Literatura
(Escritor americano,
prêmio Nobel de literatura)
Sua vida foi intensa, violenta,
rondando sempre a morte. Alimentou seus contos, novelas e reportagens com essas
experiências, de uma maneira tão direta que sua obra literária é, nem mais nem
menos, uma autobiografia mal dissimulada.
El País – O
Jornal Global – Fecebook
Hemingway escrevia de pé, em um
atril, como Victor Hugo, mas não que o fazia a lápis e em cadernos escolares
pautados, com uma caligrafia tão tortuosa que até mesmo em uma tela que aumenta
várias vezes seu tamanho fica difícil decifrar seus manuscritos.
A exposição da Biblioteca Morgan
de Nova York dedicada a Hemingway e às duas guerras mundiais permite acompanhar
detalhadamente boa parte de sua vida e do seu trabalho e descobrir, por
exemplo, que esse homem de ação era também minucioso ao escrever, quase um
flaubertiano, pois refez nada menos do que dezessete vezes o começo do seu
melhor romance, O Sol Também se Levanta. A coleção de fotografias
que documenta sua vida é tão completa que é possível, por assim dizer, ver sua
transformação, desde o quase adolescente que era quando participou como
voluntário, dirigindo uma ambulância, da frente italiana da Primeira Guerra Mundial,
onde uma bomba quase o matou – retiraram mais de uma centena de estilhaços de
suas pernas e costas –, até a ruína humana que era, já sem esperanças e
memórias, quando se matou com um tiro de fuzil na cabeça em Idaho, aos 62 anos
de idade.
Sua vida foi intensa, violenta, com a morte sempre rondando, não só nas
guerras nas quais esteve como correspondente e combatente, mas também nos
esportes que praticava – o boxe, a caça, a pesca em alto-mar –, nas viagens
arriscadas, nos desarranjos conjugais, nos prazeres ventrais e nos rios de
álcool. Viveu tudo isso e alimentou seus contos, romances e reportagens com
essas experiências, de uma maneira tão direta que, pelo menos em seu caso, não
há nenhuma dúvida de que sua obra literária é, entre outras coisas, nem mais
nem menos do que uma autobiografia mal dissimulada.
Na exposição aparecem as famosas
instruções dadas aos redatores pelo diretor do pequeno jornal local, o Kansas
City Star, onde Hemingway, em plena adolescência, iniciou sua carreira
jornalística e que, segundo os críticos, foram decisivas para forjar seu estilo
e sua metodologia narrativa: eliminar tudo o que fosse supérfluo, ser preciso,
transparente, claro, neutro, e preferir sempre a frase simples e direta à
barroca e empolada. Tudo isso é provavelmente verdade, mas não é suficiente, já
que o detalhe central e fundamental de sua técnica, a evasão, o dado escondido
que da ausência e das trevas impregna poderosamente o relato e o satura de
sugestões e mistério, talvez tenha sido inventado por ele mesmo, no dia em que
decidiu suprimir o fato principal do conto que escrevia: que, no final da
história, o personagem se matava. Nenhum dos escritores da sua geração – uma
geração de gigantes, como Faulkner, Dos Passos, Scott Fitzgerald – usou como
ele essa omissão loquaz, o dado escondido, obrigando o leitor a participar
ativamente com sua imaginação para completar o relato, para arredondá-lo.
Li muito Hemingway na minha
juventude, e foi um dos primeiros autores que pude ler em inglês, quando ainda
aprendia essa língua, mas depois fui pouco a pouco me desinteressando e cheguei
a acreditar que não era tão bom quanto me parecia quando jovem. Até que reli O
Velho e o Mar para escrever sobre ele e me convenci de que era uma
obra-prima absoluta, comoMoby Dick e O Morro dos Ventos
Uivantes. É emocionante ver na Biblioteca Morgan as fotos do pescador
cubano que foi o modelo do herói dessa novela e o que a seu respeito diz
Hemingway a seus amigos nas cartas que escrevia enquanto recriava – corrigindo
sem trégua – a odisseia do velho pescador lutando a golpes de remo contra os
tubarões que roubam o enorme peixe-espada que ele havia conseguido pescar.
Era um contumaz escritor de cartas,
e algumas das exibidas na exposição, transcritas à máquina para torná-las
legíveis, como a declaração de amor a Mary, a última de suas esposas, são
comoventes. E é apaixonante seu intercâmbio epistolar com Scott Fitzgerald, que
leu o manuscrito de O Sol Também Se Levanta e propôs cortes
implacáveis no texto, aos quais Hemingway resistia com alegações ferozes.
O título da exposição foi muito
bem escolhido, não só porque Hemingway, de fato, viveu de perto – de dentro –
as duas grandes carnificinas do século XX, além das outras guerras mais
localizadas, como a Guerra Civil espanhola, como também porque toda a vida do
autor de Adeus às Armas e Por Quem os Sinos Dobram foi
uma contínua contenda contra inimigos pessoais, como a decadência intelectual,
a neurose, a impotência e o álcool, que acabaram por derrotá-lo.
Aqui é possível ler, na The
New Yorker, o terrível artigo de Edmund Wilson, comentando As
Verdes Colinas da África, que mais do que uma resenha parece um epitáfio
(“A única coisa clara neste livro é que a África está cheia de animais e que o
autor gostaria de matar todos eles com seu fuzil”) pelo qual Hemingway nunca
lhe perdoaria, sobretudo porque sabia que esse rápido declínio do seu poder
criativo apontado pelo grande crítico norte-americano era verdade.
A exposição dá um jeito de
incitar o espectador a reler Hemingway (acabo de ler novamente com imenso
prazer essa pequena joia que é The End Of Something) e também para
retificar o mito que fazia dele quase a encarnação do aventureiro feliz,
testando-se a si mesmo, enquanto pulava de paraquedas, trocava socos num ringue
com um peso-pesado profissional, caçava leões, toureava novilhos, se casava e
descasava (“Não me apaixono, me caso”, contou em uma entrevista) e, no tempo
livre que essa vida agitada lhe deixava, transpirava contos e romances.
Na verdade, sempre foi um homem
torturado, com manias curiosas, como guardar todas as entradas das touradas às
quais assistiu e todas as passagens – de avião, trem e ônibus – das viagens que
fez pelo mundo, com períodos de paralisante depressão que tentava esconjurar
com bebedeiras. Estas só o afundavam ainda mais nessa melancolia cercada pelo
estigma ancestral do suicídio. Foi um dos grandes escritores do seu tempo, sem
dúvida, mas também um dos mais desiguais, já que, junto com magníficos romances
como Adeus às Armas e Paris É Uma Festa e
muitos de seus contos, escreveu também inexplicáveis disparates como Do
Outro Lado do Rio, Entre as Árvores e uma peça teatral
semistalinista ambientada na Espanha: A Quinta-Coluna.
Você sai da Biblioteca Morgan com
um pouco de tristeza: preferia que o Hemingway da mitologia, o aventureiro
paradigmático que contava as coisas que vivia, fosse o real, e não esse
personagem contraditório que, depois de um esplendor brilhante e passageiro, se
transformou em uma caricatura de si mesmo e se matou porque já não tinha forças
para continuar se inventando nem para inventar histórias.
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