BEM-VINDO
Estreia hoje neste blog seu mais recente colaborador. Trata-se de Luiz Eduardo Costa, irrequieto intelectual, forjado nas agruras do jornalismo, cujas lides experimenta no jornal sergipano Dia. Nossos aplausos ao recém-chegado, que se junta ao não menos laureado conterrâneo, Edson Valadares, para representar aqui a cultura da terra de Tobias Barreto e Mario Cabral.
O Raso da Catarina é imensa planura rodeada por irregulares serranias. Seria o deserto brasileiro caso não houvesse uma natureza generosa a cobrir o chão ressequido com uma vegetação única no mundo: a caatinga. Naquelas paragens baianas aonde as chuvas não chegam a 400 milímetros anuais, se mantém, apesar de tudo, uma vida exuberante, graças àquela floresta teimosa, com seus galhos retorcidos aparentando estarem secos quando se alonga o estio, ou, esbanjando o verde e as flores nas trovoadas de verão, nos invernos dadivosos. Assim, torna possível a existência da variada fauna, evita a lixiviação do solo e impede a desertificação. Mas, como em todo o sertão nordestino, a caatinga ali encolheu. Resta, ainda, nas encostas das serras, em algum boqueirão de acesso difícil. São poucos os sinais da antiga e tão incomum cobertura vegetal. Diante dela, extasiou-se um correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, marchando rumo a Canudos para cobrir o desatino de uma guerra entre irmãos da mesma pátria, porém, separados pelos azares da existência que os transformou em passageiros de classes diferentes no trem da História.
O correspondente era o jovem engenheiro militar tenente Euclides da Cunha, adido ao Estado Maior do Ministro da Guerra, Marechal Bitencourt que se deslocava para instalar o seu Quartel General nos arredores de Canudos. Lá, debaixo de uma tenda, no meio das asperezas do Raso da Catarina, supervisionaria as operações de guerra contra a gente pobre, de um povoado miserável, ao qual Antônio Conselheiro dera o nome de Arraial do Bom Jesus. Euclides, refinado intelectual republicano, cadete que se insubordinara diante do Ministro da Guerra do Império, estava dominado pela ideia de que os ‘conselheiristas’ representavam uma ameaça à nascente República.
Depois, no desenrolar do conflito, corrigiria o equívoco ao escrever a sua obra fundamental: Os Sertões.
Domingo, dia 16 de janeiro, o Raso da Catarina estava mais ressequido do que nunca. Ao longo de cinco anos faltaram as trovoadas estivais e os invernos de boa chuva.
Um grupo, saído de Canindé, chega à cancela fechada a cadeado, entrada da Reserva Ecológica do Raso da Catarina. Numa casa ao lado, sede da administração, não há viva alma, talvez por ser domingo.
Dali em diante são quase cem mil hectares recobertos inteiramente pela caatinga preservada, onde, quase livre de caçadores, multiplica-se uma variada espécie de bichos, entre eles as araras azuis, já livres da extinção.
Para entrar na reserva é indispensável uma licença do IBAMA. Isso era sabido, mas o objetivo seria apenas traçar um roteiro de acesso para a Expedição Serigy, denominação do grupo que está sempre em busca de veredas, serras, praias, rios, nascentes , matas, na ânsia pela natureza remanescente.
Sendo impossível percorrer a Reserva, este escrevinhador, que por ali se acostumou a ir vez por outra, desde 1980, quando o Raso da Catarina estava ainda quase como Euclides o vira cem anos antes, propõe uma caminhada por uma trilha que acompanha a cerca delimitando a área protegida, mas, ao volante da camionete, Adailton consulta o termômetro e higrômetro, e anuncia: 46 graus de temperatura, 15 por cento de umidade do ar. Com o sol esbraseando o chão pedregoso e esterilizando o ar, que parece um luminescente vidro translúcido, Eliane e as duas sertanejas, todavia precavidas, Iara e Amanda, sugerem um retorno em busca de qualquer local onde houvesse sombra e água fresca.
Ainda longe, no horizonte, cresciam e avançavam em semicírculo, aquelas massas escuras que revoluteiam no ar como ondas gigantescas: as cúmulus-nímbus. Sem o anúncio estrondoso dos trovões o vento já trazia de longe aquele sonhado cheiro de terra molhada. Antes que o sol no poente pintasse de rubro e dourado as nuvens escuras, caía sobre todo o Raso da Catarina a primeira chuva forte, após tantos verões e invernos de desesperanças.
Uma semana após as chuvas, torrenciais, a caatinga no Raso da Catarina já estava verde. Breve, as juremas os mandacarus, as catingueiras, estarão todos exibindo as suas flores. Naquele inusitado bioma onde a dureza do clima exige uma forma excepcional de adaptação, existem árvores que florescem e espalham suas sementes mesmo durante a secura dos verões, e outras que dependem das chuvas para florescer.
Os riachos intermitentes que correram caudalosos após a chuvarada, três dias depois já haviam escorrido e tinham apenas, aqui e ali, algumas poças d’água . Essa é uma cena que se repete em todo o sertão nordestino. Assim, tão bem constatada essa evidencia, ressurge o velho debate que se perde no tempo sobre a imprescindível estratégia de conservação da água. Em maior escala isso só se faz através da construção dos grandes açudes, do barramento de rios. Em todo o Raso da Catarina, e nos seus arredores existe apenas um único açude, ele está no exato local do heroico arraial de Canudos, onde hoje se planta muita banana. É o assoreado Cocorobó, que resulta do barramento do minguante Vasa Barrís. Ao norte corre o São Francisco, mas, nas pequenas comunidades espalhadas pela vastidão semideserta, a água continuava sendo uma rara preciosidade.
Reza a tradição oral desde tempos idos, que aquelas terras ressequidas confrontando nem sempre pacificamente os vastíssimos domínios do Barão de Jeremoabo, pertenciam a uma mulher, uma resoluta virago sertaneja que juntava dobrões nos seus baús resultantes do comércio de um gado mirradinho, que as secas não dizimavam. Era o rebanho dos “pé-duro”. Muitos se embrenhavam pela extensão da caatinga, num tempo em que não havia cercas, e lá se iam ficando, num processo de simbiose com o meio que os fez esquecer completamente de água que não fosse aquela retirada com cascos e dentes das macambiras, mandacarus e raízes dos umbuzeiros. No Raso que significa, planura ampla, ligeiramente côncava, espécie de bacia rasa, os vaqueiros encourados que procuravam as rezes tresmalhadas durante dias e até semanas, nem levavam água, procediam da mesma forma que os “pé-duro”.
E então aconteceu o inesperado, ou talvez aquilo que o mundo oficial, sempre desatento e alheio, nunca pensara em pesquisar. O Raso tinha água no subsolo. Em alguns pontos era doce.
Naquele domingo 16 de janeiro, pouco antes da chuva, com o ar rigorosamente seco, e tudo queimando sob 46 graus centígrados, as pessoas bebiam cerveja gelada no único bar do povoado Salobro, e num chafariz próximo, ao lado da estrada, outros estavam a refrescar-se com a água cristalina e abundante que jorrava, parecendo um milagre irreal, acontecendo diante de quem, há muitos anos percorrera o Raso, tendo de urinar no radiador de um resfolegante Jeep. Nas taperas encontradas pelo caminho poderia haver alguma água no pote, para beber nunca negada, mas, seria até desrespeitoso pedi-la para “esfriar a máquina”, tecnologia up-to-date dos anos 40, especifica para a guerra, e irresoluta, naquele cenário de fascinante insensatez luminosa.
No Raso, naqueles povoados minúsculos perdidos na sua extensão, ou nos maiores ao redor: Sítio do Tará, São José, Juá, Várzea, Salobro, Tanquinho, Bonomão, Boa Lembrança, Nambebé, Tabolerinho, Ingazeira, Riacho, e tantos outros, há poços artesianos jorrando água. Todavia, em alguns deles, geridos por associações, (sempre elas) cobra-se pelo ‘precioso líquido´ principalmente se sair de dessalinizadores, quase nunca funcionando, deixando sérias duvidas sobre o custo benefício das ‘ingresias’, que são úteis, mas precisam ser aperfeiçoadas. Compra-se a ficha, e enche-se o vasilhame. 25 centavos, 25 litros. É caríssimo, sai a preço maior do que a água encanada e tratada. Para aquelas populações paupérrimas é “luxo” inacessível.
Água chegando ao semiárido é o sertão aparelhando-se para a vida, para a vida normal, que lhe tem sido negada, pela falta de consistência e continuidade nos projetos feitos, refeitos, ou nunca concluídos. Tem sido assim desde o Império, atravessando a República.
Desse faz não faz, o prédio em ruínas da SUDENE, no Recife, serve como testemunho, na triste eloquência do seu silêncio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário