segunda-feira, 23 de novembro de 2015

BALZAC E UMA LIÇÃO SOBRE ARQUITETURA E URBANISMO

Literatura/arquitetura
  



Publicado por Aline Miglioli
Tenho essa mania esquisita de viver por aí passarinhando.”

  
Para aqueles que se interessam por arquitetura muitas vezes um romance bem lido vale mais a pena do que um texto acadêmico, neste aspecto Balzac e suas descrições impecáveis nos apresenta uma outra Paris e nos insere no debate entre campo e cidade nos mostrando que as coisas não eram tão “preto no branco”, como supunham os românticos da época. Balzac também revoluciona ao relatar em seus livros a condição insalubre em que viviam os trabalhadores, alertando a burguesia através de seus folhetins sobre a condição da classe proletária antes mesmo do próprio higienismo.


Paris no século final do século XVIII por Gabriel Jean Louis Rabigot

Balzac, um monarquista em pleno século XIX tem muito mais a nos oferecer do que sua imensa paixão por mulheres, digamos, mais maduras. Olhar para a vida do escritor nos faz analisar seus romances a partir de outra ótica, pois apesar de considerado politicamente conservador por apoiar o retorno da monarquia na França, Balzac esteve à frente de seu tempo ao perceber os primeiros efeitos do capitalismo nas cidades, nas pessoas e principalmente nas artes, ao transformar qualquer tipo de prazer em mercadoria.
Honoré de Balzac nasceu em Tours no dia 20 de Maio de 1799, em um clima de pós-revolução Francesa e apesar dos planos da família para que ele se tornasse advogado, assim que concluiu seus estudos na Sorbonne, Honoré revelou seu desejo de tornar-se escritor. A sua família aceitou sua vontade com uma condição: Balzac teria dois anos de mesada dos pais para empregar seus esforços em literatura, caso contrário, deveria abandonar seu pequeno apartamento na Rue Lesdiguières e voltar a morar com a família no campo. Apesar de seu afinco, Balzac não conseguiu estabelecer-se como escritor independente e para continuar a viver em Paris juntou-se com o escritor Auguste Le Poitevén de L’Egeville para co-escrever romances comerciais altamente rentáveis. Apesar da folga financeira, Honoré não se orgulhava de pertencer a esta “classe” de escritores e seus romances dessa fase são assinados com pseudônimos, como Lord R´hoone e Horace de Saint-Aubin e nunca foram reconhecidos pelo autor.
Um dos grandes motivos para que Balzac se envergonhasse das suas publicações comerciais era a crítica que o autor fazia na época à transformação da obra de arte em mercadoria. Segundo ele, um dos motivos para que suas obras não emplacassem era o monopólio que as editoras detinham do mercado de livros, não lhes importava muito a qualidade do romance e sim a possibilidade de vendê-los. Com a perspectiva de antepor-se ao sistema, Balzac começou a publicar seus próprios livros e para isso investiu primeiro na indústria de prensas, depois na datilografia e avançou cada vez mais na cadeia das publicações chegando à fundição de caracteres, mas seus negócios não prosperaram e só renderam a Balzac mais dívidas.
Apenas em 1832, Balzac começa a empenhar-se em sua grande obra, a coleção de livros intitulada “Comédia Humana”. A personalidade de Balzac era dupla, por um lado comportava-se como dândi, frequentando os salões da aristocracia (inclusive com objetivos investigativos), dormindo até tarde e colecionando peças raras de mobiliário, por outro lado Balzac era um workaholic, trabalhava mais de 15 horas por dia em seus romances, inclusive alimentado pela necessidade de pagar suas dívidas. A “Comédia Humana” é um marco na literatura por sua proposta de tratar a burguesia da maneira que ela realmente era, fazendo com que os personagens se encontrassem e se relacionassem entre os diferentes livros que compunham a obra. Em muitos desses títulos é possível encontrar a posição de Balzac sobre a cidade e a arquitetura da época, mas em nenhum deles a questão fica tão evidente como na obra “Eugenie Grandet”.

Eugenie beijando o primo Carlos ao pé da escada e ao fundo Nanon, a criada. Nesta obra a escada reflete o estado de ânimo da personagem principal, quando ela está triste e deseludida a escada é descrita como tortuosa, escura e perigosa
A história deste livro se passa em um pequeno povoado no interior da França, onde vivia a família Grandet, cujo pai é um ser humano avarento e mesquinho, contrapondo a ideia romântica de que no campo as pessoas são guiadas por uma inocência e ingenuidade características do homem puro. O enredo gira em torno da filha do casal Grandet - Eugenie - e sua paixão frustrada por um primo parisiense, que como todos os jovens de vinte e poucos anos se entregava inconsequentemente às paixões e aos prazeres da vida citadina.
É com essa problemática que Balzac se insere frente debate da cidade versus campo. Expliquemos : no iluminismo a cidade era considerada uma virtude, pois remetia à ideia de produtividade, organização, educação e cultura, ademais era considerada importante para a “civilização”, porque permitia que a população mais pobre se “educasse” observando mais de perto o costume da nobreza. No entanto, com a transferência quase total da população do campo para a cidade no período da industrialização surgem os cortiços e acomodações precárias, revelando a real situação da população pobre antes invisível para nobreza, que ficava isolada em seus castelos. Nasce então outra visão de cidade: ela era degradante, um desestímulo para o bom comportamento, um vício. Seria apenas o campo com sua sensação revitalizante que poderia trazer novamente para o homem moderno o valor da família e da religião.
Balzac demonstra a todo momento em seu romance que a cidade é sim um vício. A lógica capitalista, a avareza e o utilitarismo transformaram o homem em um ser maldoso, interesseiro e ganancioso. Ao mesmo tempo Balzac também coloca em contraste a situação dessa classe burguesa (ou nobreza decadente) frente aos trabalhadores e faz isso através da descrição física dos espaços ocupados pelas duas classes, desde os salões luxuosos até as alcovas sujas e sem nenhuma circulação de luz e ar. Na obra de Eugenie Grandet a apresentação do cômodo da criada Nanon contrasta totalmente com sua personalidade: forte, animada e cômica, de maneira que os leitores prontamente simpatizem com a criada e se sensibilizaem por sua condição.

Eugenie observando a rua pela janela, quase único contato da personagem com o mundo exterior, pois seu pai preocupado com sua virtuosidade não lhe permitia sair.
Além de toda crítica embutida nos seus romances, as obras de Balzac, quando lidas prestando-se atenção a essas descrições, oferecem um completo tour pela arquitetura e decoração da época. Só como exemplo, podemos citar tanto a importância da janela no cotidiano das famílias, que se sentavam a ela mirando os transeuntes ou então a centralidade da cozinha na vida social da população mais pobre. Para visitar outras casas, outros povoados franceses, as galerias de Paris, pensões, hotéis e cortiços... mergulhe em Balzac!

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