Cultura: arte
contemporânea
Não há preconceito que vença a
arte de Sônia Gomes, destaque do Videobrasil, em SP.
Artista mineira de 67 anos é a
única brasileira na mostra principal da 56ª Bienal de Veneza
CAMILA MORAES São Paulo
A
artista mineira Sônia Gomes. / DIVULGAÇÃO
Certo dia,
uma menina entrou no ateliê de Sônia Gomes, no centro de Belo Horizonte, e ao
se deparar com montes de retalhos, rolos de linha, e tesouras, e ainda sentir
um cheiro de café, disparou: “Nossa, isso aqui parece a casa da minha vó”. Os
tecidos (amarrados, torcidos, alinhavados e bordados) que ocupavam o espaço
compõem obras como as que fazem parte da instalação que a artista plástica tem hoje exposta no Sesc Pompeia, no 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc Videobrasil. Mas, de fato, o ambiente
guarda muitas semelhanças com um quartinho de costura, e Sônia, uma mineira de
67 anos, com uma avó habilidosa e acolhedora.
O Videobrasil deste ano, que carrega o subtítulo
de Panoramas do Sul e fica em cartaz até 12 de dezembro em São
Paulo, tem o objetivo de retratar a arte do “sul global”. É na figura de Sônia
– uma mulher negra que despontou como artista aos 60 anos criando com tecidos e
combatendo vários tipos de preconceito – que o evento faz isso de maneira mais
atrativa e contundente. "Foram muitas as barreiras que tive que derrubar.
Por ser mulher, por ser negra, por não ter idade para ser considerada um dos
jovens talentos da arte brasileira...", diz. Única brasileira da
atual Bienal de Arte de Veneza, Sônia não se furta à luta, que encara com
talento e resistência. No Sesc Pompeia, ela exibe a união de oito trabalhos
feitos entre 2004 e 2015 na exposição principal, Artistas Convidados.
Filha de mãe negra e pai branco, Sônia nasceu em Caetanópolis, no
interior de Minas Gerais, e, aos quatro anos, foi entregue pela avó materna à
família do pai. A mãe da menina tinha morrido e sua avó não tinha condições
financeiras para cuidar da neta. De cara, Sônia percebeu que tinha adentrado um
mundo diferente do seu – mais erudito e menos afetuoso. Fugiu de casa diversas
vezes, até que, na última tentativa, aos cinco anos, foi fechada na biblioteca
e, numa crise nervosa que ela hoje vê como uma catarse, rasgou livros e quebrou
janelas. E decidiu ficar. “Nunca mais tentei fugir. Eles me deram uma boa
educação, reconheço. Mas não tive o afeto. Morei lá a minha vida inteira,
participando de tudo, mas a questão racista eu via em casa mesmo”, conta a
artista.
Os tecidos –
em retalhos rasgados ou em finos bordados – sempre fizeram parte de sua vida. A
avó materna, parteira e benzedeira com quem ela não perdeu o contato, fazia
patuás e trançava fios que usava para benzer as pessoas. O pai, com o seu lado
da família, entrava com colchas de richelieu e bordados da ilha da Madeira. Foi
assim que a mistura do popular com o erudito entrou na veia de Sônia, que no
entanto se fez professora, primeiro, e depois foi estudar Direito na
universidade. Com a exceção de colares e bolsas que ela fazia aproveitando os
materiais instigantes que encontrava e do hábito de desconstruir peças de roupa
para deixá-las à sua maneira, a criatividade era para ela um monstro
adormecido. “Comecei a experimentar dando um toque pessoal às minhas coisas.
Talvez até em busca de visibilidade, para que as pessoas me vissem. Acho que a
gente nasce artista, então, em alguma fase da sua vida, a arte vem à tona, se não
você enlouquece”.
Sônia não
enlouqueceu porque, aos 45, liberou o monstro. Já tinha um apartamento pequeno
em seu nome, então encarou as portas de uma escola, onde pôde conhecer pessoas
“doidas”, como ela era vista por muitos. O reconhecimento tardou, mas veio
justamente no seio daquilo em que ela acreditava: trabalhar com tecidos e não
com tintas (que, de passagem, lhe causam alergia), resgatar as raízes populares
sem se despir da erudição, assumir-se mulher madura e negra.
A primeira
aprovação veio de uma famosa loja de antiguidades de Belo Horizonte. Logo
depois, em São Paulo, uma primeira exposição individual, Objetos,
foi organizada pelo galerista Thomas Cohn, mas não obteve sucesso algum. Foi em
2012, na Arte BA de Buenos Aires, que ela foi celebrada pela primeira vez – com
os rótulos de brasileira, negra, afim à arte popular... mas celebrada – e logo
depois, já representada pela galeria paulistana Mendes Wood DM, chamou a atenção na Art Basel,
da Suíça, em 2013, e no suplemento cultural do jornal Financial Times,
que publicou uma de suas obras (Memória, de 2004).
O boom se
deu com a 56a Bienal de Veneza, onde é a única artista do
Brasil a expor na mostra principal (até 22 de novembro). O tema da vez é All
the world’s futures (Todos os futuros do mundo), e o curador, o
nigeriano Okwui Enwezor – diretor do museu alemão Haus der Kunst, em Munique, e
reconhecido pensador da questão racial nas artes visuais. “As pessoas são
extremamente preconceituosas, então têm medo e reagem assustadas contra nós.
Acho que determinados preconceitos foram tão fortes, que o prejulgamento por
ser mulher eu nem senti muito”, conta a artista. Ela diz sentir-se lisonjeada
pelo convite de Enwezor, que se deparou com o trabalho de Sônia depois da
participação dela na exposição Made by... Feito por Brasileiros,
que ocupou o antigo hospital Matarazzo, em São Paulo, em setembro de 2014.
Mas o passado pouco importa,
diante de tantos projetos futuros. Em breve, ela planeja alugar uma casa e
passar uma temporada em São Paulo para ficar mais próxima de sua galeria. E
está prestes a começar a trabalhar em um vestido de noiva de seda pura que
acaba de receber por correio – presente de uma mulher que leu sobre ela no
jornal. “É o tipo de coisa que me faz seguir vivendo. Levanto da cama e vou ao
meu ateliê todos os dias, como se fosse um emprego”. À mineira, com seus
tecidos, Sandra faz sua revolução.
Nenhum comentário:
Postar um comentário