segunda-feira, 14 de março de 2016

A ‘REPRODUTIBILIDADE’ TÉCNICA NA ERA DIGITAL

Tecnologia


Publicado por Mateus Cadore.
É acadêmico de Cinema pela UFSC, produtor executivo, produtor, roteirista, romancista 



Sobre o crescimento gigantesco da produção audiovisual através da popularização de câmeras digitais e smartphones, as mudanças nos conceitos teóricos artísticos de Walter Benjamin sobre cinema que esse crescimento causou e as semelhanças desses novos produtores amadores de audiovisual com o Primeiro Cinema.




Estima-se que a cada minuto quinhentas horas de vídeos sejam upados no Youtube. Esse número é quase dez vezes maior que as sessenta horas por minuto no fim de 2011 e quase cem vezes maior que as seis horas por minuto dos primórdios do maior site de armazenamentos do mundo. Com seis bilhões de horas assistidas e mais de um bilhão de usuários ativos por mês, o tempo de produção apenas desse site é maior que o tempo de existência da humanidade como civilização. A reprodutibilidade técnica chegou a proporções inimagináveis na época em que Benjamin escreveu A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica. Hoje, com a popularização das câmeras de vídeo, e principalmente com a dos smartphones e celulares (no Brasil são 270 milhões de celulares para 200 milhões de brasileiros) capazes de filmar em qualidade invejável para as antigas câmeras, qualquer pessoa pode fazer seu próprio filme; mesmo que de apenas alguns segundos, mesmo que só o próprio autor o veja.


As vines são um ótimo exemplo dessa massificação da produção audiovisual: através de vídeos de no máximo seis segundos o espectador comum expressa os seus anos de consumo de material audiovisual e, inconscientemente, retorna ao período do Primeiro Cinema. Com vídeos em sua grande maioria de comédia, com piadas estereotipadas e trucagens simples, clássicas de Méliès – nos dias atuais feitas sem qualquer dificuldade técnica – ele descobre a técnica de filmagem e se fascina com seu poder sobre ela. Um bom exemplo para análise de produção de vines é o autor de codinome King Bach, um dos mais conhecidos viners do mundo. Em suas vines, o racismo é frequentemente abordado de maneira irônica e cômica. Por exemplo: Caminham em uma rua King Bach e um amigo branco. O amigo fala que se sente inseguro por ser branco e que não sabe se King o trocaria por outro amigo negro. King diz que isso nunca aconteceria (tudo isso em dois ou três segundos). A câmera então se vira para outro negro que cumprimenta Bach de longe, ao voltar a filmar Bach, ele está vestido como um estereótipo de negro americano (boné de aba reta, correntes de ouro, calça largada) e abandona o amigo branco, que fica incrédulo. Essa vine é filmada como plano sequência. O tema racismo pode ser encontrado também em várias outras vines do mesmo autor, como: só os negros podem falar a palavra nigga (que tem conotação racista); várias vines sobre o amor com frango frito (outro estereótipo) ou com o tênis de basquete Jordan’s (vários outros viners negros também produzem sobre esses temas). A trucagem clássica do Primeiro Cinema, como mencionado anteriormente, aparece frequentemente nessas vines (links para vídeos de vines nas referências), assim como o tipo de humor popular (chanchada) e politicamente incorreto, também frequente no primeiro cinema.

Como previsto pelo filósofo alemão, a divisão entre autor e espectador diminuiu ao ponto de praticamente não existir mais; existe apenas no culto ao estrelato. Com “a inquebrantável aspiração por novas condições sociais” mais acesa que nunca, a massa reivindica o seu direito de ser filmada e consegue a oportunidade de aparecer na tela através de si mesma, usando o aparelho para benefício próprio, do mesmo modo que apenas o ator cinematográfico podia no passado. E como o ator cinematográfico, o indivíduo, parte da massa, representa a si mesmo (ou quem pensa ou quer ser) diante do aparelho. Assim, “com a representação do homem pelo aparelho, a auto alienação humana encontrou um aproveitamento altamente produtivo”, uma produção superior à ‘exponibilidade’ da arte e necessária à nova convivência social influenciada pela nova arte altamente reproduzida. E é aí que as previsões de Benjamin começam a falhar.

O antigo valor de culto das obras, que supostamente teria sido extinto com o avanço da reprodutibilidade técnica das obras de arte e sua emancipação da “existência parasitária no ritual” (pg 186), retorna justamente com o ápice desta reprodutibilidade (em números de obras e não em números de cópias da mesma obra, ainda mais por conta do crescimento da “fantasmagoria” das obras audiovisuais que cada vez mais fogem do material). No valor de culto, o que importa é que as obras existam, e não que sejam vistas. Se na Idade Média e na antiguidade Clássica o valor de culto era voltado às divindades, agora é voltado ao próprio indivíduo, ao culto social do individualismo e seus demais rituais. O “mero mortal” busca a sua confirmação como indivíduo único numa massa gigantesca de pessoas sem face, sem nome, através do maior número de visualizações possível de sua obra – muitas vezes usando da tática dadaísta de suscitar a indignação pública, o que acaba afastando a obra do reconhecimento positivo desejado, mas aproximando da viralização, mais desejada. Essa busca ilusória de reconhecimento fomentada pelo capitalismo mantém o culto ao estrelato tão almejado pelo mortal e condenado por Benjamin. Assim, parafraseando as palavras do autor do ensaio supracitado sobre a arte pré-histórica, os temas de sua arte são o homem e seus meio, copiados segundo a exigência de uma sociedade cuja técnica se funde inteiramente ao ritual, ao ritual social, novamente fugindo das previsões de Benjamin, que via na sociedade do século XX o oposto. A exposição desse mundo diminui ainda mais o privado do indivíduo, comum até em seus sonhos povoados pelas figuras e produtos condicionados pelo imaginário coletivo (que também influencia na forma em como esse indivíduo vê a própria arte e a de outrem). Entretanto, apesar das aspirações por fama, a maioria dos vídeos são esquecidos rapidamente, passam sem ser vistos; e até mesmo os que alcançam seu objetivo passam invisíveis também. Na era da máxima reprodutibilidade técnica – na qual a obra deixa de ser material e se torna um arquivo digital em uma nuvem virtual, impalpável, invisível –, a produção é tamanha que o tempo de sucesso é minúsculo. Ao contrário dos gregos que faziam a arte para a eternidade, a arte agora – assim como muito na vida pessoal e coletiva – tende a ser rápida, descartável, fugaz.

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