Vale a pena reler de novo
Texto de Luiz Carlos Facó,
extraído do livro Contos em Cantos Saudosos
Quase um conto, porém
verdadeiro, vivido nos idos de 1960
Saímos
de Dacar (África)i ao badalar das três horas. O céu limpo e o mar calmo
prenunciavam uma viagem tranquila. Indiferente a tais prognósticos, nossa nau
singrava o mar, espadanando água para todos os lados com garbo e elegância. Sem
se preocupar, quer com o tempo quer com os dramas, alegrias, emoções saudades e
esperanças que carregava. Sentimentos, contidos e trancados a incontáveis
chaves nos corações dos passageiros, cujos semblantes só denunciavam tédio,
impaciência e o desejo vão de ver os dias abreviados, permitindo-lhes, o quanto
antes, atingir seus destinos.
Entre
os ansiosos eu me colocava. Para disfarçar tal estado de ânimo, passara a
observar, por horas, o encontro do céu e do mar no horizonte longínquo. Ou
trocar ideias com um libanês, de nome Fuad, há anos radicado no Brasil.
Requintado no falar e no modo de vestir. Segundo ele, próspero industrial em
São Paulo. Versado na vida política brasileira e internacional, conhecedor
profundo das cidades que eu visitaria.
Nossas
conversas, que varavam a madrugada, foram provavelmente as responsáveis pela
transformação daquele mero conhecimento assim pensava, em admiração.
Propiciava-me,
também, semear as primeiras sementes de uma amizade, presumivelmente,
duradoura.
Raramente
nos distanciávamos. Compartilhávamos todas as refeições.
Frequentávamos
o bar onde sorvíamos deliciosos coquetéis, preparados sob a sua orientação.
Experimentávamos licores produzidos em diversos países. O melhor é que jamais
paguei um só centavo de dólar pelas despesas realizadas. Ele se prontificava a
saldá-las.
Ademais,
encontramos muitas afinidades no nosso modo de pensar.
Enquanto
se desenvolvia aquele amistoso conhecimento, o navio fazia escalas em Funchal,
capital da ilha da Madeira, e em Lisboa.
Nesses
dois portos, Fuad sumiu.
Juntei-me
a outros amigos para uma rápida exploração das duas cidades.
Em
Funchal, comprei bordados, comi uma suculenta bacalhoada acompanhada de bom
vinho.
Em
Lisboa, senti-me europeu. Visitei seus principais pontos turísticos. A praça
monumental Marquês de Pombal, o Mosteiro dos Jerônimos, Estoril, o Alfama, onde
assisti a um espetáculo de fados, reservando, para mais tarde, inteirar-me
melhor da vida e costumes lisboetas.
Quando
o navio partiu rumo a Gênova, eis que surge, como por encanto, a figura de
Fuad.
Fidalgo,
como sempre, desculpou-se pela ausência. Alegava razões comerciais para o seu
desaparecimento. Cridas sem hesitações.
Fazia-se
tarde. Meu corpo, castigado pela aquela jornada, em Lisboa, exigia cama.
Recolhi-me ao camarote após despedir-me do quase amigo. Meia hora depois,
quando conciliara o sono, batem à porta. Fui conferir quem nos molestava. Era
Fuad. Estava apreensivo, porém não despido dos seus modos corretos. Eu, Álvaro
Pinto Dantas de Carvalho e Wilson Carvalho Oliveira, colegas e companheiros do
mesmo aposento, esperamos, curiosos, as suas explicações para a intempestiva
visita. E ela veio de inopino, através de um pedido:
-
Desembarco amanhã em Gênova. Peço aos amigos que levem esse pacote para
Marselha. Tenho negócios inadiáveis para tratar na Itália. Tão logo me
desvencilhe deles, vou encontra-los em Marselha. Provavelmente no dia do
desembarque de vocês ou, no mais tardar, no subsequente. Caso haja algum tipo
de impedimento que me faça perder esse encontro, entreguem ao meu portador esta
encomenda. Seu nome é Barris Abdulla. Se ele não aparecer, darei um jeito de
solucionar a pendenga. Não se assustem com o conteúdo do pacote. São sementes
de café brasileiro que pretendo plantar na minha terra natal. O Abdulla, meu
primo e administrador de uma pequena propriedade que lá possuo, encarregar-se-á
de leva-las até o Líbano. Fiquem hospedados na pensão de Sylvie. É ótima e o
preço em conta. Familiar, aconchegante. O tratamento e limpeza, ímpares. A
comida e o vinho, excelentes. Aqui está o cartão com o endereço da sua
estalagem.
Feito
o pedido e, na certeza que nos convencera a aceitá-lo, despediu-se,
desejando-nos boa sorte, prometendo, ainda, um breve reencontro.
Jamais
fui avaro, muito menos perdulário da inteligência. Porquanto não a possuo na
medida desejada. Eis o porquê de não ter conseguido maldar intenções outras
naquela solicitação. Raciocínio compartilhado pelos meus colegas.
Pela
manhã, acordamos com o navio atracado em Gênova. Olhando em derredor, vi,
fundeados ao lado, os paquetes Queen Mary e o Cristóvão Colombo. Senti-me
observando a grandiosidade deles, humilhado por ter viajado no Bretagne.
Diante daqueles monstros, uma casca de noz flutuante.
Dispondo
de poucas horas para conhecer a cidade, fomos visitar a sua maior atração e
preciosidade artística: o cemitério. Repositório de um impressionante acervo de
esculturas indescritíveis pela beleza que possuem. Notáveis, pelo valor
artístico que encerram. Impressionantes, pela plasticidade de suas linhas. Cada
uma delas, enfeitando mausoléus assemelhados a palácios riquíssimos.
Jamais
supusera existir tanta riqueza numa cidade de mortos. Mesmo levando-se em conta
as pirâmides, túmulo dos faraós.
Até
hoje, guardo na memória a beleza e a paz que aquele campo-santo me transmitiu.
Muito embora ainda prefira pertencer ao campo conturbado e, quase sempre,
insano dos vivos.
Dois
dias depois, desembarcava em Marselha, com o peito inflado de emoção, armas e
bagagens. Era o fim da viagem e o começo de uma nova etapa em minha vida.
Seguindo
a orientação de Fuad, fomos diretos para o petit hotel de
Sylvie, onde fanfarras acolhedoras nos recepcionaram.
Eu,
Wilson, Álvaro e o professor Machadinho – Augusto Alexandre Machado –, que se
incorporara ao nosso grupo, acomodamo-nos em dois apartamentos contíguos, cuja
porta que os separa vivia eternamente aberta.
Só
havia um senão. Não existiam banheiros e dependências sanitárias particulares
em nossos cômodos. Utilizávamos as instalações coletivas no final do corredor
com uma circunstância agravante: caso demorássemos sob a ducha do chuveiro,
corríamos o risco de sair dela ensaboados. A água despejada sobre nós era
limitada a precisos três minutos. Coisa dos pouco higiênicos, embora perfumados
franceses.
Marselha
não nos entusiasmou. Pareceu-me triste. Cinza. Pouco atrativa. Só a comida e o
vinho se salvavam. Mas teve uma serventia: serviu de base para organizarmos
nosso roteiro de viagem e aviarmos os meios de cumpri-lo.
Entediados
com a monotonia da cidade, portuária por excelência, passamos a maior parte do
tempo no hotel, mesmo porque esperávamos o portador de Fuad ou o próprio para
cumprirmos a missão que nos fora confiada.
Resisti
ao tédio, mantendo longas conversas com a adorável Sylvie. Uma mulher beirando
ou ultrapassando a casa dos quarenta anos – uma legítima ‘balzaquiana’ – mas
conservando o frescor intenso da juventude. Baixinha, magra, muito bem feita de
corpo, rosto angelical que fazia sobressair seus olhos de um intenso azul, que
me fitavam com insistência, de maneira assaz langorosa. Radicalmente diferente
das demais mulheres daquela época pela sua total desinibição e pelo interesse
que demonstrava pela literatura. Nos quatro dias que estivemos juntos, sempre a
vi ocupada com a leitura. Falava depressa, emendando um assunto ao outro. Sua
perspicácia e inteligência desmentiam a crença popular de que toda loira é
burra.
Diante
do seu refinamento, difícil de não se notar, presumi um quê de nobreza em sua
origem. Mais tarde, soube ser ela viúva de um advogado, dos mais famosos da
cidade, morto pela Gestapo quando participava, com os maquis, forças da
resistência francesa, de atentados contra os invasores alemães. A figura dele
estava presente naquele estabelecimento. Em uma das paredes da recepção do
hotel, lá estavam expostos o seu retrato e as condecorações que havia recebido, post
mortem, do governo francês pela sua participação heroica na 2ª Grande
Guerra.
Os
quatro mosqueteiros, assim nos denominávamos, Machadinho, Álvaro, Wilson e eu,
sempre éramos distinguidos por Sylvie nos convidando, às refeições, para
participar da sua mesa.
Anfitriã
consumada sabia deixar à vontade os seus convivas. Reservava-nos deliciosos
quitutes, bons vinhos, queijos e saborosas sobremesas. Só faltava o café.
Raríssimo, em Marselha, naquele período. Num daqueles jantares, querendo ser
gentil, subi ao apartamento e peguei, entre os achados da minha bagagem, um dos
postes de café solúvel, trazidos para a satisfação do meu vício. Entreguei-o a
Sylvie, pedindo-lhe que preparasse um gostoso cafezinho para nós. O curioso foi
perceber a sua estupefação. Senti na nossa hospedeira, naquele instante, ter em
suas mãos um tesouro. Seus olhos brilhavam, o sorriso sempre discreto que
sempre iluminara o seu rosto se escancarara de forma acintosa, enquanto
exclamava repetidas vezes:
- Café
du Brésil, Café du Brésil!
Depois
de sorvido aquele néctar reparador, com todas as liturgias que o momento
requeria, ficamos animados em ir à rua buscar divertimentos e emoções.
Convidamos Sylvie para nos acompanhar, mas ela educadamente recusou. Entretanto
nos orientou acerca da nossa pretensa peregrinação em busca de prazeres.
Antes
de sair, vendo o vidro de café que quedava inerte sobre a mesa, dirigi-me a
ela, pedindo-lhe:
- Gardez
mon café.
Não
sei se por deficiência do meu francês ou pela sabedoria de Sylvie, perdi aquele
pote irremediavelmente. Seu entendimento do vocábulo guardar, enfatizado por
mim, foi ficar para ela. Diante daquela situação tragicômica, cujas explicações
de nada adiantariam, o jeito foi esquecer o prejuízo. Em compensação, ganhei
abraços apertados e beijos melosos de agradecimentos. Menos mal.
Afora
o Château D’If, erigido em meio ao mar como o nosso Forte de São
Marcelo, suposta prisão do Conde de Monte Cristo, uma das personagens mais
famosas da literatura mundial, criada por Alexandre Dumas, em Marselha, nada
brilhava. Nem a noite dos seus inúmeros cabarés. Por isso, nosso retorno ao
hotel deu-se cedo.
Ao
entrarmos, deparamo-nos com Sylvie, lendo atentamente, sob a luz de um abajur,
um livro de Jean-Paul Sartre, disse-me depois. O título, nem lembro. A
lembrança que me ficou foram de seus olhares pousados nos meus, plenos de
pedidos. Algumas vezes, demonstrando recato, outras tantas, pura lascívia. As
mesmas expressões que os meus deixavam transparecer, num encontro incendiário,
propiciador do escancaramento da porta de sua alcova para o idílio ambicionado
por ambos. Um ambiente que exalava, para mim, ora o olor de rosas, as flores da
paixão, ora o perfume de um ramalhete de saudades, as flores do adeus.
Hoje,
ao escrever sobre o episódio, debito à minha fraqueza ter sucumbido aos apelos
do sexo. Sobremodo, porque jurara à minha noiva, poucos dias antes, fidelidade
absoluta. Nada mais corruptível do que o chamamento da carne. Penitencio-me
pelo pecado, dedicando-lhe estes versos:
Tu, sempre tu!
Não me julgues leviano;
se no momento
A vida me perfuma
Outra mulher – é que tem
alguma
Graça, que a ti eleva o
pensamento.
Dia
seguinte, à tarde, partimos. Porém, Fuad, ou o seu preposto não apareceram. A
apreensão tomava conta de todos nós. Resolvemos, levados por tal sentimento,
unanimemente, relatar o ocorrido ao professor Machadinho. Este se fez
preocupado, exigindo que abríssemos o pacote que nos fora confiado. Ao
fazermos, defrontamo-nos com um saco aveludado, de cor azul, contendo numerosos
diamantes lapidados. De tamanhos e cores variados. Acaso os somássemos,
encontraríamos ali, presumo mais de cem quilates da preciosa gema.
Da
surpresa e abatimento que nos cercara, passamos à ação. Machadinho telefonou ao
consulado brasileiro em Marselha, solicitando a presença, urgente, de um dos
seus representantes em nosso hotel. E ele não fez se esperar. Em poucos
minutos, estávamos diante do vice-cônsul. Atento e apreensivo, ele ouviu
nossa história. Porém, sossegou-nos dizendo que se encarregaria dos demais
procedimentos legais, liberando-nos para prosseguirmos viagem. Ficaram com ele
as pedras, mediante um recibo de depósito, nossos nomes, nosso destino final e
a esperança de superarmos, incólumes, tamanho imbróglio provocado por mera
inocência, estupidez ou burrice, quiçá, pela inexperiência dos nossos 22 anos.
Meses
depois, em Coimbra, Wilson, folheando uma passada edição do Diário de Lisboa,
nela viu a foto de Fuad acompanhada da notícia de que ele, notório
contrabandista de pedras preciosas sul-americanas, diamantes e esmeraldas, e o
seu grupo haviam sido pressões. O nosso pasmo foi grande. Maior mesmo foi
sabermos que o seu nome não era Fuad, tampouco possuía nacionalidade libanesa.
Era sírio. Ou melhor, tinha dupla cidadania: brasileira e síria. E o seu
verdadeiro nome era Barris Abdulla.
Quanto
às pedras entregues ao vice-cônsul, jamais tivemos notícias.
Do episódio, absolutamente verdadeiro – ainda
vivem Wilson e Álvaro para testemunhá-lo – restou-me a certeza de que “todo
baiano burro nasce morto”, mas os inocentes ou trouxas sempre vingam.
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