Publicado por Piero de Sá,
”Sou um
floco de neve único, irrepetível e especial.”
O Ocidente, com os recentes ataques de
terroristas islâmicos, está colhendo o que plantou ao longo das últimas
décadas? Este é o preço que, no final, devemos pagar coletivamente pelos
pecados e pelas injustiças que cometemos ao longo dos séculos e séculos? Até
onde vai a nossa responsabilidade... e culpa por isso?
Newton, de William Blake, 1805. Ou seria um
homem ocidental arquitetando o futuro da humanidade?
Carlos Latuff é um ilustrador anti-semita carioca.
Ele ficou famoso por ganhar o segundo lugar no Concurso Internacional de
Caricaturas sobre o Holocausto em 2006 - um evento promovido no Irã com o
intuito de satirizar e negar a realidade do genocídio dos judeus durante a
Segunda Guerra Mundial - e, de vez em quando, ele vai defecar suas fezes morais
na internet. Além de fazer uma versão palestina do Che Guevara ,
sob protestos da família do argentino, ele decidiu dar sua opinião iluminada
acerca dos ataques terroristas que ocorrem em Paris na semana passada. E sobre
ele, mais não nos ocupemos, a charge abaixo, peço que só olhem e passem.
A charge sugere a noção de que os atentados
terroristas na França são uma consequência natural e direta da política externa
francesa. Fiquei irritado ao ver essa caricatura, mas sei que Latuff não deve
ser levado à sério. O que me chocou, de verdade, porém, foi ouvir o coro de
pessoas que acreditam que, de fato, a França está colhendo os frutos de suas
decisões político-militares ou afirmando que, em última instância, o caos no
qual hoje o Oriente Médio está imerso é uma consequência das ações dos países
do Ocidente, ou, como afirmou nosso ex-presidente (o de 9 dedos, não o ateu
maconheiro), dos "brancos de olhos azuis". Fiquei perplexo com essa
afirmação. Se isso for mesmo verdade, todos nós, ocidentais, temos a obrigação
moral de nos desculpar e de ajudar a remediar a situação. Tentei me lembrar
então da razão pela qual os franceses começaram a intervir militarmente contra
o Estado Islâmico.
Voltemos a agosto de 2014. O Estado Islâmico
declarou sua intenção de transformar a Terra num califado islâmico e estava
avançando suas conquistas na Síria e no Iraque. Neste último país, 250 mil
iazidis - uma minoria curda que segue uma religião oriunda do Zoroastrismo -
estavam sob o risco de serem exterminadas pelos terroristas islâmicos. Em
poucos dias, 200 mil iazidis conseguiram escapar antes que o EI chegasse, mas
50 mil deles foram encurralados no monte Sinjar. Começou então um cerco e os 50
mil iazidis, sem água, alimentos e armas, estavam diante de um risco real e
iminente de genocídio.
Neste momento, a mídia internacional começou a
realizar forte pressão para que alguém - qualquer pessoa - interviesse para
evitar um genocídio transmitido ao vivo pelo twitter oficial do Estado
Islâmico. Foi aí, então, que Barack Obama anunciou que os Estados Unidos da
América começariam uma intervenção militar na região. Graças à intervenção
americana (e de seus aliados), na forma de ataques aéreos contra os jihadistas
e envio de água e de comida aos curdos cercados, 45 mil iazidis saíram vivos
desse cerco. Um mês depois, François Hollande, o presidente francês, anunciou o
início da Operação Chammal, a intervenção militar francesa - limitadas a
bombardeios aéreos - na região. O Estado Islâmico declarou sábado passado que
foi em resposta à Operação Chammal que 129 civis foram massacrados em Paris.
Então, devo acreditar que é culpa dos franceses que
isso aconteceu? Eles deveriam ter se omitido de evitar o genocídio de 50 mil
iazidis para salvar a vida de seus cidadãos? Fora o Latuff, ninguém acredita
nisso. O que ouvi de intelectuais e da plebe profana em geral, é que, de
maneira ampliada e numa escala maior das coisas, o Ocidente tem causado caos e
desestabilização no Oriente-Médio e que, nesse sentido, é culpa dos brancos de
olhos azuis que o Estado Islâmico esteja matando pessoas em Paris. (Essa
posição não explica por qual razão o Al-Shabaab, aliados oficiais do Estado
Islâmico, matou 147 pessoas numa universidade no Quênia, um país que não
realiza ataques contra o EI, mas vamos fingir que isto não conta.)
Bem, o argumento é que, durante o século XIX e o
começo do século XX, potências europeias colonizaram porções da África e do
Oriente Médio e que é culpa dessa colonização que esses países hoje são
subdesenvolvidos e que eles vivem em guerra (os efeitos do império otomano, que
dominou a região de 1299 até 1923 podem ser ignorados, pois eles não são
ocidentais). Logo, qualquer desdobramento histórico na região, não importa o
quão distante no tempo e na ideologia do Ocidente, são resultados das ações dos
homens brancos e de olhos azuis. Os atuais habitantes do Oriente Médio e o
Estado Islâmico, em última instância, não têm culpa pelas ações que eles estão
cometendo, pois elas são consequência das condições nas quais os homens brancos
os deixaram.
Para citar outros exemplos paralelos, o Haiti se
tornou um país independente em 1804, mas, até hoje, mais de 200 anos depois de
sua independência, o Governo haitiano formalmente culpa a França por seus
problemas sociais e econômicos e demanda compensações pecuniárias. O autor
uruguaio Eduardo Galeno escreveu um livro chamado "Veias Abertas da
América Latina", no qual basicamente afirmava que os males do nosso
continente são resultados das ações dos espanhóis, portugueses e anglófonos;
ele mesmo reconheceu que suas teorias estavam erradas, mas o consenso dos
nossos intelectuais é que, sim, é a culpa é dos brancos. Por fim, a escravidão
e o comércio de escravos era algo perfeitamente comum e um comércio muito
lucrativo para os árabes: milhões de eslavos brancos (os famosos saqalibas) e
bantus negros foram escravizados para a elite otomana e, décadas depois da Lei
Áurea, isso ainda era visto como algo comum por lá. A posição do imaginário popular
e de elite intelectual, porém, é de que a escravidão é uma tragédia pela qual
os brancos são responsáveis.
Em suma, independente da base historiográfica por
trás de qualquer fato histórico, alguém sempre poderá rastrear a
responsabilidade de acontecimentos negativos na História para grupos ou países
ocidentais e brancos. E, igualmente, qualquer acontecimento negativo que está
acontecendo ou acontecerá no futuro será considerado como culpa do Ocidente.
Sendo eu ocidental, eu deveria chorar diante disso, mas, na verdade, eu percebi
que isso significa algo muito mais macabro. A culpa de tragédias e, em suma, da
maldade do ser humano acaba sendo, em última instância, atribuída aos brancos
ocidentais.
Num outro post, eu tinha comentado sobre como o
Ocidente havia realizado o monopólio do mal. Neste post, eu
apresento a contraparte. Em contraposição ao homem ocidental, que pode ser
responsabilizado pelas suas falhas, o restante da humanidade hoje vive num
estado de perene menoridade e inimputabilidade moral. Os dois pesos e duas
medidas dos nossos intelectuais permitem que os "brancos de olhos
azuis" sejam censurados pelo o resultado de seu livre arbítrio, mas o
restante da humanidade, como disse o Cristo na cruz, "não sabe o que
faz". E o que significa ser ocidental diante dessa disparidade? Ora,
significa ser os deuses da História
De fato, seja por nossa intervenção divina, quero
dizer, direta ou como resultado direto das ações do Ocidente, qualquer fato
histórico dos últimos séculos é rastreável para nós. Nós, os ocidentais,
espalhamos com raiva nossas sete pragas pelo mundo, ou, então, como o "deus relojoeiro" que somos,
manufaturamos as condições e as regras dentro das quais as outras pessoas,
nossa criação, vivem. Nada escapa à nossa ação e ninguém é livre - e, portanto,
responsável - fora nós.
Como eu poderia acreditar numa coisa dessas? Os
nossos intelectuais, em delírio ardente, podem estar oscilando entre essa culpa
lancinante e um princípio de Síndrome de Estocolmo, mas eu prefiro aceitar que
os outros, que os diferentes de mim são, de fato, iguais a mim, tanto na
bondade quanto na maldade. Reconheço que o Ocidente pecou muito, mas também
acho que as demais nações do mundo são livres, dignas e podem ser
responsabilizadas por seus atos. Essas flechas já saíram de nossos arcos e,
então, antes que o resto do Levante seja consumido pela loucura que o Ocidente
tem medo de criticar, citarei as palavras d'O Profeta:
Sobre os Filhos
Gibran Kahlil Gibran (1923)
Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si
mesma.
Vêm através de vós, mas não de vós.
E embora vivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes vosso amor, mas não vossos
pensamentos,
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã,
Que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não
procureis fazê-los como vós,
Porque a vida não anda para trás e não se demora
com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são
arremessados como flechas vivas.
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos
estica com toda a sua força
Para que suas flechas se projetem, rápidas e para
longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja
vossa alegria:
Pois assim como ele ama a flecha que voa,
Ama também o arco que permanece estável.
TL;DR: Sabem
quem são os responsáveis e culpados pelos ataques terroristas em Paris?
Salafitas intolerantes que estão putos com a vida.
©
obvious: http://obviousmag.org/et_in_arcadia/2015/11/os-deuses-da-historia.html#ixzz3sJVSTrNT
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