terça-feira, 24 de novembro de 2015

CONTRABANDISTA POR ACASO

Vale a pena reler de novo


Texto de Luiz Carlos Facó,
extraído do livro Contos em Cantos Saudosos


  
Quase um conto, porém verdadeiro, vivido nos idos de 1960
  

Saímos de Dacar (África)i ao badalar das três horas. O céu limpo e o mar calmo prenunciavam uma viagem tranquila. Indiferente a tais prognósticos, nossa nau singrava o mar, espadanando água para todos os lados com garbo e elegância. Sem se preocupar, quer com o tempo quer com os dramas, alegrias, emoções saudades e esperanças que carregava. Sentimentos, contidos e trancados a incontáveis chaves nos corações dos passageiros, cujos semblantes só denunciavam tédio, impaciência e o desejo vão de ver os dias abreviados, permitindo-lhes, o quanto antes, atingir seus destinos.

Entre os ansiosos eu me colocava. Para disfarçar tal estado de ânimo, passara a observar, por horas, o encontro do céu e do mar no horizonte longínquo. Ou trocar ideias com um libanês, de nome Fuad, há anos radicado no Brasil. Requintado no falar e no modo de vestir. Segundo ele, próspero industrial em São Paulo. Versado na vida política brasileira e internacional, conhecedor profundo das cidades que eu visitaria.

Nossas conversas, que varavam a madrugada, foram provavelmente as responsáveis pela transformação daquele mero conhecimento assim pensava, em admiração.

Propiciava-me, também, semear as primeiras sementes de uma amizade, presumivelmente, duradoura.

Raramente nos distanciávamos. Compartilhávamos todas as refeições.

Frequentávamos o bar onde sorvíamos deliciosos coquetéis, preparados sob a sua orientação. Experimentávamos licores produzidos em diversos países. O melhor é que jamais paguei um só centavo de dólar pelas despesas realizadas. Ele se prontificava a saldá-las.

Ademais, encontramos muitas afinidades no nosso modo de pensar.

Enquanto se desenvolvia aquele amistoso conhecimento, o navio fazia escalas em Funchal, capital da ilha da Madeira, e em Lisboa.

Nesses dois portos, Fuad sumiu.

Juntei-me a outros amigos para uma rápida exploração das duas cidades.

Em Funchal, comprei bordados, comi uma suculenta bacalhoada acompanhada de bom vinho.

Em Lisboa, senti-me europeu. Visitei seus principais pontos turísticos. A praça monumental Marquês de Pombal, o Mosteiro dos Jerônimos, Estoril, o Alfama, onde assisti a um espetáculo de fados, reservando, para mais tarde, inteirar-me melhor da vida e costumes lisboetas.

Quando o navio partiu rumo a Gênova, eis que surge, como por encanto, a figura de Fuad.

Fidalgo, como sempre, desculpou-se pela ausência. Alegava razões comerciais para o seu desaparecimento. Cridas sem hesitações.

Fazia-se tarde. Meu corpo, castigado pela aquela jornada, em Lisboa, exigia cama. Recolhi-me ao camarote após despedir-me do quase amigo. Meia hora depois, quando conciliara o sono, batem à porta. Fui conferir quem nos molestava. Era Fuad. Estava apreensivo, porém não despido dos seus modos corretos. Eu, Álvaro Pinto Dantas de Carvalho e Wilson Carvalho Oliveira, colegas e companheiros do mesmo aposento, esperamos, curiosos, as suas explicações para a intempestiva visita. E ela veio de inopino, através de um pedido:

- Desembarco amanhã em Gênova. Peço aos amigos que levem esse pacote para Marselha. Tenho negócios inadiáveis para tratar na Itália. Tão logo me desvencilhe deles, vou encontra-los em Marselha. Provavelmente no dia do desembarque de vocês ou, no mais tardar, no subsequente. Caso haja algum tipo de impedimento que me faça perder esse encontro, entreguem ao meu portador esta encomenda. Seu nome é Barris Abdulla. Se ele não aparecer, darei um jeito de solucionar a pendenga. Não se assustem com o conteúdo do pacote. São sementes de café brasileiro que pretendo plantar na minha terra natal. O Abdulla, meu primo e administrador de uma pequena propriedade que lá possuo, encarregar-se-á de leva-las até o Líbano. Fiquem hospedados na pensão de Sylvie. É ótima e o preço em conta. Familiar, aconchegante. O tratamento e limpeza, ímpares. A comida e o vinho, excelentes. Aqui está o cartão com o endereço da sua estalagem.

Feito o pedido e, na certeza que nos convencera a aceitá-lo, despediu-se, desejando-nos boa sorte, prometendo, ainda, um breve reencontro.

Jamais fui avaro, muito menos perdulário da inteligência. Porquanto não a possuo na medida desejada. Eis o porquê de não ter conseguido maldar intenções outras naquela solicitação. Raciocínio compartilhado pelos meus colegas.

Pela manhã, acordamos com o navio atracado em Gênova. Olhando em derredor, vi, fundeados ao lado, os paquetes Queen Mary e o Cristóvão Colombo. Senti-me observando a grandiosidade deles, humilhado por ter viajado no Bretagne. Diante daqueles monstros, uma casca de noz flutuante.

Dispondo de poucas horas para conhecer a cidade, fomos visitar a sua maior atração e preciosidade artística: o cemitério. Repositório de um impressionante acervo de esculturas indescritíveis pela beleza que possuem. Notáveis, pelo valor artístico que encerram. Impressionantes, pela plasticidade de suas linhas. Cada uma delas, enfeitando mausoléus assemelhados a palácios riquíssimos.

Jamais supusera existir tanta riqueza numa cidade de mortos. Mesmo levando-se em conta as pirâmides, túmulo dos faraós.

Até hoje, guardo na memória a beleza e a paz que aquele campo-santo me transmitiu. Muito embora ainda prefira pertencer ao campo conturbado e, quase sempre, insano dos vivos.

Dois dias depois, desembarcava em Marselha, com o peito inflado de emoção, armas e bagagens. Era o fim da viagem e o começo de uma nova etapa em minha vida.
Seguindo a orientação de Fuad, fomos diretos para o petit hotel de Sylvie, onde fanfarras acolhedoras nos recepcionaram.

Eu, Wilson, Álvaro e o professor Machadinho – Augusto Alexandre Machado –, que se incorporara ao nosso grupo, acomodamo-nos em dois apartamentos contíguos, cuja porta que os separa vivia eternamente aberta.

Só havia um senão. Não existiam banheiros e dependências sanitárias particulares em nossos cômodos. Utilizávamos as instalações coletivas no final do corredor com uma circunstância agravante: caso demorássemos sob a ducha do chuveiro, corríamos o risco de sair dela ensaboados. A água despejada sobre nós era limitada a precisos três minutos. Coisa dos pouco higiênicos, embora perfumados franceses.

Marselha não nos entusiasmou. Pareceu-me triste. Cinza. Pouco atrativa. Só a comida e o vinho se salvavam. Mas teve uma serventia: serviu de base para organizarmos nosso roteiro de viagem e aviarmos os meios de cumpri-lo.

Entediados com a monotonia da cidade, portuária por excelência, passamos a maior parte do tempo no hotel, mesmo porque esperávamos o portador de Fuad ou o próprio para cumprirmos a missão que nos fora confiada.

Resisti ao tédio, mantendo longas conversas com a adorável Sylvie. Uma mulher beirando ou ultrapassando a casa dos quarenta anos – uma legítima ‘balzaquiana’ – mas conservando o frescor intenso da juventude. Baixinha, magra, muito bem feita de corpo, rosto angelical que fazia sobressair seus olhos de um intenso azul, que me fitavam com insistência, de maneira assaz langorosa. Radicalmente diferente das demais mulheres daquela época pela sua total desinibição e pelo interesse que demonstrava pela literatura. Nos quatro dias que estivemos juntos, sempre a vi ocupada com a leitura. Falava depressa, emendando um assunto ao outro. Sua perspicácia e inteligência desmentiam a crença popular de que toda loira é burra.

Diante do seu refinamento, difícil de não se notar, presumi um quê de nobreza em sua origem. Mais tarde, soube ser ela viúva de um advogado, dos mais famosos da cidade, morto pela Gestapo quando participava, com os maquis, forças da resistência francesa, de atentados contra os invasores alemães. A figura dele estava presente naquele estabelecimento. Em uma das paredes da recepção do hotel, lá estavam expostos o seu retrato e as condecorações que havia recebido, post mortem, do governo francês pela sua participação heroica na 2ª Grande Guerra.

Os quatro mosqueteiros, assim nos denominávamos, Machadinho, Álvaro, Wilson e eu, sempre éramos distinguidos por Sylvie nos convidando, às refeições, para participar da sua mesa.

Anfitriã consumada sabia deixar à vontade os seus convivas. Reservava-nos deliciosos quitutes, bons vinhos, queijos e saborosas sobremesas. Só faltava o café. Raríssimo, em Marselha, naquele período. Num daqueles jantares, querendo ser gentil, subi ao apartamento e peguei, entre os achados da minha bagagem, um dos postes de café solúvel, trazidos para a satisfação do meu vício. Entreguei-o a Sylvie, pedindo-lhe que preparasse um gostoso cafezinho para nós. O curioso foi perceber a sua estupefação. Senti na nossa hospedeira, naquele instante, ter em suas mãos um tesouro. Seus olhos brilhavam, o sorriso sempre discreto que sempre iluminara o seu rosto se escancarara de forma acintosa, enquanto exclamava repetidas vezes:

Café du Brésil, Café du Brésil!

Depois de sorvido aquele néctar reparador, com todas as liturgias que o momento requeria, ficamos animados em ir à rua buscar divertimentos e emoções. Convidamos Sylvie para nos acompanhar, mas ela educadamente recusou. Entretanto nos orientou acerca da nossa pretensa peregrinação em busca de prazeres.
Antes de sair, vendo o vidro de café que quedava inerte sobre a mesa, dirigi-me a ela, pedindo-lhe:

Gardez mon café.

Não sei se por deficiência do meu francês ou pela sabedoria de Sylvie, perdi aquele pote irremediavelmente. Seu entendimento do vocábulo guardar, enfatizado por mim, foi ficar para ela. Diante daquela situação tragicômica, cujas explicações de nada adiantariam, o jeito foi esquecer o prejuízo. Em compensação, ganhei abraços apertados e beijos melosos de agradecimentos. Menos mal.

Afora o Château D’If, erigido em meio ao mar como o nosso Forte de São Marcelo, suposta prisão do Conde de Monte Cristo, uma das personagens mais famosas da literatura mundial, criada por Alexandre Dumas, em Marselha, nada brilhava. Nem a noite dos seus inúmeros cabarés. Por isso, nosso retorno ao hotel deu-se cedo.

Ao entrarmos, deparamo-nos com Sylvie, lendo atentamente, sob a luz de um abajur, um livro de Jean-Paul Sartre, disse-me depois. O título, nem lembro.  A lembrança que me ficou foram de seus olhares pousados nos meus, plenos de pedidos. Algumas vezes, demonstrando recato, outras tantas, pura lascívia. As mesmas expressões que os meus deixavam transparecer, num encontro incendiário, propiciador do escancaramento da porta de sua alcova para o idílio ambicionado por ambos. Um ambiente que exalava, para mim, ora o olor de rosas, as flores da paixão, ora o perfume de um ramalhete de saudades, as flores do adeus.

Hoje, ao escrever sobre o episódio, debito à minha fraqueza ter sucumbido aos apelos do sexo. Sobremodo, porque jurara à minha noiva, poucos dias antes, fidelidade absoluta. Nada mais corruptível do que o chamamento da carne. Penitencio-me pelo pecado, dedicando-lhe estes versos:

Tu, sempre tu!
Não me julgues leviano; se no momento
A vida me perfuma
Outra mulher – é que tem alguma
Graça, que a ti eleva o pensamento.

Dia seguinte, à tarde, partimos. Porém, Fuad, ou o seu preposto não apareceram. A apreensão tomava conta de todos nós. Resolvemos, levados por tal sentimento, unanimemente, relatar o ocorrido ao professor Machadinho. Este se fez preocupado, exigindo que abríssemos o pacote que nos fora confiado. Ao fazermos, defrontamo-nos com um saco aveludado, de cor azul, contendo numerosos diamantes lapidados. De tamanhos e cores variados. Acaso os somássemos, encontraríamos ali, presumo mais de cem quilates da preciosa gema.

Da surpresa e abatimento que nos cercara, passamos à ação. Machadinho telefonou ao consulado brasileiro em Marselha, solicitando a presença, urgente, de um dos seus representantes em nosso hotel. E ele não fez se esperar. Em poucos minutos, estávamos diante do vice-cônsul.  Atento e apreensivo, ele ouviu nossa história. Porém, sossegou-nos dizendo que se encarregaria dos demais procedimentos legais, liberando-nos para prosseguirmos viagem. Ficaram com ele as pedras, mediante um recibo de depósito, nossos nomes, nosso destino final e a esperança de superarmos, incólumes, tamanho imbróglio provocado por mera inocência, estupidez ou burrice, quiçá, pela inexperiência dos nossos 22 anos.

Meses depois, em Coimbra, Wilson, folheando uma passada edição do Diário de Lisboa, nela viu a foto de Fuad acompanhada da notícia de que ele, notório contrabandista de pedras preciosas sul-americanas, diamantes e esmeraldas, e o seu grupo haviam sido pressões. O nosso pasmo foi grande. Maior mesmo foi sabermos que o seu nome não era Fuad, tampouco possuía nacionalidade libanesa. Era sírio. Ou melhor, tinha dupla cidadania: brasileira e síria. E o seu verdadeiro nome era Barris Abdulla.

Quanto às pedras entregues ao vice-cônsul, jamais tivemos notícias.

Do episódio, absolutamente verdadeiro – ainda vivem Wilson e Álvaro para testemunhá-lo – restou-me a certeza de que “todo baiano burro nasce morto”, mas os inocentes ou trouxas sempre vingam.


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