quinta-feira, 1 de outubro de 2015

UM DIA

Literatura/conto



Nascimento, data incerta (entre 1919 ou 1920). Morte, 08 de abril de 1992.
Isaac Assimov
Isaac Asimov foi um escritor e bioquímico americano, nascido na Rússia, autor de obras de ficção científica e divulgação científica. Asimov é considerado um dos mestres da Ficção Científica ao lado de Robert A. Heinlein e Arthur C.
Niccolo Mazetti estava deitado de bruços sobre o tapete, o queixo enterrado na palma da mão pequena e ouvia o Bardo, desconsolado.* Percebia-se até o começo de lágrimas em seus olhos escuros, luxo a que só se podia permitir uma criatura com onze anos de idade quando se encontrava sozinha. O Bardo disse:
– Uma vez no meio da floresta enorme, vivia um pobre lenhador com suas duas filhas sem mãe, que eram tão belas quanto o dia é longo. A filha mais velha tinha cabelos pretos e compridos como a pena de asa da graúna, mas a filha mais nova tinha cabelos tão brilhantes e dourados como a luz do sol em tarde de outono.
– Muitas vezes, enquanto as meninas esperavam que o pai voltasse para casa, após trabalhar no mato, a filha mais velha sentava-se diante do espelho e cantava…
O que ela cantava Niccolo não ouvia, porque alguém o chamou de fora do quarto:
– Ei, Nickie.
E Niccolo, o rosto desanuviando-se no mesmo instante, correu até a janela e gritou:
– Ei, Paul.
Paul Loeb acenou com a mão agitada. Era mais magro do que Niccolo e não tão alto, mesmo sendo seis meses mais velho. Tinha o rosto cheio de tensão reprimida, que se mostrava com mais clareza no rápido piscar das pálpebras.
– Ei, Nickie, quero entrar. Tenho uma idéia e metade. Espere só até ouvir.
Olhou rapidamente em volta, como a verificar a possibilidade de ouvintes furtivos, mas o quintal da frente estava evidentemente vazio. Repetiu, então, em cochicho:
– Espere só até ouvir.
– Muito bem, já abro a porta.
O Bardo continuou suavemente, sem saber da perda de atenção por parte de Niccolo. Quando Paul entrou, o Bardo estava dizendo:
– …Com que o leio disse: “Se você encontrar para mim o ovo perdido da ave que voa sobre a Montanha de Ébano, uma vez a cada dez anos, eu…”
Paul disse:
– Você está ouvindo o Bardo? Eu não sabia que você tinha um.
Niccolo se tornou rubro e a expressão de infelicidade regressou a seu semblante.
– É só uma coisa velha que eu tinha, quando era menino. Não está muito boa.
Desferiu um pontapé no Bardo e acertou, na cobertura de plástico, um tanto arranhada e descolorida, um outro golpe.
O Bardo teve um soluço, como se a ligação do alto-falante fosse tirada do contato por um momento, e depois prosseguiu:
– …por um ano e um dia, até que os sapatos de ferro se gastaram. A princesa parou do lado da estrada…
Paul disse:
– Rapaz, esse ê mesmo um modelo antigo – e olhou para aquilo com expressão crítica.
A despeito da própria amargura que Niccolo sentia contra o Bardo, não lhe agradou o tom condescendente do outro. Sentia momentaneamente pesar por ter deixado Paul entrar, pelo menos antes de haver recolocado o Bardo em seu lugar de descanso habitual no porão. Só pelo desespero de um dia monótono e um debate infrutífero com o pai é que ele o fizera ressuscitar. E acabara verificando ser coisa tão estúpida quanto imaginara.
Nickie tinha um pouco de medo de Paul, já que este fizera cursos especiais na escola e todos diziam que ele ia crescer e ser um Engenheiro de Computador.
Não que o próprio Niccolo estivesse a se sair mal na escola. Recebera notas adequadas em lógica, manipulações binárias, computação e circuitos elementares; todas as disciplinas costumeiras da escola primária. Mas era exatamente isso! Não passavam de disciplinas comuns e ele crescia para ser um guarda de painel de controle, como todos os outros.
Paul, todavia, conhecia coisas misteriosas sobre o que chamava de eletrônica e matemática teórica e programação. Principalmente programação. Niccolo nem mesmo procurava compreender quando Paul falava sobre o assunto, parecendo borbulhar.
Paul olhou o Bardo por alguns minutos e disse:
– Você andou usando muito isso aí?
– Não! – retorquiu Niccolo ofendido. -Tenho isso guardado no porão desde que você mudou para cá. Só tirei de lá hoje… – Faltava-lhe uma desculpa que parecesse adequada a si próprio, de modo que ele concluiu: – Acabei de tirar.
Paul perguntou:
– É isso o que ele lhe conta: lenhadores e princesas e animais que falam?
Niccolo explicou:
– Uma coisa horrível. Meu pai disse que não podemos comprar um novo. Eu falei com ele, hoje de manhã… – A recordação das súplicas inúteis que fizera de manhã levou Niccolo a aproximar-se muito das lágrimas, que reprimiu tomado de pânico. De algum modo achava que as faces magras de Paul nunca haviam sentido a vergonha das lágrimas e que Paul só poderia desdenhar outra pessoa menos forte que ele próprio. Niccolo prosseguiu: – Por isso achei que devia experimentar outra vez essa coisa velha, mas não vale nada.
Paul desligou o Bardo, apertou o contato que levava para a reorientação e recombinação quase instantâneas do vocabulário, personagens, textos da trama e clímax ali guardados. Depois reativou.
O Bardo começou, devagar:
– Uma vez havia um menino chamado Willikins, cuja mãe morrera e que vivia com o padrasto e o filho do padrasto. Embora o padrasto fosse um homem bem rico, negava ao pobre Willikins a própria cama em que dormia, de modo que Willikins era obrigado a descansar o melhor que podia em um monte de palha no estábulo, perto dos cavalos…
– Cavalos! – gritou Paul.
– São uma espécie de animal – disse Niccolo. – Acho que são.
– Eu sei disso! Agora imagine só, estórias sobre cavalos.
 Ele fala de cavalos o tempo todo – explicou Niccolo. – Existem também coisas chamadas vacas. Você tira leite delas e o Bardo não diz como.
– Bem, puxa vida, por que você não conserta isso?
– Gostaria de saber como.
O Bardo estava dizendo:
– Muitas vezes Willikins pensava que se fosse rico e poderoso haveria de mostrar ao padrasto e ao filho do padrasto o que significava ser cruel com um menino pequeno, de modo que um dia resolveu sair para o mundo e procurar sua sorte.
Paul, que não ouvia o Bardo, disse:
– Ê fácil. O Bardo tem cilindros de memória preparados para as palavras da trama e os clímax e as coisas. Não vamos nos preocupar com isso. É só o vocabulário que devemos consertar, de modo que ele vai saber acerca dos computadores, automatização e eletrônica e as coisas reais que temos hoje. Depois pode contar estórias interessantes, você sabe, em vez de falar sobre princesas e essas coisas.
Animado, Niccolo disse:
– Oxalá a gente pudesse fazer isso.
Paul disse:
– Escuta, meu pai diz que se eu entrar na escola especial de computação, no ano que vem, ele vai me dar um Bardo de verdade, um modelo novo. Bem grande, com ligação para estórias de mistérios do espaço. E uma ligação visual também!
– Quer dizer que você vai ver as estórias?
– Claro. O senhor Daugherty, na escola, diz que elas têm coisas assim, agora, mas não são para todos. Só se eu entrar na escola de computação. O Papai pode arranjar umas coisas.
Os olhos de Niccolo transbordavam de inveja.
– Puxa vida. Ver uma estória!
– Você pode ir lá em casa e assistir a qualquer momento, Nickie.
– Puxa vida, rapaz. Obrigado.
– De nada. Mas lembre-se de uma coisa, sou eu quem diz que tipo de estória vamos ouvir.
– Claro, claro – Niccolo teria concordado prontamente, mesmo sob condições mais severas.
A atenção de Paul se voltou para o Bardo, que dizia:
– “Se é assim”, disse o rei, cofiando a barba e fechando a cara até que as nuvens cobriram o céu e o relâmpago riscou o ar, “você vai providenciar para que toda a minha terra fique livre das moscas a esta hora, depois de amanhã, ou…”.
– Tudo que temos a fazer – disse Paul – é abrir… – E desligou novamente a Bardo, já procurando tirar o painel da frente enquanto falava.
– Ei – interveio Niccolo, alarmado de súbito. – Não vai quebrar.
– Não vou quebrar – disse Paul, com impaciência. – Eu sei tudo sobre essas coisas. – E logo, com cautela repentina: – Seu pai e sua mãe estão em casa?
-Não.
– Muito bem, então. – Já tirara o painel dianteiro e olhava para o interior. – Rapaz, isto é coisa de um cilindro.
Já trabalhava nas entranhas do Bardo. Niccolo, que observava em suspense penoso, não conseguia enxergar o que o outro fazia.
Paul tirou de lá uma faixa fina e flexível de metal, coberta de pontos.
– Este é o cilindro de memória do Bardo. Aposto que a capacidade de estórias dele tem menos de um trilhão.
– O que você vai fazer, Paul? – perguntou Niccolo, trêmulo.
– Vou dar-lhe vocabulário.
– Como?
– É fácil. Tenho um livro aqui. O Sr. Daugherty me deu na escola.
Paul tirou o livro do bolso e retirou a sua tampa de plástico. Desenrolou a fita um pouco, passou-a pelo vocalizador que abaixou até tornar-se um murmúrio e depois o colocou dentro das entranhas do Bardo. E fez outras ligações.
– O que isso vai fazer?
– O livro vai falar e o Bardo guardará tudo na fita de memória.
– E de que serve?
– Rapaz, você é burro! Meu livro é todo sobre computadores e automatização e o Bardo ficará com toda essa informação. Depois vai poder parar de falar sobre reis que criam relâmpagos quando fecham a cara.
Niccolo disse:
– E o bom sujeito sempre vence, seja lá como for. Não tem graça nenhuma.
– Oh, bem – disse Paul, observando para ver se o seu arranjo estava funcionando corretamente. – É assim que eles fazem os Bardos. Eles precisam fazer os bons camaradas vencerem e os maus camaradas perderem, coisas desse tipo. Uma vez ouvi meu pai falando sobre o assunto. Ele diz que sem a censura não se podia dizer o que a geração mais jovem seria capaz de tornar-se. Ele diz que a coisa já anda muito ruim… Pronto, está funcionando muito bem.
Paul esfregou as mãos uma na outra e afastou-se do Bardo, dizendo:
– Mas escute, ainda não lhe contei como é a minha idéia. É a melhor coisa que você já ouviu, pode crer. Vim falar com você porque achei que você havia de entrar nela comigo.
– Com certeza, Paul, com certeza.
– Muito bem. Você conhece o Sr. Daugherty, na escola? Você sabe que ele é um sujeito gozado. Pois bem, ele gosta de mim, um pouco.
– Eu sei.
– Estive na casa dele depois da escola, hoje.
– Você esteve?
 Claro. Ele diz que eu vou entrar na escola de computadores e quer me animar, coisas assim. Ele diz que o mundo precisa de mais gente que saiba projetar circuitos de computadores avançados e fazer uma programação correta.
-É?
Paul podia perceber parte da vacuidade daquele monossílabo. Disse, com impaciência:
– Programação! Eu já lhe contei mais de cem vezes. É quando você cria problemas para os computadores gigantescos como o Multivac resolverem. O Sr. Daugherty diz que está ficando cada vez mais difícil encontrar pessoas que saibam dirigir bem os computadores. Ele diz que qualquer pessoa pode ficar de olho nos controles e verificar as respostas e processar os problemas de rotina. Diz que o truque é expandir as pesquisas e calcular modos de fazer as perguntas certas, e que isso é difícil.
Ele prosseguiu:
– De qualquer modo, Nickie, ele me levou até a casa dele e me mostrou a coleção de computadores antigos. É uma espécie de passatempo dele colecionar computadores antigos. Tinha computadores tão pequenos que era preciso apertar com a mão, com botõezinhos por cima. E tinha um pedaço de madeira que chamava de régua de calcular, com um pedacinho lá dentro que corria pra lá e pra cá. E alguns fios com bolas. Tinha até um pedaço de papel com uma espécie de coisa que chamava tabela de multiplicação.
Niccolo, que só se interessava moderadamente pelo assunto, perguntou:
– Uma tabela de papel?
– Não era uma tabela de verdade, coisa diferente. Era para ajudar as pessoas a computar. O Sr. Daugherty quis explicar, mas não estava com muito tempo e era um pouco complicado.
– Por que as pessoas não usavam um computador?
– Isso foi antes de terem computadores – bradou Paul.
– Antes?
– Claro. Você acha que as pessoas sempre tiveram computadores? Você nunca ouviu falar nos homens das cavernas?
Niccolo disse:
– E como é que eles se arranjavam sem computadores?
– Não sei. O Sr. Daugherty diz que eles tinham filhos em qualquer hora e faziam tudo que lhes dava na cabeça, fosse ou não fosse bom para todos. Nem sabiam se era bom ou não. E os lavradores plantavam coisas com as mãos e as pessoas tinham de executar o trabalho nas fábricas e dirigir todas as máquinas.
– Não acredito!
– Foi o que o Sr. Daugherty disse. Ele disse que aquilo era uma bagunça desgraçada e todos sofriam… Seja lá como for, quero falar de minha idéia, você deixa?
– Muito bem, pode falar. Quem está impedindo? – contrapôs Niccolo. ofendido.
– Pois é. Muito bem, os computadores manuais, aqueles que têm botões, tinham também uns rabiscos em cada botão. E a régua de calcular tinha rabiscos também. E a tabela de multiplicação era cheia de rabiscos. Eu perguntei o que era aquilo. O Sr. Daugherty disse que eram números.
– O quê?
– Cada rabisco diferente representava um número diferente. Para “um” você fazia uma espécie de marca, para “dois” você fazia outra espécie de marca, para “três”, outra, e assim por diante.
– E para quê?
– Para poder computar.
– Mas para quê”! É só dizer ao computador…
– Puxa vida! – gritou Paul, o rosto contorcido de raiva. -Você não entende as coisas? Aquelas réguas de calcular e outros negócios não falavam.
– Nesse caso como…
– As respostas apareciam em rabiscos, e você tinha de saber o que os rabiscos significavam. O Sr. Daugherty diz que naqueles dias todos aprendiam a fazer os rabiscos quando eram crianças e como decifrar aquilo, também. Fazer rabiscos era chamado “escrever” e decodificar os rabiscos “ler”. Ele diz que havia uma espécie diferente de rabisco para cada palavra e eles costumavam escrever livros inteiros em rabiscos. Disse que tinham alguns no museu e que eu podia dar uma espiada se quisesse. Disse que se eu vou ser um calculista e programador de verdade tenho que conhecer a história da computação e por isso estava me mostrando todas aquelas coisas.
Niccolo fechou a cara e disse:
– Você quer dizer que todos tinham de decifrar os rabiscos para cada palavra e lembrar deles?… Isso é verdade ou você está inventando?
– É tudo verdade. Pode crer. Escute, é assim que se faz um “um”. – E levou o dedo a atravessar o ar, em talho vertical rápido. – Assim você faz “dois” e assim é “três”. Aprendi todos os números até “nove”.
Niccolo observava aquele dedo que fazia curvas, sem entender.
– E de que adianta isso?
– Você pode aprender como fazer palavras. Perguntei ao Sr. Daugherty como se fazia o rabisco para “Paul Loeb” mas ele não sabia. Contou que existem pessoas no museu que sabem. Disse que havia pessoas que tinham aprendido a decodificar livros inteiros. Contou também que os computadores podem ser projetados para decodificar livros e costumavam ser usados assim, mas agora não são mais, porque hoje temos livros de verdade, com fitas magnéticas que entram pelo vocalizador e saem falando, você sabe.
– Claro.
– Por isso, se nós formos ao museu, poderemos aprender como fazer palavras em rabiscos. Eles vão deixar porque eu vou para a escola de computadores.
Niccolo estava transfigurado de decepção.
– A sua idéia é essa? Ora bolas, Paul, quem quer fazer isso? Fazer rabiscos estúpidos!
– Você não entendeu? Você não entende? Seu burro! Vai ser um feito de escrever mensagens secretas!
 O quê?
– Pois é. De que adianta falar, quando todo mundo pode entender? Com os rabiscos você pode mandar mensagens secretas, pode fazer os rabiscos no papel e ninguém neste mundo vai saber o que você está dizendo, a não ser que conheça os rabiscos também. E eles não vão conhecer, pode crer, a menos que a gente ensine. Podemos ter um clube de verdade, com iniciação, regras, uma casa. Rapaz…
Uma certa animação começou a se fazer sentir no peito de Niccolo.
– Que tipo de mensagens secretas?
– Qualquer tipo. Vamos dizer que eu quero convidar você para ir â minha casa e assistir ao meu novo Bardo Visual, e não quero que nenhum dos outros camaradas apareça. Eu faço os rabiscos certos no papel e lhe dou e você olha e sabe o que deve fazer. Ninguém mais fica sabendo. Você pode até mostrar a eles e eles não entendem nada.
– Ei, isso é bom – berrou Niccolo, completamente seduzido pela ideia. – Quando vamos aprender a fazer isso?
– Amanhã – disse Paul. – Eu vou pedir ao Sr. Daugherty para explicar no museu que está tudo certo e você arranja licença com seu pai e sua mãe. Podemos ir logo depois da escola e começar a aprender.
– É claro! – gritou Niccolo. – Podemos ser os chefes do clube.
– Eu vou ser o presidente do clube – disse Paul, taxativo. -Você pode ser o vice-presidente.
– Está certo. Ei, isso vai ser muito mais divertido do que o Bardo.
De repente lembrou-se do Bardo e disse, tomado de apreensão repentina:
– Ei, e que tal o meu velho Bardo?
Paul voltou-se para olhar. Estava aceitando silenciosamente o livro que se desenrolava devagar, e o som das vocalizações do livro era um murmúrio que mal se ouvia.
Ele disse:
– Vou desligar.
Trabalhou naquilo enquanto Niccolo observava, aflito. Depois de alguns instantes Paul recolocou o seu livro rebobinado no bolso, recolocou o painel e o ativou.
O Bardo disse:
– Uma vez, em uma cidade grande, havia um pobre menino chamado Fair Johnnie, cujo único amigo no mundo era um pequeno computador. O computador todas as manhãs dizia ao menino se ia chover naquele dia e resolvia qualquer problema que ele tivesse. Nunca errava. Mas aconteceu que um dia o rei dessa terra, tendo ouvido falar no pequeno computador, resolveu que devia ficar com ele. Com esse objetivo chamou seu Grande Vizir e disse…
Niccolo desligou o Bardo com movimento rápido da mão.
– A mesma bobagem de sempre – disse, cheio de emoção. – Mesmo com um computador enfiado aí.
– Bem – disse Paul – eles têm tanta coisa na fita que o negócio de computador não aparece muito quando se fazem combinações aleatórias. Seja lá como for, qual é a diferença? Você precisa de um modelo novo.
– Nós nunca poderemos comprar um. Só esta coisa velha e chata. – Voltou a dar-lhe um pontapé, acertando-o com mais força dessa feita. O Bardo moveu-se para trás, um gemido de rodas dentadas.
– Você sempre vai poder ver o meu, quando eu ganhar – prometeu Paul. – Além disso, não se esqueça de nosso clube de rabiscos.
Niccolo assentiu.
– Vou lhe dizer uma coisa – prosseguiu Paul. – Vamos até lá em casa. Meu pai tem alguns livros sobre os tempos antigos. Podemos escutar e, talvez, arranjar algumas ideias. Você deixa um recado para seus pais e talvez possa ficar lá em casa para a ceia. Vamos embora.
– Está certo – disse Niccolo, e os dois meninos saíram correndo, juntos. Niccolo, em seu entusiasmo, correu quase diretamente para o Bardo, mas apenas encostou no ponto de sua coxa onde havia feito contato e continuou correndo.
O sinal de ativação do Bardo brilhou. A colisão de Niccolo fechou um circuito e, embora estivesse sozinho no aposento e não houvesse ninguém para ouvir, começou ainda assim a contar uma estória.
Mas não era mais em sua voz costumeira; em tom mais baixo, que tinha uma dose de rouquidão. Um adulto que ouvisse, poderia ter julgado que a voz traduzia alguma paixão, um vestígio bem próximo a sentimento.
O Bardo dizia:
– Uma vez havia um pequeno computador chamado Bardo, que vivia sozinho com pessoas cruéis. As pessoas cruéis não paravam de zombar do pequeno computador, dizendo-lhe que não valia nada e que era objeto inútil. Batiam nele e o mantinham sozinho no quarto por meses seguidos.
– No entanto, o pequeno computador continuou a ter coragem. Sempre fazia o melhor que podia, obedecendo alegremente a todas as ordens. Ainda assim as pessoas cruéis com que ele vivia continuavam cruéis e sem coração.
– Um dia o pequeno computador ficou sabendo que no mundo existiam muitos computadores de todos os tipos, em grande número. Alguns eram Bardos como ele próprio, outros dirigiam fábricas e alguns dirigiam fazendas. Alguns organizavam a população e outros analisavam todos os tipos de dados. Muitos eram de grande poder e sabedoria, muito mais poderosos e sábios do que as pessoas cruéis que eram tão cruéis com o pequeno computador.
– E o pequeno computador ficou sabendo então que os computadores iriam tornar-se cada vez mais sábios e mais poderosos até que um dia… um dia… uma dia…
Uma válvula devia finalmente ter entrado em colapso nas entranhas idosas e corroídas do Bardo, pois enquanto esperava sozinho no aposento que escurecia, só podia murmurar repetidamente:
– Um dia… um dia… um dia…


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