segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

IMPUNIDADE DOS RICOS E O STF (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL)

Literatura: justiça

                                                Raymundo Pinto

É desembargador aposentado do TRT, é escritor, 
membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e da Academia Feirense de Letras.

Um jornalista de São Paulo matou a namorada em 2000; condenado em 2006, somente foi preso onze anos depois. Um ex-senador de Brasília, envolvido no escândalo da construção de um fórum em SP, já recebeu a pena de 31 anos, mas continua livre, pois seus advogados interpuseram 21 recursos e impetraram onze habeas corpus. Um conhecido ex-governador paulista, denunciado por desvios de recursos públicos, da ordem de milhões, continua livre, leve e solto, tendo até sido eleito deputado federal. Com assento no Senado, um político paraense sofreu diversas condenações, mas os crimes prescreveram, uma vez que os processos se estenderam em demasia por causa da chicana promovida por seus defensores. Aí estão pouquíssimos exemplos representativos dos que ocorre, com frequência, em todo o país, quando os acusados são ricos e podem pagar elevados honorários a famosos advogados.




Por outro lado, o Brasil tem a terceira mais alta população carcerária do mundo (cerca de 600 mil detentos). É constituída, na sua grande maioria, por pobres, negros ou pardos que, em geral, cometeram delitos de menor gravidade. Muitos desses infelizes, por serem vítimas de atos arbitrários, sequer foram processados e, se o foram, aguardam há vários anos a prolação de uma sentença. Como não dispõem de recursos financeiros, contratar advogados seria um luxo. A Defensoria Pública, que deveria cuidar deles por força de norma constitucional, possui em seus quadros um contingente reduzido de profissionais e mal atende em poucas comarcas do país.

Tem causado alvoroço e muita polêmica a recente decisão do STF – Supremo Tribunal Federal que dispensou a ocorrência do chamado “trânsito em julgado” (quando cessa a possibilidade de recursos) da decisão em processo criminal, passando a admitir que o condenado possa cumprir a pena a partir da confirmação da sentença por um tribunal, em segunda instância. A importante mudança de posição tomada pela nossa mais Alta Corte gerou, como seria de esperar, numerosas críticas e outras manifestações por parte, em especial, dos advogados criminalistas. Insistem em dois argumentos básicos: a) a decisão seria inconstitucional por contrariar o art. 5º, LVII, da Carta Magna; e b) os presídios já estão lotados e não suportariam receber mais prisioneiros. A seguir, analisaremos, em resumo, as razões de quem é a favor, bem como tentaremos esclarecer alguns pontos obscuros para o leitor de jornal, geralmente um leigo em direito.

Seguindo tradição secular, os processos judiciais, no Brasil, poderiam chegar a percorrer, em princípio, três instâncias. Proferida a sentença na vara, a parte que se sentir injustiçada recorre a um tribunal de segundo grau (estadual ou federal). Se, mesmo assim, não obtiver êxito, teria, em tese, mais uma chance, mediante novo recurso dirigido a um tribunal superior com sede em Brasília (STJ ou TST). Destaque-se que, nessa terceira oportunidade, está vetada a discussão quanto a matérias “de fato”. Isso significa que somente é permitido o debate sobre matérias “de direito”, ou seja, o desrespeito a dispositivos de lei ou da Constituição, bem como alegações de divergência jurisprudencial entre tribunais ao interpretar normas legais. Acrescente-se que, no nosso país, vigora a anomalia – não observada em outras nações civilizadas – de ser bastante vasta a competência do STF. Em face disso, existe um abuso na utilização do chamado recurso extraordinário, do que resulta – segundo reiterada denúncia que faz o ilustre jurista Cezar Peluso, ministro aposentado e ex-presidente do mesmo STF – a existência de uma desaconselhável e imprópria “quarta instância”.

Como visto, proferida a decisão num tribunal de segunda instância, cessa, em definitivo, a possibilidade de discutir matérias relacionadas aos “fatos”. É verdade que o art. 5º, LVII, da Carta Magna, dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, norma que respalda o sempre repetido princípio da presunção da inocência. Toma corpo, porém, a tese de que, uma vez confirmada a condenação no primeiro colegiado que a apreciou, o princípio passa a ser o da presunção da culpa. Restando apenas o exame das matérias “de direito” nos próximos recursos possíveis, nada impediria o imediato cumprimento da penalidade aplicada.

Vale ressaltar que, segundo dados da FGV/Rio no projeto “Supremo em Números”, somente 3,1% dos recursos criminais chegados ao STF são decididos de modo favorável. Portanto, a irresignação dos advogados criminalistas dos ricos em lamentar a recente medida do STF não se justifica. O que eles desejam mesmo é a continuidade da chicana que promovem em suas atuações junto à Justiça, o que, na realidade, eterniza a fama de que o Brasil é o paraíso da impunidade dos abastados e poderosos.

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