilhante ideia de depositar em um narrador-personagem irônico a responsabilidade de uma crítica bem solidificada a respeito de uma ingenuidade do sentimentalismo humano que não se encontra na realidade das relações humano-afetivas. O que se vê no conto são personagens com perfis reais vivendo situações cabíveis ao mundo real, somente para que o leitor se identifique com a narrativa, mas são personagens cujas características não condizem com a realidade da história, tornando-se falsas, e, desta forma, fica claramente exposta a dualidade essência versus aparência. Enquanto o Romantismo diz que Luísa é uma moça angelical, inocente e puritana, o Realismo toma o lugar e diz que isso não passa de uma máscara para enganar o tão ingênuo Macário. Para Eça, o Romantismo engana, esconde, finge, e o Realismo simplesmente investiga, reconhece e revela. Sumariamente, a chave do entendimento da obra de Eça de Queirós seria um grande reconhecimento de que a humanidade vem, desde sempre, sendo edificada por desilusões, por decepções e sofrimentos que desconcertam o mundo e o ser humano, e o Realismo trouxe à tona esses acontecimentos trágicos da sociedade e da vida do homem, problemáticas que até então vinham sendo mascaradas pelo movimento idealista do Romantismo.
PS: As imagens foram retiradas do filme Singularidades de uma rapariga loura, do cineasta português Manoel de Oliveira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário