Cultura
Autora brasileira avalia o
cenário político brasileiro e fala sobre amor e literatura
ANTONIO JIMÉNEZ BARCA Rio de Janeiro
El País – O Jornal Global,
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Nélida
Piñón em seu apartamento no Rio. / VICTOR
MORIYAMA
Nélida Piñon (Rio de Janeiro, 1937) fala torrencialmente
de tudo e de quase todos, inclusive de si mesma. Em sua casa no bairro Lagoa,
no Rio, num salão de paredes repletas de retratos seus e diplomas e prêmios
obtidos ao longo de sua extensa carreira, a escritora recebe o jornalista com
infinita cordialidade. Depois o confunde com opiniões sobre as questões mais
díspares, evoca histórias de sua família, mostra-lhe a origem de sua
literatura, apresenta seu cachorro, interrompe-o constantemente, oferece
pontos-chave para entender o Brasil, convida-o para um café, presenteia livros
para arruinar de vez a mochila e as costas do repórter e, por último, na
despedida, aparece com um pote de um quilo de doce de leite brasileiro que a
própria Nélida foi buscar na cozinha. A
escritora, membro da Academia Brasileira de Letras, autora de mais
de 20 livros, entre romances e ensaios, vencedora, entre outros prêmios, do
Príncipe de Astúrias das Letras, fala do volume de contos intitulado A
Camisa do Marido (Record), pelo qual desfilam, também torrencialmente,
os grandes temas de sempre: a família, o poder, o sexo e a felicidade. No
Brasil, foi reeditada uma de suas obras mais célebres, A República dos
Sonhos (Record), numa edição comemorativa dos 30 anos do romance.
Resposta. Mas eu não sou os
personagens, eles têm autonomia própria.
P. Por isso lhe pergunto, para
saber se está de acordo com esse personagem que diz: “A família é assim: nos dá
alegrias, mas também nos mata.”
E. É a única coisa que mata.
Quem mais dor nos dá é o amor e a literatura. Podemos substituir um amor por
outro, mas a família é insubstituível.
P. Em seus contos, a figura
que mais aparece é a do pai.
R. A família é um microcosmo.
O mundo inteiro cabe nela. E o pai, pelo menos no meu mundo, não estava ligado
ao afeto. Não era de bom tom tratar os filhos com amor. Lembro-me de dizer,
quando jovem, aos homens da minha casa: “Tire essa gravata e esse terno, essa
camisa, e coloque o bebê no peito. Vai sentir uma alegria extraordinária.” Mas
ninguém nunca fez isso.
P. E seu pai estava ligado a
quê? Ao poder?
R. Sim, ele amava, mas tinha
que exercer o poder, segundo os cânones, e criar um sucessor.
P. Mas, em seus contos, os
pais só criam seres desgraçados...
R. Você acha que a sociedade é
feliz? Quantas guerras temos agora? Saia para comprovar, você que é jornalista.
E quantas teremos no futuro próximo? E quantos milhões de refugiados, de
desterrados que não sabem o que fazer, quantos náufragos, quantos seres que
acreditam que é melhor morrer no mar... Isto tem a ver com a literatura, porque
tem um compromisso ético que não deve aparecer no texto, mas que existe. O
livro castiga a ausência de ética.
P. Mas o compromisso,
sobretudo, é com a literatura: a senhora mesma afirmou que não pensa nunca no
leitor quando escreve.
R. Em quem vou pensar? Em um
professor de Harvard? De Salamanca? E onde ficam os brasileiros? Gosto de
pensar num índio do Amazonas que me possa ler daqui a 40 anos. Gostaria de pensar
que o pobre de hoje, o que não tem acesso a nada, descubra dentro de alguns
anos uma brasileirinha que amava o Brasil e a literatura. Não sei qual é o
destino do que escrevo.
P. No conto Dulcineia, a
senhora se atreveu a mudar o final de Dom Quixote. Ela sai com Sancho Pança e Dom Quixote para
percorrer o mundo.
R. Me atrevo sempre, embora
com respeito. Não sou uma iconoclasta gratuita. Mas me atrevi porque achei que
não havia outra saída. A história me pedia isso. Ela vai viver a odisseia
desses outros dois loucos extraordinários. E o faz porque leva uma vida
horrível, tinha sido violentada, estava reduzida a nada, e então vêm esses dois
que lhe propõem um mundo rico sem dinheiro, sem comida, eterno num curto tempo
de vida. Algo assim aconteceu na Guerra de Canudos com Antônio Conselheiro: ele
percorria as zonas mais pobres do Sertão, seguido por muitas pessoas, porque
com sua palavra prometia o céu.
P. Há predicadores na TV do
Brasil que também prometem o céu em suas homilias...
R. Esses não são predicadores
nem profetas, são milionários. Temos um déficit de profecia.
P. E a profecia não é
perigosa?
R. Mais perigosa é a
banalidade. Dê uma olhada na Bíblia: seus profetas são fascinantes. E isso não
quer dizer que eu queira ser governada por profetas. Mas o Brasil, por exemplo,
está carente de líderes, de seres exemplares. Precisamos de exemplos.
P. Em seus contos existe, de
fato, muito de mitos bíblicos, de mundos arcaicos, rurais, de personagens
violentos...
R. Sim, sou muito visceral.
Não gosto muito do mundo urbano. O mundo urbano ainda não criou grandes mitos.
As histórias que sobrevivem são as impregnadas de um halo que vem do mundo
arcaico. Tenho saudade do campo, como se tivesse sido camponesa a vida inteira.
P. Já foi?
R. Sim, durante dois anos,
quando morei numa aldeia da Espanha chamada Cotobade, a aldeia de meu pai. Eu
tinha dez anos. Foi o período mais feliz da minha vida. Esses dois anos foram
essenciais para minha literatura.
P. Como começou a escrever?
R. Comecei aos sete. Sempre
quis ser escritora. Quando viajava com meu pai ainda criança e dormíamos num
hotel, e tínhamos que preencher as fichas de entrada, eu colocava: “escritora”.
Estou muito orgulhosa de todos os livros que escrevi. Porque todos significaram
um grande esforço, uma crença na literatura, na língua portuguesa, na
fidelidade a uma vocação. Apesar de tantas dificuldades enfrentadas pelo fato
de ser mulher, consegui, segui em frente, sem ressentimentos. Não acho que
exista uma maneira masculina ou feminina de escrever. Mas existe uma
sensibilidade, digamos, feminina de quem sofreu alguma repressão, de quem às
vezes fica à margem e tem que inventar para entender. Embora, bem, veja o caso
de Flaubert, que escreveu Madame Bovary.
P. Agora está sendo
reeditada A República dos Sonhos, um de seus livros mais
importantes...
R. Começa assim: “Eulália começou
a morrer na terça-feira”, e depois continua toda a história. Cobre mais ou
menos dois séculos da história do Brasil e conta a história da imigração
espanhola. Os galegos dizem que esse livro é a obra épica da Galícia. É um
livro em que usei técnicas narrativas muito acentuadas para que a história não
tivesse três volumes. Fiz oito versões, com uma maquininha de escrever Hermes.
Durante dois anos trabalhei 14 ou 16 horas por dia. Há estudiosos que afirmam
que o livro é um grande trabalho de pesquisa sobre o Brasil. Mas eu, a única
coisa que pesquisei foi o nome de um barco dos Estados Unidos que os
norte-americanos emprestaram à Marinha Brasileira. Só isso. Os erros são
deliberados. E os preconceitos. Eu queria que aparecessem. No romance cabem os
preconceitos, a intolerância, cabe tudo.
P. Como vê o Brasil agora?
R. Atravessamos um momento
tormentoso, em que vamos definir nosso futuro. É uma oportunidade histórica.
Acredito que nossa consciência precisa despertar, porque está acomodada. E isto
também deve servir para nossa revalorização: o Brasil é um país magnífico, com
uma geografia poderosa que soubemos preservar. Vale a pena ser brasileira.
P. Sempre foi assim, não?
R. Sim, mas agora mais do que
nunca.
P. Por quê?
R. Para não cair nessa
armadilha do desespero e da depressão nacional. Em todo lugar você vê um
descalabro. Temos que nos concentrar onde está o melhor do Brasil.
P. E onde está?
R. Em cada um de nós. Não está
em outro lugar, nem no exterior, nem nos políticos. A política tem dificuldade
de criar estadistas, não gosta disso. Antes havia. Agora nem tanto. E Brasília, onde está o Governo e os
Ministérios, é um castelo com uma ponte levadiça que sempre está levantada.
Essa ponte nunca baixa para que os demais possam entrar. Temos que derrubar
esse castelo e essa ponte, e fazer uma pavimentação normal para que possamos
vigiar.
P. E considera que a
presidenta Dilma Rousseff...
R. Sobre isso não vou dizer
nada. Ela será julgada pelo povo e responderá. Ela é a presidenta do meu país,
e meu dever é respeitá-la.
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