Literatura/crônica
Crônica de Jorge Amado,
Jorge Leal Amado de Faria foi um dos mais famosos e traduzidos escritores
brasileiros de todos os tempos.
Nascimento: 10 de agosto de 1912, Itabuna, Bahia
Falecimento: 6 de agosto de 2001, Salvador, Bahia
Publicada originalmente no jornal Folha da Manhã, 1945, quando do
término da 2ª Grande Guerra Mundial
As frases perdem seu sentido, as palavras
perdem sua significação costumeira, como dizer das árvores e das flores, dos
teus olhos e do mar, das canoas e do cais, das borboletas nas árvores, quando
as crianças são assassinadas friamente pelos nazistas? Como falar da gratuita
beleza dos campos e das cidades, quando as bestas soltas no mundo ainda
destroem os campos e as cidades?
Já viste um loiro trigal balançando ao vento? É das
coisas mais belas do mundo, mas os hitleristas e seus cães danados destruíram
os trigais e os povos morrem de fome. Como falar, então, da beleza, dessa
beleza simples e pura da farinha e do pão, da água da fonte, do céu azul, do
teu rosto na tarde? Não posso falar dessas coisas de todos os dias, dessas
alegrias de todos os instantes. Porque elas estão perigando, todas elas, os
trigais e o pão, a farinha e a água, o céu, o mar e teu rosto. Contra tudo que é
a beleza cotidiana do homem, o nazifascismo se levantou, monstro medieval de
torpe visão, de ávido apetite assassino. Outros que falem, se quiserem, das
árvores nas tardes agrestes, das rosas em coloridos variados, das flores
simples e dos versos mais belos e mais tristes. Outros que falem as grandes
palavras de amor para a bem-amada, outros que digam dos crepúsculos e das
noites de estrelas. Não tenho palavras, não tenho frases, vejo as árvores, os
pássaros e a tarde, vejo teus olhos, vejo o crepúsculo bordando a cidade. Mas
sobre todos esses quadros boiam cadáveres de crianças que os nazis mataram, ao
canto dos pássaros se mesclam os gritos dos velhos torturados nos campos de
concentração, nos crepúsculos se fundem madrugadas de reféns fuzilados. E, quando
a paisagem lembra o campo, o que eu vejo são os trigais destruídos ao passo das
bestas hitleristas, os trigais que alimentavam antes as populações livres.
Sobre toda a beleza paira a sombra da escravidão. É como u’a nuvem inesperada
num céu azul e límpido. Como então encontrar palavras inocentes, doces palavras
cariciosas, versos suaves e tristes? Perdi o sentido destas palavras, destas
frases, elas me soam como uma traição neste momento.
Mas sei todas as palavras de ódio, do ódio mais
profundo e mais mortal. Eles matam crianças e essa é a sua maneira de brincar o
mais inocente dos brinquedos. Eles desonram a beleza das mulheres nos leitos
imundos e essa é a sua maneira mais romântica de amar. Eles torturam os homens
nos campos de concentração e essa é a sua maneira mais simples de construir o
mundo. Eles invadiram as pátrias, escravizaram os povos, e esse é o ideal que
levam no coração de lama. Como então ficar de olhos fechados para tudo isto e
falar, com as palavras de sempre, com as frases de ontem, sobre a paisagem e os
pássaros, a tarde e os teus olhos? É impossível porque os monstros estão sobre
o mundo soltos e vorazes, a boca escorrendo sangue, os olhos amarelos, na
ambição de escravizar. Os monstros pardos, os monstros negros e os monstros
verdes.
Mas eu sei todas as palavras de ódio e essas, sim,
têm um significado neste momento. Houve um dia em que eu falei do amor e
encontrei para ele os mais doces vocábulos, as frases mais trabalhadas. Hoje só
0 ódio pode fazer com que o amor perdure sobre o mundo. Só 0 ódio ao fascismo,
mas um ódio mortal, um ódio sem perdão, um ódio que venha do coração e que nos
tome todo, que se faça dono de todas as nossas palavras, que nos impeça de ver
qualquer espetáculo – desde o crepúsculo aos olhos da amada – sem que junto a
ele vejamos o perigo que os cerca.
Jamais as tardes seriam doces e jamais as
madrugadas seriam de esperança. Jamais os livros diriam coisas belas, nunca
mais seria escrito um verso de amor. Sobre toda a beleza do mundo, sobre a
farinha e o pão, sobre a pura água da fonte e sobre o mar, sobre teus olhos
também, se debruçaria a desonra que é o nazifascismo, se eles tivessem
conseguido dominar o mundo. Não restaria nenhuma parcela de beleza, a mais
mínima. Amanhã saberei de novo palavras doces e frases cariciosas. Hoje só sei
palavras de ódio, palavras de morte. Não encontrarás um cravo ou uma rosa, uma
flor na minha literatura. Mas encontrarás um punhal ou um fuzil, encontrarás
uma arma contra os inimigos da beleza, contra aqueles que amam as trevas e a
desgraça, a lama e os esgotos, contra esses restos de podridão que sonharam
esmagar a poesia, o amor e a liberdade!
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