Literatura/arquitetura
Publicado por Aline Miglioli
“Tenho essa mania esquisita de viver por aí passarinhando.”
Para aqueles que se interessam
por arquitetura muitas vezes um romance bem lido vale mais a pena do que um
texto acadêmico, neste aspecto Balzac e suas descrições impecáveis nos
apresenta uma outra Paris e nos insere no debate entre campo e cidade nos
mostrando que as coisas não eram tão “preto no branco”, como supunham os
românticos da época. Balzac também revoluciona ao relatar em seus livros a
condição insalubre em que viviam os trabalhadores, alertando a burguesia
através de seus folhetins sobre a condição da classe proletária antes mesmo do
próprio higienismo.
Paris no século final do século XVIII por
Gabriel Jean Louis Rabigot
Balzac, um monarquista em pleno século XIX
tem muito mais a nos oferecer do que sua imensa paixão por mulheres, digamos,
mais maduras. Olhar para a vida do escritor nos faz analisar seus romances a
partir de outra ótica, pois apesar de considerado politicamente conservador por
apoiar o retorno da monarquia na França, Balzac esteve à frente de seu tempo ao
perceber os primeiros efeitos do capitalismo nas cidades, nas pessoas e
principalmente nas artes, ao transformar qualquer tipo de prazer em mercadoria.
Honoré de Balzac nasceu em Tours no dia 20 de
Maio de 1799, em um clima de pós-revolução Francesa e apesar dos planos da
família para que ele se tornasse advogado, assim que concluiu seus estudos na
Sorbonne, Honoré revelou seu desejo de tornar-se escritor. A sua família
aceitou sua vontade com uma condição: Balzac teria dois anos de mesada dos pais
para empregar seus esforços em literatura, caso contrário, deveria abandonar
seu pequeno apartamento na Rue Lesdiguières e voltar a morar com a família no
campo. Apesar de seu afinco, Balzac não conseguiu estabelecer-se como escritor
independente e para continuar a viver em Paris juntou-se com o escritor Auguste
Le Poitevén de L’Egeville para co-escrever romances comerciais altamente
rentáveis. Apesar da folga financeira, Honoré não se orgulhava de pertencer a
esta “classe” de escritores e seus romances dessa fase são assinados com
pseudônimos, como Lord R´hoone e Horace de Saint-Aubin e nunca foram
reconhecidos pelo autor.
Um dos grandes motivos para que Balzac se
envergonhasse das suas publicações comerciais era a crítica que o autor fazia
na época à transformação da obra de arte em mercadoria. Segundo ele, um dos
motivos para que suas obras não emplacassem era o monopólio que as editoras
detinham do mercado de livros, não lhes importava muito a qualidade do romance
e sim a possibilidade de vendê-los. Com a perspectiva de antepor-se ao sistema,
Balzac começou a publicar seus próprios livros e para isso investiu primeiro na
indústria de prensas, depois na datilografia e avançou cada vez mais na cadeia
das publicações chegando à fundição de caracteres, mas seus negócios não
prosperaram e só renderam a Balzac mais dívidas.
Apenas em 1832, Balzac começa a empenhar-se
em sua grande obra, a coleção de livros intitulada “Comédia Humana”. A
personalidade de Balzac era dupla, por um lado comportava-se como dândi,
frequentando os salões da aristocracia (inclusive com objetivos
investigativos), dormindo até tarde e colecionando peças raras de mobiliário,
por outro lado Balzac era um workaholic, trabalhava mais de 15
horas por dia em seus romances, inclusive alimentado pela necessidade de pagar
suas dívidas. A “Comédia Humana” é um marco na literatura por sua proposta de
tratar a burguesia da maneira que ela realmente era, fazendo com que os
personagens se encontrassem e se relacionassem entre os diferentes livros que
compunham a obra. Em muitos desses títulos é possível encontrar a posição de
Balzac sobre a cidade e a arquitetura da época, mas em nenhum deles a questão
fica tão evidente como na obra “Eugenie Grandet”.
A história deste livro se passa em um pequeno
povoado no interior da França, onde vivia a família Grandet, cujo pai é um ser
humano avarento e mesquinho, contrapondo a ideia romântica de que no campo as
pessoas são guiadas por uma inocência e ingenuidade características do homem
puro. O enredo gira em torno da filha do casal Grandet - Eugenie - e sua paixão
frustrada por um primo parisiense, que como todos os jovens de vinte e poucos
anos se entregava inconsequentemente às paixões e aos prazeres da vida
citadina.
É com essa problemática que Balzac se insere
frente debate da cidade versus campo. Expliquemos : no iluminismo a cidade era
considerada uma virtude, pois remetia à ideia de produtividade, organização,
educação e cultura, ademais era considerada importante para a “civilização”,
porque permitia que a população mais pobre se “educasse” observando mais de
perto o costume da nobreza. No entanto, com a transferência quase total da
população do campo para a cidade no período da industrialização surgem os
cortiços e acomodações precárias, revelando a real situação da população pobre
antes invisível para nobreza, que ficava isolada em seus castelos. Nasce então
outra visão de cidade: ela era degradante, um desestímulo para o bom
comportamento, um vício. Seria apenas o campo com sua sensação revitalizante
que poderia trazer novamente para o homem moderno o valor da família e da
religião.
Balzac demonstra a todo momento em seu
romance que a cidade é sim um vício. A lógica capitalista, a avareza e o
utilitarismo transformaram o homem em um ser maldoso, interesseiro e
ganancioso. Ao mesmo tempo Balzac também coloca em contraste a situação dessa
classe burguesa (ou nobreza decadente) frente aos trabalhadores e faz isso
através da descrição física dos espaços ocupados pelas duas classes, desde os
salões luxuosos até as alcovas sujas e sem nenhuma circulação de luz e ar. Na
obra de Eugenie Grandet a apresentação do cômodo da criada Nanon contrasta
totalmente com sua personalidade: forte, animada e cômica, de maneira que os
leitores prontamente simpatizem com a criada e se sensibilizaem por sua
condição.
Eugenie observando a rua pela janela, quase
único contato da personagem com o mundo exterior, pois seu pai preocupado com
sua virtuosidade não lhe permitia sair.
Além de toda crítica embutida nos seus
romances, as obras de Balzac, quando lidas prestando-se atenção a essas
descrições, oferecem um completo tour pela arquitetura e
decoração da época. Só como exemplo, podemos citar tanto a importância da
janela no cotidiano das famílias, que se sentavam a ela mirando os transeuntes
ou então a centralidade da cozinha na vida social da população mais pobre. Para
visitar outras casas, outros povoados franceses, as galerias de Paris, pensões,
hotéis e cortiços... mergulhe em Balzac!
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