Livro
Publicado por Rafael Prudencio,
“nasci no Rio Grande do Sul, cresci em Santa Catarina, mas não sei dizer
a que lugar pertenço. Tenho 23 anos, estudo Letras na UFRGS e represento um
pequeno número de pessoas que quer viver como professor. Meu maior sonho na
educação é formar leitores.”
Um momento decisivo
para minha formação como leitor foi as leituras que tive em casa.
Uma criança muita pequena está sob a cama. Ao
lado dela, a mãe segura um livro que não se pode saber qual é. Pelo formato e
pelas cores, deduz-se que é infantil. Desloca-se o olhar para o canto da
imagem, muitas vezes despercebido por um observador menos atento. Há uma
pequena estante vazia. Pelo brilho do móvel e ausência de marcas do tempo,
percebe-se que é nova. Ela se encontra em diagonal à cama. Anos mais tarde,
quando a criança não precisar da ajuda de seus pais para caminhar, ela fará o
caminho cama/estante e estante/cama muitas e muitas vezes. Várias pessoas
definiriam esse móvel como uma simples estante, construída como tantas ao longo
do tempo para guardar objetos. Mas para criança da imagem, que anos mais tarde
está na posição de observador e conhece como ninguém aquele quarto, aquela
estante é especial, afinal, ela guardava histórias.
Foi meu pai que construiu a minha primeira estante
para guardar histórias. Foi daquele móvel que saíram as histórias que me
formaram com leitor e como pessoa. Quando eu era muito pequeno e ainda não
conseguia ler, meus pais liam em voz alta pra mim. E é daquelas vozes que me
lembro quando estou sozinho com um livro aberto. Escutar as palavras fez com
que eu apreciasse tanto os sons delas a ponto de aplicar até os dias de hoje o
método de me escutar em minhas próprias leituras. Em casa, eu lia histórias em
quadrinhos, livros de ficção científica; na escola, somente livros que eu não
entendia e que não me interessavam. Em casa, após terminar uma história, eu
deitava na cama pensando no que leria após. Na escola, queria esquecer tudo que
havia lido, aquela linguagem rebuscada, daqueles personagens chatos e que não
dialogavam comigo. Mas eu não podia.
De repente lá estou eu: sentado em minha cadeira,
olhando para uma folha. É uma ficha de leitura! Nela, algumas perguntas de uma
história que, embora tenha o mesmo título do livro que eu li, não trata do
mesmo livro. Mas a professora tenta nos convencer o contrário. Aos poucos
percebia que estudar literatura na escola era responder o que os professores
queriam que respondêssemos. Aquela ficha de leitura algemou minha imaginação.
Quando saia da escola e chegava em casa encontrava em meus livros a chave para
me soltar daquelas algemas.
Lembro das tardes que matava aula para percorrer as
Terras-Médias de Tolkien. Era necessário tempo para ir num lugar tão longe,
conhecer tantos personagens, desfrutar daquela exuberante paisagem. O Tolkien
foi o primeiro pintor de palavras que conheci.
Lembro que um dia meu pai me presenteou com o livro
"Vinte Mil Léguas Submarinas", do Júlio Verne. Julio Verne me ensinou
que era possível inventar o que ainda não havia sido inventado.
Pouco a pouco eu percebia que não lia somente pelo
prazer.
Mas meu maior problema era na escola. Os
professores de português e literatura que tive durante esse período eram ‘desformadores’
de leitores. Não fosse a minha estante para guardar histórias, eu teria essa ‘desformação’
em minha vida. Tive amigos que não tiveram uma estante para guardar histórias.
Esses nunca gostaram de ler.
Anos mais tarde, deitado sob uma cama, que não é a
mesma da foto, eu vejo de olhos fechados aquela estante tão importante para
minha formação como leitor. Assim, de olhos fechados eu pego os livros e
revisito aquelas histórias. Sem a nitidez que eu teria se realmente estivesse
lendo, aqueles livros se tornam mágicos.
Essa magia me impediu que, anos mais tarde, eu os
relesse.
Agora abro os olhos e, no canto da cena onde estou,
vejo uma nova estante. Não construída pelo meu pai, mas por mim. Não com a
organização impecável de minha mãe, mas com a minha bagunça.
De repente vejo Saramago ao lado de Kafka: juntos
eles conversam têm ideias novas para os seus romances. Enquanto isso Cecília
Meirelles e Virginia Woolf combinam um chá e um passeio no parque para discutir
sobre pintura. Roland Barthes sente a fruição na poesia de Manoel de Barros.
Clarice Lispector e James Joyce conversam como se não fosse preciso respirar.
Agora estou em uma sala de aula. Olho para os
alunos. Eles também me olham. Eu ainda não os conheço, eles tampouco. É uma
relação nova, será difícil no começo, como todas as relações. Olho a disposição
dos móveis daquela sala e vejo o trivial: mesa, cadeiras, ventilador, quadro
negro, janelas. Mas não há uma estante para guardar histórias. Após a aula, vou
conversar com o diretor e digo que gostaria de uma para as minhas aulas. Ele
diz que é um gasto desnecessário, principalmente em tempos de cortes de verbas.
Caminho pela rua e entro em uma marcenaria para comprar as ferramentas
necessárias para a construção de uma estante. Mais difícil que construir sua
própria estante, é construir uma estante para outras pessoas.
Lembro de meu pai. Ele conseguiu. Talvez eu
consiga.
Nenhum comentário:
Postar um comentário