Segundo o poeta Antônio Lins, "não só a Bahia perde sua maior poeta, mas também o Brasil, pois Myriam era a grande artesã da língua portuguesa, uma extraordinária fazedora de versos líricos e oníricos".
Morreu, aos 78 anos, no início da tarde desta segunda-feira (15), em Salvador, a escritora baiana e poeta baiana Myriam Fraga.
Escritora e diretora da Fundação Casa de Jorge Amado desde sua instituição, em julho de 1986, Myriam Fraga enfrentava problemas de saúde desde meados de 2015, e encontrava-se internada no Hospital Aliança, em Salvador.
A também poetisa estava concluindo um livro de poemas.
Segundo informações da instituição, Myriam morreu por volta do meio-dia, no Hospital Aliança, onde estava internada desde o dia 20 de janeiro. Ela tinha leucemia.
Myriam Fraga era vice-presidente da Academia de Letras da Bahia. Ela deixa quatro filhos. De acordo com a Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (Secult), o sepultamento da escritora será realizado nesta terça-feira (16), às 11h, no Cemitério Jardim da Saudade.
O prefeito de Salvador, ACM Neto, destacou o papel da escritora na divulgação da cultura da Bahia. “Poucas pessoas contribuíram tanto nas últimas décadas para o desenvolvimento e divulgação da cultura baiana como Myriam Fraga”, afirmou.
ACM Neto disse, também, que Myriam Fraga foi fundamental para organizar e catalogar todo o acervo de Jorge Amado, que está à disposição de pesquisadores, estudantes e de todas as pessoas na fundação que leva o nome de um dos mais conhecidos escritores do mundo.
Durante a sessão ordinária de ontem da Câmara de Vereadores, o edil Leo Prates (DEM), pediu que o Plenário fizesse um minuto de silêncio pela morte da poetisa Myriam Fraga, diretora da Fundação Casa de Jorge Amado. O presidente do Legislativo, vereador Paulo Câmara (PSDB), lamentou a morte da escritora: “Apresento minha solidariedade à família, aos amigos e a todos que conviveram com Myriam Fraga, que muito contribuiu para o fortalecimento da cultura baiana, sobretudo através da divulgação do acervo de Jorge Amado, um dos maiores nomes da literatura baiana e brasileira”, disse Paulo Câmara.
História
Myriam de Castro Lima Fraga nasceu em Salvador, no dia 9 de novembro de 1937. A escritora iniciou as atividades literárias publicando em revistas e suplementos literários. A estreia em livro ocorre com "Marinhas", que foi lançado em 1964.
Com poemas traduzidos para o inglês, francês e alemão, participou de diversas antologias no Brasil e no exterior. Myriam foi eleita por unanimidade membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, tomou posse no dia 30 de julho de 1985, passando a ocupar a Cadeira de nº. 13, que tem como Patrono o poeta Francisco Moniz Barreto, na vaga de Luiz Fernando Seixas de Macedo Costa.
A escritora também foi membro do Conselho Federal de Cultura (1990 a 1993), do Conselho Federal de Política Cultural (1993 a 1996), e do Conselho Estadual de Cultura (1992 a 2006), do Conselho da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (2004 a 2006). Atualmente era membro do Conselho Universitário da Universidade Federal da Bahia, do Conselho da Fundação Pierre Verger e do Instituto Carybé.
Diretora executiva da Fundação Casa de Jorge Amado desde sua instituição, em julho de 1986, a escritora também atuava como membro do Conselho Universitário da Universidade Federal da Bahia (CONSUNI), do Conselho da Associação Baiana de Imprensa (ABI) e do Conselho de Cultura da Associação Comercial da Bahia (ACB).
Poemas de Myriam Fraga
Corpo
O corpo,
Esta ilusão,
A transparência
Onde o tempo se inscreve,
A esculpida
Relembrança
— o não vivido.
O corpo,
Este completo desfrutar-se,
Onda, peixe, sereia,
De barbatanas selvagens
Como facas.
Corpo — o corpo,
Território do nunca,
Inigualável
País do meu espanto.
De todos os espantos.
(des)encontros, naufrágios,
Precipícios.
Pássaro-fêmea, carne
Colada em moldura,
Pele, poro.
Penélope
Hoje desfiz o último ponto,
A trama do bordado.
No palácio deserto ladra
O cão.
Um sibilo de flechas
Devolve-me o passado.
Com os olhos da memória
Vejo o arco
Que se encurva,
A força que o distende.
Reconheço no silêncio
A paz que me faltava,
(No mármore da entrada
Agonizam os pretendentes).
O ciclo está completo
A espera acabada.
Quando Ulisses chegar
A sopa estará fria.
Salomé
Tantos anos depois
Não faz nenhum sentido,
Estória tão antiga…
— Eu te amo, eu disse,
Em meu vestido azul
Que um girassol floria.
— Eu também. E teu corpo
Encostado
Ao meu corpo, tremia.
Embriagada eu dançava,
Dilacerando os vestidos.
A interdição entre nós
Crescia como um bicho,
Serpente de pele lisa
E anéis coloridos.
Tantos anos depois
Ainda sonho com isso,
Um brilho de lâmina
E o sangue
A escorrer no ladrilho.
O tempo todo e eu sabia
Que, arrancados os véus,
Restaria o suplício. Restariam
As feridas. Um corpo ausente
E a lenda, de um remoto país
Onde habitei um dia.
Ó funesta tentação
De voltar àquela tarde
Em que dançando selvagem
Ao som de flautas,
Congelei a tua imagem
No fundo das retinas.
O topázio do sol
Ardia como brasa
E eu lavei as mãos
E limpei as sandálias.
No espelho, meu rosto,
Tinha a carne das estátuas.
Na espessura do silêncio,
Um gotejar de mágoa.
Na bandeja, os despojos,
Ainda tintos de vinho,
A cabeleira e os olhos
Acesos como círios.
Tantos anos depois
Não faz mesmo sentido
Mas guardo ainda o espelho
Onde espreito minha sorte,
Onde dia e noite espreito
A sombra que flutua
E se cola
Como máscara, em meu rosto,
Como chaga no coração,
Bem no peito onde o tempo
Enfiou sua adaga.
E danço como nunca mais
Dancei. O rei agora dorme,
Dourado, em seu sarcófago.
Mas ainda tenho os véus,
A bandeja e a espada.
Possessão
O poema me tocou
Com sua graça,
Com suas patas de pluma,
com seu hálito
De brisa perfumada.
O poema fez de mim
O seu cavalo;
Um arrepio no dorso,
Um calafrio,
Uma dança de espelhos
E de espadas.
De repente, sem aviso,
O poema como um raio,
– Eleobá, pomba gira!
Me tocou com sua graça
ARS POETICA
Poesia é coisa
De mulheres.
Um serviço usual,
Reacender de fogos.
Nas esquinas da morte,
Enterrei a gorda
Placenta enxundiosa
E caminhei serena
Sobre as brasas
Até o lado de lá
Onde o demônio habita.
Poesia é sempre assim:
Uma alquimia de fetos,
Um lento porejar
De venenos sob a pele.
Poesia é a arte
Da rapina.
Não a caça, propriamente,
Mas sempre nas mãos
Um lampejo de sangue.
Em vão,
Procuro meu destino:
No pássaro esquartejado
A escritura das vísceras.
Poesia como antojos,
Como um ventre crescendo,
A pele esticada
De úteros estalando.
Poesia é esta paixão
Delicada e perversa,
Esta umidade perolada
A escorrer de meu corpo,
Empapando-me as roupas
Como uma água de febre.
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