Literatura: crítica
literária
Por Mariana Morais
“(É) estudante
de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e eterna amante da
poesia contida nos pequenos prazeres da vida.”
A escritora paulista de
“Ciranda de Pedra” e “As Meninas”, que ganhara diversos prêmios nacionais e
internacionais não era, contudo, pra mim, assaz encantadora em seus livros de
prosa; me agradava muito mais os seus tantos livros de contos. Aliás, apesar de
gostar demais dos contos de Drummond (que me ganha mais pela poesia), Rubem
Alves e Paulo Mendes Campos, Lygia verdadeiramente conquistou o espaço de minha
contista preferida – porque sim, nasceu para ser contista, acima de tudo.
Outro dia me peguei pensando sobre como às
vezes, de súbito, encarnamos personalidades aleatórias e experimentamos
sensações únicas, de certo gosto nostálgico. Por exemplo, quando faço visitas à
minha cidade natal interiorana, e passo por perto de uma antiga fábrica de
biscoitos e doces, sinto um cheiro tão peculiar que poderia chamar de meu – dar
nome, identidade, relatar sobre as loucas viagens desse cheiro dentro do meu
espólio pessoal de alguma personalidade que fora esquecida pelos novos hábitos
e novos cheiros do cotidiano.
Mas também meus ouvidos certas vezes me
reservam o esforço de aguçar os sentidos e diminuir as passadas quando entro
numa rua perdida: aquela música específica significa algo interessante – seria
um beijo, uma paixão infantil, uma tarde ensolarada em que conhecera algum novo
amigo? Às vezes nem dá pra saber, mas a sensação estranha e gostosa continua
sempre lá, latente, como quisesse transformar-nos em um só instante naquela
velha personalidade que acreditava em alguns sonhos e pensava sobre algumas
coisas. Pequena boneca de porcelana da casa da vovó, flores do jardim da tia
que em 1997 pareciam mais coloridas.
Tudo isso tem um pouco de gosto de Proust.
Acredito que, de alguma maneira, quando iniciou suas elucubrações acerca de
como queremos sempre resgatar o tempo, seja visitando lugares de infância ou
rememorando lembranças através de objetos de valor emocional, restou
enlouquecido com o fato de que vamos nos perdendo dentro de nós mesmos até
assumirmos a forma de um complexo nervoso de células que anseiam encontrar suas
matrizes – mas que se reúnem com outras sinapses e induzem à redução de algumas
crenças solidificadas a simples parágrafos de texto que nos dizem por onde ir.
Talvez Proust tenha conseguido, em sua
jornada, visitar eus impressionantes que proporcionaram-lhe sentar consigo em
frente a um espelho e olhar lados seus de maneiras diversas. Conversar consigo
e poder escutar as batidas do seu coração que já pertenceu a outros eus, teimar
com os seus tendões e ouvi-los reclamar pelas lesões causadas por esforços e
posturas com as quais nunca se preocupou ao longo da existência. Proust pode
ter conhecido lados sombrios de suas lembranças, dores escondidas. Ou pode até
não ter tido contato algum com essas partes.
Na verdade, o hábito das lembranças muito
mais nos aproxima do que queremos ver, e não daquilo que o passado fora. Porque
afinal, não podemos voltar e ver as coisas do mesmo jeito, retomando situações
e reagindo a elas da mesma maneira. Estamos sempre enxergando o passado com os
óculos do presente, e isso torna nossas memórias viciadas pelos novos
significados atribuídos pela nossa “máquina-mente”. Mas acho que se Proust
ainda estivesse por aqui, ele afirmaria que valem à pena – as lembranças, sim.
Sem elas, o que somos? As sensações são indescritíveis, e nos levam a universos
misteriosos sempre que paramos para apreciá-las. Foi lendo um pequeno livro
citado em uma aula de Literatura, em algum dia de que não me recordo, que
encontrei o encanto pela escrita de Lygia Fagundes Telles e, num momento de
profusão, achei um ritmo sinestésico em suas palavras que me proporcionou tocar
sentidos outrora perdidos.
Conheci a obra de Lygia Fagundes Telles no
segundo ano do Ensino Médio. A escritora paulista de “Ciranda de Pedra” e “As
Meninas”, que ganhara diversos prêmios nacionais e internacionais não era,
contudo, pra mim, assaz encantadora em seus livros de prosa; me agradava muito
mais os seus tantos livros de contos. Aliás, apesar de gostar demais dos contos
de Drummond (que me ganha mais pela poesia), Rubem Alves e Paulo Mendes Campos,
Lygia verdadeiramente conquistou o espaço de minha contista preferida – porque
sim, nasceu para ser contista, acima de tudo. Talvez o grande milagre do
contista seja saber elencar as razões dos seus diagramas exatamente como alguém
que, de certa tarde, elenca algumas lembranças na memória e individualiza
sentimentos em pequenas histórias. Uma viagem e um céu azul na praia de
Copacabana nos anos 80 pode dar luz a uma personagem inteira, cheia de estilo;
uma conversa de bar sobre o telejornal vira dois meninos de rua correndo pelas
páginas de uma ligeira história.
Lendo suas obras, a sensação sempre foi de
que conseguia ordenar os contos de uma maneira tão sutil que imitava a vida com
bastante facilidade. Anos depois da descoberta, achei um pequeno livro
escondido pelas prateleiras intitulado “Durante aquele Estranho Chá”. Um livro
sobre os amores, a vida, os conhecidos, os escritores e militantes amigos da
escritora – bagunça organizada de contos seus espalhados. Um dos contos falava
da mãe e do especial gosto de infância quando fazia o seu doce especial de
goiaba. Remetia sempre à infância e às cores de seu tempo, transformando as
lembranças em histórias e personagens que acendem sensações comuns para o
leitor sensível à nostalgia.
Mas a vez do meu encanto veio com “A
Estrutura da Bolha de Sabão”. Lembrei de pronto da aula de Literatura, e de
como aquele título nunca saiu da minha cabeça. A Estrutura da Bolha de Sabão –
nome de um dos contos do livro, que concatena o sentido geral da obra – fala de
um físico que houvera estudado há tempos e com afinco sobre a estrutura de uma
bolha de sabão. Mas ora, que há de interessante na estrutura de algo tão banal?
A bolha de sabão é extremamente frágil, sendo possível que um pequeno inseto ou
um vento forte desmanche lhe a forma, mas também é bastante maleável, a ponto
de que se lhe sopre ou apalpe e ela ainda assim não estoure. A autora vem aqui
homenagear sabidamente a imprecisão e efemeridade da vida, que guarda em si
sentidos tantos quais não possam ser devidamente descobertos, tampouco tocados
ou desvendados seus mistérios. “Nem sonho, nem realidade” diz a escritora.
Assim como Proust certamente diria.
De tudo, o que se pode retirar é que a vida
realmente não se acerta em formas sólidas e seguras, mas que os bons momentos e
as sensações sempre vão significar os valores que habitam nosso ser e nos fazem
querer viver e compartilhar ideais com os outros humanos. O doce de goiaba, a
fábrica de biscoito, o terno do avô que já morreu, a música que tocava na
vitrola – aconteça o que acontecer, ainda que com novos olhos, alguma parte
miúda do passado ainda escreve aquele testemunho da história que passou. E ela
sempre vai habitar nosso ser e mostrar uma peculiaridade só nossa que se esvai
do corpo quando os olhos brilham. Assim é a vida, o amor, a arte. Aquilo que se
sobressai enquanto os olhos brilham.
Em fevereiro desse ano, Lygia Fagundes Telles
recebeu indicação ao Prêmio Nobel de Literatura pela União Brasileira de
Escritores. Seu trabalho, já tantas vezes reconhecido, agora vem a competir por
uma importância magnífica- se ganhar será a primeira vez que o prêmio é
concedido a um brasileiro. A menina da mãe “mulhergoiabada”, hoje mulher, com
certeza deve lembrar que tudo isso um dia adveio das leves histórias de
infância e juventude a darem vazão à sua inspiração inefável.
“Eu ficava olhando seu gesto impreciso,
porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem
realidade nem sonho. Película e oco.” Nem tão lógica, nem tampouco incongruente
e esparsa, é a vida. Porém formosa – mais bela e encantadora do que se possa
descrever.
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