História/cinema
Justin
Parkinson
BBC News Magazine
![]() | |
outubro de 1810, Sarah Baartman foi levada da África do Sul à Grã-Bretanha para aparecer em espetáculos. (Foto SPL) |
Há dois séculos, Sarah Baartman morreu após passar anos
sendo exibida em feiras europeias de "fenômenos bizarros humanos". Agora,
rumores de que sua vida poderia ser transformada em um filme de Hollywood estão
causando polêmica.
Sarah Baartman morreu em 29 de dezembro de 1815, mas o show,
sob uma perspectiva ainda mais macabra, continuou.
Seu cérebro, esqueleto e órgãos sexuais continuaram sendo
exibidos em um museu de Paris até 1974. Seus restos mortais só retornaram à
África em 2002, após a França concordar com um pedido feito por Nelson Mandela.
Ela foi levada para a Europa, aparentemente, sob promessas
falsas por um médico britânico. Recebeu o nome artístico de "A Vênus
Hotentote" e foi transformada em uma atração de circo em Londres e Paris,
onde multidões observavam seu traseiro.
Hoje em dia, ela é considerada por muitos como símbolo da
exploração e do racismo colonial, bem como da ridicularização das pessoas
negras muitas vezes representadas como objetos.
Boatos
Recentemente, começou a correr um rumor de que a cantora
Beyoncé estaria planejando escrever e protagonizar um filme sobre Baartman.
Os representantes da artista negaram essa informação, mas o
burburinho foi suficiente para provocar preocupação.
Jean Burgess, chefe do grupo khoikhoi – a etnia de Baartman
– disse que Beyoncé não conta com "a dignidade humana básica para ser
digna de escrever a história de Sarah, menos ainda para interpretá-la".
Ela justificou que via com "arrogância" a suposta ideia de Beyoncé de
"contar uma história que não pertence a ela" e sugeriu que a atriz
fizesse um filme sobre indígenas americanos.
![]() |
Boato de filme sobre vida de Baartman foi desmentido por equipe de Beyoncé |
Já Jack Devnarain, presidente do Sindicato de Atores da
África do Sul, disse que os cineastas têm "direito de contar a história de
pessoas que as fascinam e não devemos nos opor a isso".
Ao negar qualquer vínculo com o filme, o representante de
Beyoncé ponderou que "esta é uma história importante que deve ser
contada".
História
A vida de Baartman foi marcada por penúrias.
Acredita-se que ela tenha nascido na Província Oriental do
Cabo da África do Sul em 1789.
Sua mãe morreu quando ela tinha dois anos e seu pai, um
criador de gado, morreu quando ela era adolescente.
Ela começou a trabalhar como empregada doméstica na Cidade
do Cabo quando um colono holandês assassinou seu companheiro, com quem havia
tido um bebê que também morreu.
Em outubro de 1810, apesar de ser analfabeta, ela
supostamente assinou um contrato com o cirurgião inglês William Dunlop e o
empresário Hendrik Cesars, dono da casa em que ela trabalhava, que disse que
ela viajaria para a Inglaterra para aparecer em espetáculos.
Atração
Quando ela foi exibida em um estabelecimento em Piccadilly
Circus, em Londres, causou fascinação.
"É preciso lembrar que, nesta época, nádegas grandes
estavam na moda, e por isso muitas pessoas invejavam o que ela tinha
naturalmente", diz Rachel Holmes, autora de A Vênus Hotentote: vida e
morte de Saartjle Baartman.
O motivo para isso é que Baartman, também conhecida como
Sara ou Saartjie, tinha esteatopigia, uma condição genética que faz com que a
pessoa tenha nádegas protuberantes devido à acumulação de gordura. Essa
condição é mais frequente em mulheres e principalmente entre aquelas de origem
africana.
![]() |
A Vênus de nádegas "belas" e as curvas de uma mulher 'esteatopígica' |
Mas a própria palavra é motivo de debate, porque, para
muitos, seria racista o fato de ela sugerir que se uma mulher tem nádegas
grandes e é negra, sofre de uma doença.
Já para as nádegas pequenas a palavra é
"calipigia", em referência à famosa estátua romana Vênus Calipigia –
que significa "a Vênus das nádegas belas".
Toda uma Vênus
No espetáculo, Baartman usava roupa justa e da cor da sua
pele, contas e plumas e fumava um cachimbo.
Clientes mais abastados podiam pagar por demonstrações
privadas em suas casas, em que era permitido que os convidados a tocassem.
Os "empresários" de Baartman a apelidaram de
"Vênus Hotentote" porque, nesta época, esse era o termo que os
holandeses usavam para descrever os khoikhois e aos sans, os principais membros
de um importante grupo populacional africano, os khoisans.
Atualmente, o termo 'hotentote' é considerado pejorativo.
Livre ou assustada?
Nesta época, o império britânico já havia abolido o tráfico
de escravos (em 1807), mas não a escravidão.
Mesmo assim, ativistas ficaram horrorizados com a forma como
os empresários de Baartman a tratavam em Londres.
![]() |
Charges políticas foram feitas com figura de Baartman |
Eles foram processados judicialmente por deter Baartman
contra sua vontade, mas foram declarados inocentes. A própria Baartman
testemunhou a favor deles.
"Ainda não se sabe se Baartman foi forçada, como os
defensores da abolição e os ativistas humanitários alegavam, ou se atuou por
livre arbítrio", diz o historiador Christer Petley, da Universidade de
Southampton, na Inglaterra.
"Se eles a estavam obrigando a trabalhar, é possível
que tenha se sentido intimidada demais para dizer a verdade no tribunal. Nunca
saberemos."
"O caso é complexo e a relação entre Baartman e seus
chefes definitivamente não era igualitária."
A caminho de Paris
Holmes destaca que o show de Baartman incluía dança e
interpretação de vários instrumentos musicais, e diz que um público
"sofisticado" em Londres – uma cidade em que as minorias étnicas não
eram raras – não teriam se encantado por muito tempo com ela apenas pela sua
cor.
De qualquer forma, com o tempo, o show da "Vênus"
foi perdendo seu caráter de novidade e popularidade entre o público da capital,
e por isso ela saiu em turnê pela Grã-Bretanha e Irlanda.
Em 1814, foi para Paris com seu empresário, Cesars, e outra
vez virou uma celebridade, que tomava coquetéis no Café de Paris e ia às festas
da alta sociedade.
Cesars voltou para a África do Sul e Baartman caiu nas mãos
de um "exibidor de animais" cujo nome artístico era Reaux.
![]() |
Baartman conquistou fama novamente em Paris |
Ela bebia e fumava sem parar e, segundo Holmes,
"provavelmente foi prostituída por ele".
'Grotesco'
Eventualmente, Baartman aceitou ser estudada e retratada por
um grupo de cientistas e artistas, mas se recusou a aparecer completamente nua
na frente deles.
Ela argumentava que isso estava além de sua dignidade: nunca
havia feito isso em seus espetáculos.
Foi neste período que teve início o estudo que chegou a ser
chamado de "ciência da raça", diz Holmes.
Baartman morreu aos 26 anos de idade.
A causa foi descrita como "uma doença inflamatória e
eruptiva". Desde então, cogita-se que tenha sido resultado de uma
pneumonia, sífilis ou alcoolismo.
O naturalista Georges Cuvier, que dançou com Baartman em um
das festas de Reaux, fez um modelo de gesso de seu corpo antes de dissecá-lo.
![]() |
Autoridades francesas e sul-africanas com o molde de gesso de Baartman antes da devolução |
Além disso, preservou seu esqueleto, pôs seu cérebro e seus
órgãos genitais em frascos, que permaneceram expostos no Museu do Homem de
Paris até 1974, algo que Holmes descreve como "grotesco".
De volta para casa
"A dominação dos africanos foi explicada com ajuda da
ciência, estabelecendo que os khoisan eram um grupo menos nobre no progresso da
humanidade", escreveu Natasha Gordon-Chipembere, editora de Representação
e feminilidade negra: o legado de Sarah Baartman.
Após sua eleição em 1994 como presidente da África do Sul,
Nelson Mandela solicitou a repatriação dos restos mortais de Baartman e o
modelo de gesso feito por Cuvier.
O governo francês acabou aceitando o pedido e fez a
devolução, em 2002.
Em agosto do mesmo ano, seus restos mortais foram enterrado
em Hankey, província onde Baartman nasceu, 192 anos após ela sair com destino à
Europa.
Vários livros já foram publicados sobre a maneira como ela
foi tratada e sua transcendência cultural.
"Ela acabou se tornando um molde sobre o qual se
desenvolvem múltiplas narrativas de exploração e sofrimento da mulher
negra", escreveu Gordon-Chipembere, que acha que, em meio a tudo isso,
Baartman, "a mulher, permanece invisível".
![]() |
Restos mortais foram enterrados em província em que ela nasceu |
Em 2010, o filme Black Venus e o documentário The Life and
Times of Sara Baartman contaram a história dela. Em 2014, a revista americana
Paper botou na capa uma foto da celebridade americana Kim Kardashian balançando
um copo de champanhe sobre suas nádegas avantajadas. Vários críticos reclamaram
que a imagem lembrava desenhos retratando Baartman.
No ano passado, uma placa no local em que ela está enterrada
em Hankey foi vandalizada com tinta branca. Isso ocorreu na mesma semana em que
a Universidade da Cidade do Cabo retirou, após protestos, a estátua de Cecil
Rhodes, um empresário e político do século 19, que declarou notoriamente que os
britânicos seriam "a primeira raça no mundo".
"As pessoas estão resolvendo sobre como querem lidar
com essas questões", diz Petley. "Muitas vezes elas foram ocultadas,
e chegou a hora de reavaliá-las."
Nenhum comentário:
Postar um comentário