Cinema
Por Ilma Pessoa
Elas querem a lealdade
dos indulgentes, o vigor dos apaixonados e a canção dos poetas. Quem tiver o
privilégio de encontrar uma remanescente de carne e osso, que não hesite em
denunciá-la. Sem dúvida, les femmes fatales preferem ser cultuadas
de perto e por muitos, simultaneamente.
Fim de tarde de um feriado qualquer. Chego ao
cinema preocupada com o horário e em não perder um lugar na única sessão do dia
de Jules et Jim (Uma Mulher para Dois - França, 1962), do
diretor francês François Truffaut, “o homem que amava as mulheres”.
Para minha surpresa e frustração, a plateia
está tão vazia quanto as ruas lá fora. Não entendo como as pessoas podem ter
desprezado, ao longo do tempo, o ritual de frequentar as “telonas” e esquecido
o quão prazeroso é conhecer uma femme fatale, dentro ou fora da
realidade.
Na sala de exibição, apenas três caras de
meia idade e eu. Penso que a fêmea fatal, na sétima arte ou no dia a dia, faz
muita falta. Vejo Jeanne Moureau no papel de Catherine e concordo com Jules
(Oskar Werner), quando diz que ela não é propriamente bonita, mas mesmo assim
uma rainha, sendo ele e Jim (Henri Serre), apenas mais dois condenados ao mesmo
papel, de leais veneradores daquela maravilha.
Algo no jeito de sorrir, de ousar acender o
cigarro encarando o companheiro e pedir que ele feche o zíper da blusa, sei lá,
uma personalidade surpreendente, formada de pequenos e elegantes gestos e
geradora de grande excitação. Uma coisa é certa: essa espécie de fêmea é sutil
e deve ser cortejada nos detalhes.
Pode ser a nuca exposta pelo coque
despretensioso, consequência do mau humor do dia, que dispensa um penteado mais
elaborado; e ainda o sinuoso movimento do quadril, insistindo em pelear com o
vestido ingênuo, de corte reto, enquanto caminha; ou simplesmente uma voz doce
e meio infantil, que entoa palavras inteligentes, com a delicadeza de quem está
cantando.
Na cena em que Catherine reúne Jules, o
marido indulgente; Jim, a paixão incontrolável; e Albert (Serge Rezvani), o
bardo particular, ela ironiza, tortura e ao mesmo tempo enleva seus três
amantes, ao entoar a canção Le Tourbillon (O turbilhão da
vida):
Au son des banjos, je l'ai reconnu Ce curieux
sourire qui m'avait tant plu Sa voix si fatale, son beau visage pâle M'émurent
plus que jamais
(O som de banjos, reconheci Este sorriso
curioso que tanto prazer Sua voz tão fatal, seu belo rosto pálido Comoveu-me
mais do que nunca)
Antes de começar a cantar, Catherine maltrata
a claque: “A canção é boa demais para esse público, mas é o único que temos no
momento”, desdenha. A verdade é que não há como resistir à femme fatale,
uma realeza, adorada por machos que abdicaram em disputar o poder entre si,
para simplesmente aproveitar o melhor das suas existências, compartilhando
momentos com ela.
Nesse mundo de completa entrega masculina,
crianças são bem-vindas, vícios são consumados sem culpa, a transa é frequente
e o campo intelectual filosófico, verdejante.
Qual seria então a essência desse ser tão
provocador? A fêmea fatal se alimenta da sedução e é ávida por liberdade. A sua
identidade não é ser apenas sexual, mas sensorial. Quer provar de tudo, de todo
jeito e abundantemente. Quer fazer isso em comunhão. Para tanto, não abre mão
de cúmplices, sempre seus parceiros apaixonados.
Mas seria Catherine apenas fruto da adoração
de Truffaut? Absolutamente, não. A história registra um elenco considerável de
mulheres dessa estirpe. Temos desde Cleópatra, soberana do Egito - por quem o
general romano Marco Antonio desistiu de um império e foi convencido a doar a
vida - à intelectual russa Lou Andreas Salomé (1861 -1937), que reuniu em sua
alcova, ao mesmo tempo e outrora, o marido e escritor francês Paul Rée, além de
Freud e Nietzsche, num quadrilátero amoroso insuspeitável.
Tamanho poder não torna mulheres fatais
arrogantes e soberbas, o que presumivelmente ocorreria a alguém ciente da sua
grande capacidade de deslumbrar. É da natureza da fêmea fatal atrair, mas se é
insaciável na persuasão, também é generosa no amor. Citando um exemplo próximo,
como não retribuir com arrebatamento o olhar encantador da carioca Leila Diniz
(1945-1972)?
Defensora do amor livre e pioneira ao exibir
a gravidez em público, Leila cativava pela maneira deliciosa e descomprometida
de escandalizar, seja exibindo a barrigona de biquíni na praia, ou rompendo
conceitos de forma displicente, soltando palavrões e trocando de namorado, sem
dar satisfação ao establishiment.
Infelizmente, as fêmeas fatais, se não foram
extintas, hoje operam em petit comité. Já não é frequente vê-las caminhar em
ótimas companhias (sim, porque costumam catalisar o melhor do gênero masculino)
pela orla de Ipanema, ou no Monte Sacro, em Roma. Porém ainda é possível
recorrer a filmes como Jules et Jim, Barefoot Contessa (A
Condessa Descalça – EUA, 1954), com Ava Gardner, e Et Dieu créa la femme (E
Deus criou a mulher- França, 1956), com Brigitte Bardot, para descobri-las ou
revisitá-las.
Quem tiver o privilégio de encontrar uma
remanescente de carne e osso por aí, que não hesite em denunciá-la. Sem dúvida,
“les femmes fatales” preferem ser cultuadas de perto e por vários,
simultaneamente. Se ninguém quer perder essa chance, o mundo também agradece.
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