terça-feira, 24 de maio de 2016

UM MOVIMENTO SINESTÉSICO: O CONTO DE LYGIA FAGUNDES TELLES



Literatura: crítica literária 


“(É) estudante de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e eterna amante da poesia contida nos pequenos prazeres da vida.”


A escritora paulista de “Ciranda de Pedra” e “As Meninas”, que ganhara diversos prêmios nacionais e internacionais não era, contudo, pra mim, assaz encantadora em seus livros de prosa; me agradava muito mais os seus tantos livros de contos. Aliás, apesar de gostar demais dos contos de Drummond (que me ganha mais pela poesia), Rubem Alves e Paulo Mendes Campos, Lygia verdadeiramente conquistou o espaço de minha contista preferida – porque sim, nasceu para ser contista, acima de tudo.




Outro dia me peguei pensando sobre como às vezes, de súbito, encarnamos personalidades aleatórias e experimentamos sensações únicas, de certo gosto nostálgico. Por exemplo, quando faço visitas à minha cidade natal interiorana, e passo por perto de uma antiga fábrica de biscoitos e doces, sinto um cheiro tão peculiar que poderia chamar de meu – dar nome, identidade, relatar sobre as loucas viagens desse cheiro dentro do meu espólio pessoal de alguma personalidade que fora esquecida pelos novos hábitos e novos cheiros do cotidiano.
Mas também meus ouvidos certas vezes me reservam o esforço de aguçar os sentidos e diminuir as passadas quando entro numa rua perdida: aquela música específica significa algo interessante – seria um beijo, uma paixão infantil, uma tarde ensolarada em que conhecera algum novo amigo? Às vezes nem dá pra saber, mas a sensação estranha e gostosa continua sempre lá, latente, como quisesse transformar-nos em um só instante naquela velha personalidade que acreditava em alguns sonhos e pensava sobre algumas coisas. Pequena boneca de porcelana da casa da vovó, flores do jardim da tia que em 1997 pareciam mais coloridas.
Tudo isso tem um pouco de gosto de Proust. Acredito que, de alguma maneira, quando iniciou suas elucubrações acerca de como queremos sempre resgatar o tempo, seja visitando lugares de infância ou rememorando lembranças através de objetos de valor emocional, restou enlouquecido com o fato de que vamos nos perdendo dentro de nós mesmos até assumirmos a forma de um complexo nervoso de células que anseiam encontrar suas matrizes – mas que se reúnem com outras sinapses e induzem à redução de algumas crenças solidificadas a simples parágrafos de texto que nos dizem por onde ir.


Talvez Proust tenha conseguido, em sua jornada, visitar eus impressionantes que proporcionaram-lhe sentar consigo em frente a um espelho e olhar lados seus de maneiras diversas. Conversar consigo e poder escutar as batidas do seu coração que já pertenceu a outros eus, teimar com os seus tendões e ouvi-los reclamar pelas lesões causadas por esforços e posturas com as quais nunca se preocupou ao longo da existência. Proust pode ter conhecido lados sombrios de suas lembranças, dores escondidas. Ou pode até não ter tido contato algum com essas partes.
Na verdade, o hábito das lembranças muito mais nos aproxima do que queremos ver, e não daquilo que o passado fora. Porque afinal, não podemos voltar e ver as coisas do mesmo jeito, retomando situações e reagindo a elas da mesma maneira. Estamos sempre enxergando o passado com os óculos do presente, e isso torna nossas memórias viciadas pelos novos significados atribuídos pela nossa “máquina-mente”. Mas acho que se Proust ainda estivesse por aqui, ele afirmaria que valem à pena – as lembranças, sim. Sem elas, o que somos? As sensações são indescritíveis, e nos levam a universos misteriosos sempre que paramos para apreciá-las. Foi lendo um pequeno livro citado em uma aula de Literatura, em algum dia de que não me recordo, que encontrei o encanto pela escrita de Lygia Fagundes Telles e, num momento de profusão, achei um ritmo sinestésico em suas palavras que me proporcionou tocar sentidos outrora perdidos.
Conheci a obra de Lygia Fagundes Telles no segundo ano do Ensino Médio. A escritora paulista de “Ciranda de Pedra” e “As Meninas”, que ganhara diversos prêmios nacionais e internacionais não era, contudo, pra mim, assaz encantadora em seus livros de prosa; me agradava muito mais os seus tantos livros de contos. Aliás, apesar de gostar demais dos contos de Drummond (que me ganha mais pela poesia), Rubem Alves e Paulo Mendes Campos, Lygia verdadeiramente conquistou o espaço de minha contista preferida – porque sim, nasceu para ser contista, acima de tudo. Talvez o grande milagre do contista seja saber elencar as razões dos seus diagramas exatamente como alguém que, de certa tarde, elenca algumas lembranças na memória e individualiza sentimentos em pequenas histórias. Uma viagem e um céu azul na praia de Copacabana nos anos 80 pode dar luz a uma personagem inteira, cheia de estilo; uma conversa de bar sobre o telejornal vira dois meninos de rua correndo pelas páginas de uma ligeira história.
Lendo suas obras, a sensação sempre foi de que conseguia ordenar os contos de uma maneira tão sutil que imitava a vida com bastante facilidade. Anos depois da descoberta, achei um pequeno livro escondido pelas prateleiras intitulado “Durante aquele Estranho Chá”. Um livro sobre os amores, a vida, os conhecidos, os escritores e militantes amigos da escritora – bagunça organizada de contos seus espalhados. Um dos contos falava da mãe e do especial gosto de infância quando fazia o seu doce especial de goiaba. Remetia sempre à infância e às cores de seu tempo, transformando as lembranças em histórias e personagens que acendem sensações comuns para o leitor sensível à nostalgia.

Mas a vez do meu encanto veio com “A Estrutura da Bolha de Sabão”. Lembrei de pronto da aula de Literatura, e de como aquele título nunca saiu da minha cabeça. A Estrutura da Bolha de Sabão – nome de um dos contos do livro, que concatena o sentido geral da obra – fala de um físico que houvera estudado há tempos e com afinco sobre a estrutura de uma bolha de sabão. Mas ora, que há de interessante na estrutura de algo tão banal? A bolha de sabão é extremamente frágil, sendo possível que um pequeno inseto ou um vento forte desmanche lhe a forma, mas também é bastante maleável, a ponto de que se lhe sopre ou apalpe e ela ainda assim não estoure. A autora vem aqui homenagear sabidamente a imprecisão e efemeridade da vida, que guarda em si sentidos tantos quais não possam ser devidamente descobertos, tampouco tocados ou desvendados seus mistérios. “Nem sonho, nem realidade” diz a escritora. Assim como Proust certamente diria.
De tudo, o que se pode retirar é que a vida realmente não se acerta em formas sólidas e seguras, mas que os bons momentos e as sensações sempre vão significar os valores que habitam nosso ser e nos fazem querer viver e compartilhar ideais com os outros humanos. O doce de goiaba, a fábrica de biscoito, o terno do avô que já morreu, a música que tocava na vitrola – aconteça o que acontecer, ainda que com novos olhos, alguma parte miúda do passado ainda escreve aquele testemunho da história que passou. E ela sempre vai habitar nosso ser e mostrar uma peculiaridade só nossa que se esvai do corpo quando os olhos brilham. Assim é a vida, o amor, a arte. Aquilo que se sobressai enquanto os olhos brilham.
Em fevereiro desse ano, Lygia Fagundes Telles recebeu indicação ao Prêmio Nobel de Literatura pela União Brasileira de Escritores. Seu trabalho, já tantas vezes reconhecido, agora vem a competir por uma importância magnífica- se ganhar será a primeira vez que o prêmio é concedido a um brasileiro. A menina da mãe “mulhergoiabada”, hoje mulher, com certeza deve lembrar que tudo isso um dia adveio das leves histórias de infância e juventude a darem vazão à sua inspiração inefável.
“Eu ficava olhando seu gesto impreciso, porque uma bolha de sabão é mesmo imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho. Película e oco.” Nem tão lógica, nem tampouco incongruente e esparsa, é a vida. Porém formosa – mais bela e encantadora do que se possa descrever.



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