Machado
de Assis
RESUMO E
ANÁLISE DO ENREDO
Fernando Marcílio
Mestre em Teoria
Literária pela Unicamp
O conto tem início com
uma explanação do autor a respeito de algumas atividades e produtos
relacionados ao período da escravidão no Brasil, particularmente a repressão
aos negros fujões: a máscara de ferro, que impedia a alimentação, era utilizada
para afastar o vício da cachaça, que geralmente conduzia ao roubo; a coleira de
ferro, castigo aplicado a escravos recapturados; para a produção de tais
artefatos, recorria-se a funileiros e ferreiros, atividade então próspera.
Outro ofício era o de caçador de escravos fugidos, ao qual se dedicavam aqueles
que não encontravam sucesso em outra profissão.
É o caso do
protagonista, Cândido Neves. Depois de tentar, sucessivamente, os ofícios de
tipógrafo, comerciante e entalhador, tornou-se caçador de escravos. A paixão
pela moça Clara trouxe o desejo de constituir família e a ansiedade por uma
ocupação mais estável e nobre. Clara vivia com uma tia, Mônica, a quem
auxiliava na profissão de costureira, e que era contrária à união, pela falta
de recursos do casal. Quando Cândido e Clara decidiram ter um filho, ela
externou seu temor quanto aos problemas que a existência de mais uma boca para
alimentar traria para a casa. Cândido e Clara, no entanto,
insistiram.
Os escravos fugidos já
conheciam a fama da eficiência de Cândido; além disso, havia mais caçadores na
praça, razões suficientes para diminuírem os vencimentos do rapaz. A gravidez
de Clara avançava e Mônica sugeriu que eles entregassem a criança à Roda dos
Enjeitados, local existente em instituições de caridade e que recebia filhos
indesejados. O casal se pôs prontamente contrário a essa decisão.
No entanto, as
dificuldades, que já eram muitas, aumentaram com a pressão exercida pelo
proprietário da casa onde residiam, que exigia receber em poucos dias o aluguel
atrasado de três meses. Para remediar a situação, Mônica conseguiu alguns
cômodos, de favor, na parte baixa da casa de uma conhecida. E conseguiu, por
fim, convencer o jovem casal a aceitar a ideia de se desfazer do filho.
A criança nasceu. Era um
menino, e, com muita relutância, Cândido se dirigiu ao local onde ficava a Roda
dos enjeitados. No caminho, deparou-se com Arminda, uma mulata que ele
procurava há tempos, a devolução lhe traria a recompensa de cem mil-réis,
dinheiro suficiente para suprir-lhe todas as necessidades. Apressadamente,
deixou a criança em uma farmácia cujo proprietário conhecera na véspera e
partiu na perseguição da escrava.
Alcançou-a e a amarrou, levando-a consigo. A
escrava revelou que estava grávida e que temia os castigos corporais a que
seria submetida. Surdo a esses apelos, Cândido a entregou ao dono. No transe da
luta para livrar-se, a mulher acabou abortando. Cândido recebeu o dinheiro da
recompensa, apanhou o filho com o farmacêutico e voltou para casa com o menino.
CONTEXTO
Sobre
o autor
Machado de Assis é, reconhecidamente, o maior escritor brasileiro de todos os
tempos. Embora tenha sido também poeta e dramaturgo, destacou-se na prosa de
ficção, tanto no romance – como comprovam obras primas como Memórias
Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro – quanto no
conto – como aqueles reunidos em Várias Histórias .
Importância do conto
Pai contra mãe é um dos contos da antologia Relíquias
de Casa Velha, composta por textos que o próprio Machado reuniu,
publicando-os em 1906, dois anos antes de sua morte. Os contos evidenciam pleno
domínio da técnica da narrativa curta e, acima de tudo, capacidade de retirar
do episódico e do acidental um desdobramento amplo, de alcance humano.
Período Histórico
Machado de Assis viveu na própria pele os problemas gerados pela escravidão no
Brasil. O escritor era mulato e, por conta disso, enfrentou alguns preconceitos
ao longo de sua vida. Mas a qualidade de sua arte e a força de sua
personalidade foram suficientes para vencer todos os obstáculos.
ANÁLISE
O conto “Pai contra mãe”
apresenta duas temporalidades distintas. Uma delas é aquela em que se coloca o
próprio narrador, que fala de um momento posterior à abolição da escravatura no
Brasil. A outra é a que diz respeito ao tempo da ação em si, que é anterior a
esse fato. A estrutura do conto demarca essas duas temporalidades de forma
explícita: o texto pode ser dividido em duas partes – a primeira, contendo uma
explanação de caráter histórico informativo; e a segunda, que traz a narrativa.
Assim, esta última assume a condição de ilustração do ponto de vista
desenvolvido na primeira. É o que se pode chamar de exemplum,
gênero literário medieval utilizado para adornar os sermões de pregadores da
época.
LEMBRETE
Em “Pai contra mãe”, dois traços típicos de Machado
de Assis ganham destaque: em primeiro lugar, a prática da ironia; em segundo, a
articulação entre enredo e as reflexões que ele aciona.
Na parte introdutória, o
narrador trata de algumas práticas associadas ao período da escravidão, entre
as quais aquela que será exercida pelo protagonista do conto – caçador de
escravos. Na parte narrativa, desenvolve o tema, mostrando as angústias do
protagonista no exercício de sua profissão.
Como ponto comum às duas
partes, temos a prática de um recurso muito frequente em toda a obra
machadiana: a ironia. Logo no início, ao tratar da escravidão, ele afirma:
“Eram muitos [escravos], e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia
ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada”.
Depois, na narrativa, o mesmo procedimento aparece: “[...] não davam que comer,
mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço”. Como se pode notar,
manifesta-se aqui o humor sombrio típico do escritor.
Mas a grande ironia fica
por conta da situação em que é colocado o protagonista: para salvar a vida do
filho, Cândido tem que entregar aos donos a mulata Arminda, que acaba por
abortar. Na oposição entre eles, temos as mesmas razões de luta – a família, a
prole – mas, para a satisfação de um dos lados, é preciso que o outro sofra. Na
verdade, tanto Cândido quanto a mulata são vítimas do mesmo sistema: o
escravismo. Assim, a crítica do conto tem seu alvo bem definido. E o acerta em
cheio.
No entanto, o teor crítico da narrativa vai além da
prática escravocrata, alcança um patamar superior à situação brasileira
específica. De fato, pode-se vislumbrar na narrativa uma análise do
comportamento humano: para salvar uma criança, Cândido permite a morte de
outro. Sua fala ao final do conto é bastante significativa: “Nem todas as
crianças vingam”. Dessa forma, o ser humano constrói as justificativas para os
seus gestos mais baixos, suas atitudes mais reprováveis.
Origem: educacao.globo.com/literatura/
Nenhum comentário:
Postar um comentário