Política internacional
O candidato peronista sofre
para conseguir dez pontos de diferença sobre o liberal Macri
A eleição argentina explicada para os não argentinos e para a América Latina
CARLOS E. CUÉ de Buenos Aires, 26 OCT 2015,
·
Apesar do primeiro lugar, o golpe para Scioli e para o Governo de
Cristina Kirchner é duríssimo. Macri se torna agora, surpreendentemente, o
favorito para assumir a presidência argentina, o que seria uma guinada radical
após 12 anos de kirchnerismo. A vitória de Macri teria consequências regionais
muito importantes, pois a Argentina dos Kirchner era um dos pilares do
crescimento da esquerda latino-americana, junto com Lula, Hugo Chávez e Evo
Morales, além de incorporações posteriores como a do equatoriano Rafael Correa.
O peronista dissidente Sergio
Massa somou 21,1%, confirmando ou até melhorando os resultados das últimas
pesquisas. Isso é ainda mais grave para o kirchnerismo, pois significa que
Macri roubou votos de Scioli e obteve todos os votos novos que se incorporaram
depois das primárias. A participação aumentou sete pontos percentuais.
O peronismo sofreu outra derrota
dramática: perdeu a província de Buenos Aires, onde concorria com um candidato
estrela e muito polêmico, o chefe de Gabinete de Kirchner, Aníbal Fernández.
Venceu uma política desconhecida até poucos meses atrás, María Eugenia Vidal,
aliada de Macri. O kirchnerismo duro pretendia se refugiar na
província de Buenos Aires, e agora perdeu o poder também por lá. A batalha que
se anuncia agora dentro do peronismo será duríssima. Alguns contra Aníbal
Fernández e os kirchneristas, e outros contra Scioli e sua estratégia, que não
teve êxito. Os sciolistas também contra a presidenta, que ditou os rumos da
campanha de Scioli a todo o momento e definiu suas listas de candidatos, além
de impor o nome do seu mais fiel seguidor, Carlos Zannini, como companheiro de
chapa de Scioli. Os peronistas só têm uma possibilidade para conservar o poder,
que é obter uma ampla maioria dos votos de Massa – algo muito difícil.
A sensação de desolação no Luna
Park, a sede da noite eleitoral sciolista, era absoluta. “Os institutos de
pesquisa, os governadores, todo mundo nos enganou. Agora é hora de mudar a
estratégia”, lamentava-se um dirigente na área VIP, lotada de celebridades que
costumam acompanhar Scioli, mas que foram embora ao primeiro sinal de maus
resultados. “Precisamos agrupar todos os peronistas, não é possível que Macri
inaugure uma estátua de Perón e nós continuemos fazendo atos pequenos para os focus
group”, criticava outro político.
A noite eleitoral foi muito
estranha, e o Governo atrasou a publicação dos dados oficiais por seis horas, o
que gerou todo tipo de especulações, inclusive pequenos panelaços em alguns
bairros centrais de Buenos Aires. Quando os dados foram divulgados, por volta
da meia-noite, entendeu-se o porquê da demora. Naquela altura, Scioli já tinha
falado no Luna Park em um discurso incomum, que já apontava indiretamente para
a possibilidade do segundo turno, mas se dizia ganhador da noite. Mesmo antes
dos dados oficiais, Scioli começou a atacar Macri e preparar sua campanha para
esse segundo turno. Disse que Macri é o “candidato do ajuste”. “Se fosse por
Macri não teríamos o abono universal por filho, a YPF não seria estatal, nem as
Aerolíneas Argentinas.” É a primeira vez que Scioli critica tão abertamente seu
amigo Macri. Scioli prometeu falar novamente uma hora depois, mas não voltou a
comparecer, e o desânimo se espalhou quando apareceram os primeiros dados
oficiais.
“O que aconteceu hoje muda a
política deste país”, disse um Macri eufórico, que dançou feito louco por uma
vitória inesperada na festa de Costa Salguero, um centro de congressos. Macri
aproveitou para iniciar também sua campanha para o segundo turno pedindo aos
eleitores de todos os candidatos de oposição “e até aos de Scioli” que se
juntem à “Argentina da mudança”. “Graças aos trabalhadores que não tiveram medo
e se dispuseram a apostar no futuro”, disse Macri, que obteve uma boa parte do
voto das classes média e baixa que antes apoiavam o peronismo. De fato, o
candidato do Mudemos elogiou “a luta pela justiça social do peronismo”. Para
que Macri vença o segundo turno, basta obter uma parte dos 65% de eleitores que
não votaram em Scioli, ao passo que Scioli precisaria de uma virada total para
ganhar.
A Argentina já não é a mesma de
2011, quando Cristina Kirchner conquistou sua reeleição com 54% dos votos, sem
oposição. Essa é um das grandes novidades destas eleições: pela primeira vez
desde que o kirchnerismo chegou ao poder, há uma oposição forte, e o vencedor
terá de fazer acordos. A maioria de que o kirchnerismo se valeu nos últimos
anos já não será possível, pelo menos segundo os dados que as primeiras
pesquisas indicavam.
De 2012 em diante, a economia se
manteve parada e em 2014 uma forte desvalorização do peso resultou, pela
primeira vez desde que o kirchnerismo está no poder, em inflação, que
atualmente chega a 25% e superou os reajustes salariais.
Também se multiplicaram os casos
de corrupção, e até o vice-presidente da Argentina, Amado Boudou, foi
processado em dois casos por vários crimes. Os escândalos afetaram inclusive a
família da presidenta, com o caso Hotesur.
No entanto, a chefe de Estado
mantém sua popularidade acima dos 40%, sobretudo porque muitos eleitores
comparam o estado atual de seu país com o da crise de 2001, antes de o
kirchnerismo chegar ao poder, com 57% de pobreza de 25% de desemprego.
Essa boa imagem de Cristina
Kirchner, somada a uma economia em crise, mas que graças a uma grande injeção
de liquidez e de gastos públicos este ano não chega a se naufragar, levava
todos os pesquisadores e analistas políticos a presumir nas últimas semanas que
Scioli conseguiria ganhar no primeiro turno. Essas mesmas análises destacavam
que Macri, filho de um dos empresários mais ricos do país e com imagem de
liberal, teria um limite de votos que o impediria de ultrapassar os 30% de que
necessitava para forçar um segundo turno. A resistência de Sergio Massa, o
peronista dissidente que chegou com muita força até o dia das eleições, fazia
pensar que Scioli venceria no primeiro turno. No entanto, os dados oficiais
esmagaram essas previsões e deixaram os institutos de pesquisa em péssima
situação.
Scioli, um candidato muito mais
de centro do que os Kirchner, que em teoria deveria cobrir um espaço maior do
que eles, ficou muito distante do resultado esperado.
“Estamos votando em um país
normal”, destacou a presidenta depois de votar em Santa Cruz, a província onde
começou o kircherismo e onde ontem também se travava uma batalha pela
conservação do poder, com Alicia Kirchner, irmã de Nestor, como candidata a
governadora. A vitória da sua cunhada e do seu filho, que era candidato a
deputado, é um prêmio de consolação num dia de más notícias para a presidenta,
que tem intenções de se refugiar no sul.
Diferentemente das primárias de
voto obrigatório de agosto passado, desta vez praticamente não houve denúncias
de irregularidades. Naquela oportunidade, em algumas escolas a oposição se
queixou do roubo de cédulas nas cabines de votação. Desta vez, nada disso
ocorreu. As eleições foram definidas como “as mais controladas da história”, e
os partidos recrutaram um exército de interventores para evitar qualquer tipo
de fraude.
Era um dia de votação especial
porque Los Pumas, a seleção de rúgbi, estava jogando, e no final perdeu para a
Austrália. Os dois principais candidatos trataram de surfar na onda do esporte.
Scioli expressou seu desejo de que seu país fosse reflexo do espírito dos
Pumas. “Os Pumas são uma expressão do que deve ser o país. Que nos contagiemos
pelo espírito dos Pumas. Eu digo isso como esportista. Eu acredito nesses
valores. Viram quanta torcida há pelos Pumas? Essa é a garra que temos que
ter.”
Macri também aderiu à ideia.
“Vejo muita alegria na rua, hoje pode ser um dia histórico. Os argentinos votam
por continuar igual ou mudar, esperemos que votem pela mudança”, disse Macri e
contou que veria a partida em família. “Eles são um exemplo, é a Argentina que
queremos, todos unidos e olhando para a frente”, concluiu.
Sergio Massa, que conseguiu
resistir aos apelos pelo voto útil lançados por Macri para conseguir apoios,
também parecia eufórico: “Além do resultado, além das questões políticas,
tomara que comece uma nova fase na Argentina a partir da decisão das pessoas”.
Mais de 32 milhões de argentinos foram convocados
às urnas para escolher o presidente que os governará até 2019, e 79%
efetivamente votaram. O voto é obrigatório no país para cidadãos de 18 a 69
anos, e opcional para os de 16, 17 e acima de 70. Os argentinos também
escolheram 45 deputados do Parlamento do Mercosul (Parlasur) e a metade da
Câmara dos Deputados. Em oito províncias, um terço do Senado nacional seria
renovado. Em 11 houve votação para governador, deputados provinciais, prefeitos
e vereadores, com disputas especialmente simbólicas em Santa Cruz e na poderosa
província de Buenos Aires.
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