sexta-feira, 28 de agosto de 2015

PAI CONTRA MÃE


 Foi listado entre os 100 melhores contos brasileiros de todos os tempos

Machado de Assis

RESUMO E ANÁLISE DO ENREDO

Fernando Marcílio
Mestre em Teoria Literária pela Unicamp


RESUMO
O conto tem início com uma explanação do autor a respeito de algumas atividades e produtos relacionados ao período da escravidão no Brasil, particularmente a repressão aos negros fujões: a máscara de ferro, que impedia a alimentação, era utilizada para afastar o vício da cachaça, que geralmente conduzia ao roubo; a coleira de ferro, castigo aplicado a escravos recapturados; para a produção de tais artefatos, recorria-se a funileiros e ferreiros, atividade então próspera. Outro ofício era o de caçador de escravos fugidos, ao qual se dedicavam aqueles que não encontravam sucesso em outra profissão. 

É o caso do protagonista, Cândido Neves. Depois de tentar, sucessivamente, os ofícios de tipógrafo, comerciante e entalhador, tornou-se caçador de escravos. A paixão pela moça Clara trouxe o desejo de constituir família e a ansiedade por uma ocupação mais estável e nobre. Clara vivia com uma tia, Mônica, a quem auxiliava na profissão de costureira, e que era contrária à união, pela falta de recursos do casal. Quando Cândido e Clara decidiram ter um filho, ela externou seu temor quanto aos problemas que a existência de mais uma boca para alimentar traria para a casa. Cândido e Clara, no entanto, insistiram.  
Os escravos fugidos já conheciam a fama da eficiência de Cândido; além disso, havia mais caçadores na praça, razões suficientes para diminuírem os vencimentos do rapaz. A gravidez de Clara avançava e Mônica sugeriu que eles entregassem a criança à Roda dos Enjeitados, local existente em instituições de caridade e que recebia filhos indesejados. O casal se pôs prontamente contrário a essa decisão.  
No entanto, as dificuldades, que já eram muitas, aumentaram com a pressão exercida pelo proprietário da casa onde residiam, que exigia receber em poucos dias o aluguel atrasado de três meses. Para remediar a situação, Mônica conseguiu alguns cômodos, de favor, na parte baixa da casa de uma conhecida. E conseguiu, por fim, convencer o jovem casal a aceitar a ideia de se desfazer do filho. 
A criança nasceu. Era um menino, e, com muita relutância, Cândido se dirigiu ao local onde ficava a Roda dos enjeitados. No caminho, deparou-se com Arminda, uma mulata que ele procurava há tempos, a devolução lhe traria a recompensa de cem mil-réis, dinheiro suficiente para suprir-lhe todas as necessidades. Apressadamente, deixou a criança em uma farmácia cujo proprietário conhecera na véspera e partiu na perseguição da escrava. 

Alcançou-a e a amarrou, levando-a consigo. A escrava revelou que estava grávida e que temia os castigos corporais a que seria submetida. Surdo a esses apelos, Cândido a entregou ao dono. No transe da luta para livrar-se, a mulher acabou abortando. Cândido recebeu o dinheiro da recompensa, apanhou o filho com o farmacêutico e voltou para casa com o menino.

CONTEXTO

Sobre o autor 
Machado de Assis é, reconhecidamente, o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Embora tenha sido também poeta e dramaturgo, destacou-se na prosa de ficção, tanto no romance – como comprovam obras primas como Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro – quanto no conto – como aqueles reunidos em Várias Histórias .

Importância do conto

Pai contra mãe é um dos contos da antologia Relíquias de Casa Velha, composta por textos que o próprio Machado reuniu, publicando-os em 1906, dois anos antes de sua morte. Os contos evidenciam pleno domínio da técnica da narrativa curta e, acima de tudo, capacidade de retirar do episódico e do acidental um desdobramento amplo, de alcance humano. 


Período Histórico

Machado de Assis viveu na própria pele os problemas gerados pela escravidão no Brasil. O escritor era mulato e, por conta disso, enfrentou alguns preconceitos ao longo de sua vida. Mas a qualidade de sua arte e a força de sua personalidade foram suficientes para vencer todos os obstáculos.

ANÁLISE
O conto “Pai contra mãe” apresenta duas temporalidades distintas. Uma delas é aquela em que se coloca o próprio narrador, que fala de um momento posterior à abolição da escravatura no Brasil. A outra é a que diz respeito ao tempo da ação em si, que é anterior a esse fato. A estrutura do conto demarca essas duas temporalidades de forma explícita: o texto pode ser dividido em duas partes – a primeira, contendo uma explanação de caráter histórico informativo; e a segunda, que traz a narrativa. Assim, esta última assume a condição de ilustração do ponto de vista desenvolvido na primeira. É o que se pode chamar de exemplum, gênero literário medieval utilizado para adornar os sermões de pregadores da época. 

LEMBRETE

Em “Pai contra mãe”, dois traços típicos de Machado de Assis ganham destaque: em primeiro lugar, a prática da ironia; em segundo, a articulação entre enredo e as reflexões que ele aciona.

Na parte introdutória, o narrador trata de algumas práticas associadas ao período da escravidão, entre as quais aquela que será exercida pelo protagonista do conto – caçador de escravos. Na parte narrativa, desenvolve o tema, mostrando as angústias do protagonista no exercício de sua profissão. 

Como ponto comum às duas partes, temos a prática de um recurso muito frequente em toda a obra machadiana: a ironia. Logo no início, ao tratar da escravidão, ele afirma: “Eram muitos [escravos], e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada”. Depois, na narrativa, o mesmo procedimento aparece: “[...] não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço”. Como se pode notar, manifesta-se aqui o humor sombrio típico do escritor.

Mas a grande ironia fica por conta da situação em que é colocado o protagonista: para salvar a vida do filho, Cândido tem que entregar aos donos a mulata Arminda, que acaba por abortar. Na oposição entre eles, temos as mesmas razões de luta – a família, a prole – mas, para a satisfação de um dos lados, é preciso que o outro sofra. Na verdade, tanto Cândido quanto a mulata são vítimas do mesmo sistema: o escravismo. Assim, a crítica do conto tem seu alvo bem definido. E o acerta em cheio. 
No entanto, o teor crítico da narrativa vai além da prática escravocrata, alcança um patamar superior à situação brasileira específica. De fato, pode-se vislumbrar na narrativa uma análise do comportamento humano: para salvar uma criança, Cândido permite a morte de outro. Sua fala ao final do conto é bastante significativa: “Nem todas as crianças vingam”. Dessa forma, o ser humano constrói as justificativas para os seus gestos mais baixos, suas atitudes mais reprováveis.


Origem: educacao.globo.com/literatura/

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