Literatura; livros
Ele gosta de
historinhas, filminhos e discussões excessivamente detalhadas sobre coisas de
pouca importância. Publica semanalmente seus artigos, tendo como foco a
literatura e a indústria criativa.
"Vale a Leitura?" é
uma série de resenhas literárias para ajudar a aperfeiçoar o seu tempo: eu leio
aqueles livros que você sempre pensou "Nossa, tenho que ler isso uma hora
dessas" e dou meu modesto parecer na forma de: vale a pena?
Poucas séries na história da literatura
despertam tanto interesse como O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas
Adams, com suas quatro continuações originais. Arrisco dizer que é a série
literária de ficção científica mais memorável já produzida. Originalmente
seriam apenas três livros, sendo outros dois publicados após alguns anos, o que
gerou a famosa piada, feita pelo próprio autor, sobre tratar-se de uma
“trilogia de cinco”.
Oito anos depois da morte de Adams, o mais
controverso livro da série veio à luz. O autor já havia expressado seu desejo
de escrever um sexto livro e tinha algumas anotações sobre o caminho que daria
à história. A editora resolveu fazer esta continuação acontecer e contratou
Eoin Colfer, autor da série “Arthemis Fowl” e fã de longa data do Guia, para
realizar a difícil tarefa de andar nos sapatos de Douglas Adams. Muita gente
não gostou, falou que iriam estragar a série, que esse novo livro “não conta” e
que deveriam deixar a história em paz. Vários fãs inclusive se recusam a ler
essa obra até hoje. Mas agora, anos depois da publicação do capítulo final,
seja ele oficial ou não, do Guia do Mochileiro das Galáxias, a pergunta
continua: Vale a pena ler “E Tem Outra Coisa...”?
Bem, acredito que o primeiro destaque a ser
feito é: se você não é um fã da série ou não leu os outros livros, a resposta é
não. A história é recheada de referências e funciona quase como um ode ao Guia,
então não comece por aqui.
Dito isso, podemos falar da obra em si. O
livro de Colfer não é escrito no estilo próprio do autor mas sim em uma
imitação do estilo consagrado de Adams, o que, eu imagino, deve ter sido muito
mais difícil para ele. "E Tem Outra Coisa..." retoma a história onde
"Praticamente Inofensiva" parou, um final que, como o próprio Adams
admitiu, não dava uma grande sensação de conclusão. A saída que Colfer
encontrou para retomar a história é bastante criativa, adequada e
desnecessariamente elaborada, qualidades que a deixam em par com as criações do
autor original.
Após um início promissor, tenho que admitir
que o livro passa por algo como umas 50 páginas de história um tanto inerte. Os
detalhes sobre a situação atual dos personagens recebem talvez mais atenção do
que merecem, e um contexto um pouco tedioso é laboriosamente apresentado. Vale
destacar que este último volume da história é significativamente mais longo que
os originais, contendo 368 páginas, em comparação com as aproximadas 190 de
seus antecessores. A editora é a mesma dos outros livros, inclusive no Brasil
(Editora Arqueiro), o que deixou o projeto gráfico quase idêntico.
Depois desse período inicial de um certo
marasmo, Colfer encontra uma linha de raciocínio e nunca mais a deixa escapar.
A saga é famosa, entre outras coisas, pela sua variedade de personagens
icônicos, cada uma forma de humor única. Em alguns momentos, porém, tivemos
personagens muito promissores mas que não foram tão aproveitados quanto
poderiam. O autor encontra dois desses personagens, Thor e Wowbagger, e
torna-os peças fundamentais de sua narrativa. Thor é o deus nórdico do trovão,
que na série tem um complexo de inferioridade em relação ao seu pai, um
problema com bebida e um ódio para com Zaphod, um dos protagonistas. Já
Wowbagger, o Infinitamente Prolongado, é um dos personagens originais de Adams,
que ao descobrir-se imortal resolve viajar o universo para sempre, encontrando
todos os seres vivos em ordem alfabética para xingá-los sem razão. Os dois são
vistos por uma nova perspectiva trazida por Colfer, e acabam se envolvendo
profundamente na história de Arthur Dent e suas tentativas de retornar ao
planeta natal.
Durante o desenrolar de "E Tem Outra
Coisa...", Eoin Colfer consegue cumprir com o que provavelmente era seu
maior objetivo: o anonimato. Chega um certo momento no qual você se esquece do
contexto em torno da narrativa e se perde apenas na história. A sensação é a de
estar lendo mais um livro da série do Mochileiro, mais um livro de Douglas
Adams, o que é o elogio máximo nesses casos.
Muitas vezes ao avaliar este livro as pessoas
o veem apenas como uma continuação, ou como algo motivado por razões
financeiras, uma editora gananciosa que botou um cara pra escrever o livro de
outra pessoa. Eu não vejo dessa maneira. Para mim, Eoin Colfer é alguém que
cresceu lendo O Guia, que talvez tenha até se tornado um escritor por causa da
série, e que um dia recebeu a oportunidade inestimável de concluir a história.
É uma homenagem, mais que qualquer outra coisa. Todo grande escritor é professor
das futuras gerações de artistas que o leem, e Colfer mostrou-se um aluno muito
apto.
Uma das principais características da série é
o humor próprio, sua capacidade de não levar a si mesma muito a sério. Isso se
evidencia quando Adams chamava "Praticamente Inofensiva" de "O
livro 5 de 3", ou mesmo na introdução do primeiro livro, na qual é trazido
todo um contexto sobre uma personagem importantíssima, apenas para dizer que
ela nada tem a ver com a história. O próprio título do livro de Colfer
transborda de humor próprio, ele foi retirado do seguinte trecho em "Até
Mais e Obrigado Pelos Peixes", quarto livro da série:
"A tempestade agora havia parado
definitivamente, e os poucos trovões que permaneciam soavam fracos sobre
colinas distantes, como um homem que dissesse 'E tem outra coisa...' vinte
minutos após admitir que perdeu uma discussão."
Colfer sabia muito bem que a história já
tinha acabado, mas ergueu o dedo anos após o fim da discussão, falou "E
tem outra coisa...", e conseguiu acabar ela de novo. Se você é um fão de O
Guia do Mochileiro das Galáxias e suas continuações, não deixe de ler o volume
final da série, pois o veredito é claro: vale a leitura.
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