Conto da literatura
universal
Texto de
Vitor Hugo
Na noite de 17 de março de 1870, o capitão
Harvey fazia sua travessia habitual entre Southampton e Guernesey. Um nevoeiro
cobria o mar. 0 capitão Harvey estava de pé no passadiço do steamer,
e manobrava cuidadosamente por causa da noite e da bruma. Os passageiros
dormiam.
0 nevoeiro aumentava, tinha-se saído do rio de
Southampton, estava-se em pleno mar, cerca de quinze milhas além das Agulhas. 0
paquete avançava devagar. Eram quatro horas da manhã.
A escuridão era absoluta, uma espécie de teto baixo
rodeava o steamer; a custo avistava-se a ponta dos mastros.
Nada tão terrível quanto esses navios cegos; que
avançam dentro da noite.
De súbito surge um negrume entre a bruma, fantasma
e montanha, um promontório de sombra correndo na espuma e varando as trevas.
Era o Mary, grande steamer de hélice que vinha de
Odessa e se dirigia para Grimsby com um carregamento de quinhentas toneladas de
trigo; velocidade enorme, peso imenso. O Mary avançava direto
sobre o Normandy.
Nenhum recurso havia para evitar o choque, tamanha
a rapidez com que surgem no nevoeiro esses espectros de navios. São encontros
sem aproximação. Antes de acabar de vê-lo, a pessoa está morta. 0 Mary,
correndo a todo vapor, colheu o Normandy perpendicularmente ao costado e
arrebentou-o.
Ele próprio, avariado com o choque, parou.
Havia no Normandy vinte e oito homens de
tripulação, uma criada… e trinta e dois passageiros, dos quais doze eram mulheres.
0 abalo foi violentíssimo. Num momento todos
estavam no tombadilho: homens, mulheres, crianças, seminus, correndo, gritando,
chorando. A água entrava furiosa. A fornalha das máquinas, alcançada pela
inundação, arquejava. Os, salva-vidas faltavam.
0 capitão Harvey, de pé no passadiço do comando,
bradou: “Silêncio para todos, e atenção! Botes ao mar. As mulheres primeiro, os
passageiros depois. Em seguida a tripulação. Há sessenta pessoas para salvar”.
Eram sessenta e uma, porém ele esquecia-se de si
próprio.
Soltaram as embarcações. Todos correram para elas.
Esse açodamento podia fazer os botes virarem. Ockleford, o imediato, e os três
contramestres, contiveram aquela multidão desvairada. Dormir, e de súbito,
imediatamente, morrer, é pavoroso.
Enquanto isso, acima dos gritos e do tumulto,
ouvia-se a voz grave do capitão, e este curto diálogo ocorria nas trevas:
“Maquinista Locks? – Capitão. – Como está a fornalha? – Submersa. – 0 fogo? –
Apagado. – A máquina? – Morta.”
0 capitão gritou: “Imediato Ockleford?” 0 imediato
respondeu: “Presente”. 0 capitão prosseguiu: “De quantos minutos dispomos? –
Vinte. – É o bastante, disse o capitão. Que todos embarquem, cada qual por sua
vez”.
“Imediato Ockleford, está com suas pistolas? – Sim,
capitão. – Queime os miolos de qualquer homem que quiser passar antes de uma
mulher”.
Todos se calaram. Ninguém resistiu; a multidão
sentia acima de si própria aquela grande alma.
O Mary, por seu lado, descera seus
botes e acudia em socorro daquele naufrágio que era obra sua.
0 salvamento operou-se com ordem e quase sem luta.
Havia, como sempre, tristes egoísmos; também houve dedicações patéticas.
Harvey, impassível em seu posto de comandante,
ordenava, dominava, dirigia, ocupava-se com tudo e com todos, governava
calmamente aquela agonia e parecia dar ordens à própria catástrofe. Dir-se-ia
que o naufrágio lhe prestava obediência.
Em determinado instante ele gritou: “Salvem
Clemente!”
Clemente era o grumete. Uma criança.
0 navio diminuía vagarosamente na água profunda.
Apressava-se o mais possível o vaivém das embarcações entre o Normandy e
o Mary.
“Depressa!” gritava o capitão.
No vigésimo minuto o steamer soçobrou.
A proa afundou primeiro, depois a popa.
O capitão Harvey, de pé no passadiço, não fez um
gesto, não disse uma palavra, entrou imóvel no abismo. Viu-se, através da
neblina sinistra, aquela estátua negra mergulhar no oceano. Assim acabou o
capitão Harvey.
Nenhum marinheiro da Mancha o igualava. Depois de
se ter imposto a vida toda o dever de ser um homem, ele usou, ao morrer, do
direito de ser um herói.
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