Literatura
Publicado por Maria
Fernanda Carvalho
“Há tanta
leveza, beleza e elegância nas tempestades, mas navegar é preciso e viver é
profundo, embora sintamos a superfície e percorramos em limiares aleatórios.
Desse encontro entre o que é limiar e profundo nascem forças e ao vivenciarmos
a experiência na travessia despertamos uma "possibilidade de ser"
assim o homem vive e realiza-se espontaneamente e desse irromper o homem também
cria uma dimensão de vida propulsora de modos de ser no mundo. O criador, o
artista faz isso. O homem é um modelo dessa possibilidade de ser, ele é livre
no agir e no atuar e dessa forma libera o viver, esse sentimento é
transformador e ao poder ser pleno, se faz arte.”
Saramago disse:
"Estamos sempre buscando conhecer o outro. E se buscamos conhecer o outro,
de forma direta ou indireta, voluntária ou involuntária, também estamos a
tentar dizer quem somos". Com isso ele discursa sobre as implicações
filosóficas de uma questão: “o que você faria se descobrisse, ao assistir a um
filme, que existe uma pessoa que é a sua cópia perfeita?” Entramos no terreno
das perplexidades subjetivas em o Homem duplicado. “O Caos é a ordem que ainda
não foi decifrada”.
O diretor canadense Denis Villeneuve
inspira-se no livro do escritor português José Saramago para fazer esse filme
“Enemy”, o “homem duplicado” (2013). A variação do filme é complexa a
princípio, mas logo percebemos dois personagens iguais e diferentes ao mesmo
tempo em um só homem. Há um problema de identidade fragmentada como se fosse
pedaços espalhados e deixados por aí no mundo.
O filme nos conta a história do professor de
Universidade na cidade de Toronto, Adam Bell (Jake Gyllenhaal). Sua vida é uma
rotina que varia entre a monotonia e o tédio sem grandes novidades. Vive com
sua namorada Mary em um relacionamento de silêncios gelados e sexo quente. Essa
história começa a mudar quando vê o seu “duplo”, ao assistir um filme em DVD.
Então pesquisa todos os nomes que aparecem nos créditos e descobre que o ator
se chama Anthony Claire. Descobre ainda onde ele vive e mora, tenta estabelecer
um contato, mas tudo é em vão, pois Antony e sua esposa desconfiam dele.
Evidente que há diferenças no comportamento
dos dois, enquanto o professor expressa uma "alegria aparente" o
outro que é ator expressa variadas máscaras e se multiplica em outros,
representando papéis. No percorrer do filme, os antagonistas, são na verdade
complementares, mas há também semelhanças, ambos não são realizados e vivem
insatisfeitos. Frustrados beiram a raiva e tentam descontar tudo no sexo e na
luxúria e são envolvidos com mulheres parecidas fisicamente. Desse encontro as
características dos dois de hostilidade e competitividade vêm a tona, tentando
levar cada um a mulher do outro para a cama.
O encontro dos dois é para marcar as
diferenças físicas e emocionais, enquanto Adam é embaraçado e ressentido, o seu
duplo é assertivo. Villeneuve cria um desconforto no espectador, pois a trama é
sem sentido e no drama aparecem elementos surreais, tudo para provocar uma
perplexidade a quem assiste ao filme. O simbolismo da aranha, afirma o diretor
Denis Villeneuve é "o medo da perda de controle diante da ameaça dos
poderes do inconsciente. É uma questão de saber o quanto temos controle sobre
nós mesmos. Para mim, o filme é uma reflexão dessa preocupação”.
Esse simbolismo representa o inconsciente
adentrando a cidade de Toronto, pois simbolicamente, a aranha é a tecelã do
destino e também o perigo, onde remete paradoxalmente a dualidade entre a culpa
e o desejo de todos os seres humanos conscientes marcados pela castração de
Édipo. As neuroses dessa castração, que barra, transfigura as ansiedades,
desconfortos e as atmosferas claustrofóbicas são marcantes no filme.
O clima que paira sobre eles é da traição,
luxúria e perversão, símbolo da aranha e ameaça a destruir a ordem
estabelecida, das regras do consciente e inconsciente.
A narrativa dos duplos há um conflito
existencial entre os fatos históricos, derivados de monotonia e processos
lentos, como na vida de Adam e as narrativas rápidas e superficiais do cinema
de Anthony e ronda algo que ameaça como uma aranha, o desejo.
Para explicar o sentido dos duplos, fazemos
uma analogia do primeiro contato que temos ao nascer é com a nossa mãe, para
que uma separação seja feita, precisa-se o bebê se diferenciar, Lacan vai nos
dizer sobre o primeiro estádio do espelho, onde o bebê se vê e se diferencia do
Outro diferente que não é ele em uma imagem refletida que não é realidade. Essa
metáfora do espelho é quando a mãe vai permitir ao filho se reconhecer como um
sujeito outro que não ela. Ao se sentir como “Eu” no espelho percebe-se como um
outro diferente da mãe, embora ainda dependa da sustentação desta mãe.
Em pleno século estamos adentrando uma
cultura de selfies e redes sociais onde queremos aparecer por meio das fotos,
sem medo, sendo apenas a própria imagem refletida no espelho. Uma réplica de si
mesmo sendo possível um filtro estabelecendo assim uma simulação, onde pode
alterar a forma o jeito diante de um espelho do nosso psiquismo. Essa visão
espelhada entre eles nos faz lembrar as oposições arquetípicas do psiquismo
humano. Aqui no caso desse artigo iremos explorar essa visão apolínea e
dionisíaca, mas há outras oposições que poderemos relacionar como o Yin e Yang
e, superego e id.
Nesse conflito humano atualizamos a mitologia
grega de Apolo e Dionísio. Duas identidades separadas, mas inseparáveis. Onde
seria impossível matar uma identidade para ficar somente com a outra? Há um
perigo de que nesse caminho haverá confrontos se não for bem direcionado e na
busca pode-se perder a identidade, onde o mergulho da situação leva a
esquizofrenia e ao caos.
Nietzsche, diz que Apolo não pode viver sem
Dionísio! O titânico e o bárbaro eram, no fim de contas, precisamente uma
necessidade complementar. Essa busca constante de ser somente uma única pessoa,
sem máscaras, sem filtros poderemos explorar nesse filme. Nessa exploração da
busca de identidade, precisamos de uma analogia, um simbolismo para se tentar
entender esse conflito.
Lembrando bem das aulas de filosofia com o
professor Frajman, podemos dizer que: Apolo e Dionísio são dois princípios
designados por Freud de Principio do Prazer e da Realidade. Nesse filme
enquanto o artista Antony é o artista dionisíaco, o professor de história Adam
é Apolo. Duas instancias do Eu, da identidade de qualquer ser humano. Dionísio
é o Deus da desmesura, do fim da dor de estar separado no mundo. Deus da
fartura, da embriaguez, do sexo com todas as suas forças, luta contra a
aparência e a civilização, tudo que ele quer é prazer, mas há uma tragédia que
o acompanha, pois como viver na civilização com essas características? Dionísio
é o homem da tragédia, pois vive das suas emoções e do prazer, ele representa o
excesso, o vinho, a dança, o êxtase. Representando assim a busca do prazer, a
satisfação imediata do desejo desmedido.
Já Apolo representante do principio da
realidade é a consciência de Dionísio como excesso e desmesura passa a ser
medido. A razão assombra agora, o espirito dionisíaco. Para os gregos, Apolo
era uma proteção contra a desmesura dionisíaca e para Freud, tal Principio de
Realidade passa a ser a evolução: o surgimento da civilização. Apolo barra
Dionísio. É a concepção do drama em detrimento do trágico. Por outro lado
enquanto Apolo barra Dionísio, Dionísio através da instauração desse principio
se torna sublimado. Surge aí uma nova estética.
Esse dois princípios, ou melhor, Apolo e
Dionísio, são dois instintos ou duas divindades, segundo Nietzsche, eles viviam
brigando, pois a vontade de poder imprime sua marca nestes instintos, que só
podem estabelecer entre si relações de luta. E o que quer uma força é
afirmar-se. Esta luta pela potencia, por mais potencia, contamina as relações
entre Apolo e Dionísio.
É assim que esses dois instintos estão
constantemente em luta aberta, luta de cada um por sua afirmação. Apolo como
proteção contra Dionísio, mas chega um momento que todas as defesas cedem e
onde a resistência torna-se impossível. Dai se passa os conflitos em todos os
seres humanos. Há uma solução ao de render-se ao adversário, ou então negociar
e chegar a uma solução de compromisso onde todos os mecanismos de defesas
tornaram-se inúteis. Nietzsche ainda nos diz que a reconciliação desses
instintos é que se tentar juntar os dois dar-se-á a tragédia, o caos, a
esquizofrenia no sujeito.
Com isso a subjetividade trágica é resultante
de uma dialética, esse dois instintos são fundamentais Freud nos conta que:
“Tal como o eu-prazer nada pode construir a não ser querer, trabalhar para
produzir prazer e evitar o desprazer, assim o eu-realidade nada necessita fazer
a não ser lutar pelo que é útil resguardando-se contra danos. Na realidade, a
substituição do principio do prazer pelo principio da realidade não implica a
deposição daquele, mas apenas sua proteção. Um prazer momentâneo, incerto
quanto a seus resultados, é abandonado, mas apenas a fim de ganhar mais tarde,
ao longo do novo caminho, um prazer seguro”.
Uma analogia com a sociedade atual onde o
sujeito contemporâneo, levado pelo provisório, variável e problemático não
possui uma configuração fixa, essencial ou permanente, é desse estranhamento do
duplo que vivemos em meio ao caos criando uma nova ordem: caos é a ordem que
ainda não foi decifrada.
(imagens Google)
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