Luiz Carlos Facó*
Mutum-do-cu-branco
Minha pressa em chegar a Salvador tinha uma razão de ser. No dia seguinte aniversariava minha mulher. Assim pensava e justificava a insensatez do meu procedimento, ao guiar um velho automóvel a mais de cem quilômetros hora.
Na verdade, digerindo melhor o episódio, sinto que aquela rapidez era fruto da saudade que me possuía. Portanto, responsável isolada, por tanta insanidade. Inibidora de qualquer tipo de prudência que pudesse me refrear.
Pus-me na estrada em condições adversas, saindo de Brasília. O tempo invernoso vaticinava cerração e chuvas. Mesmo assim, logrei percorrer grandes distâncias sem sobressaltos. Porém, nas circunvizinhanças do município de Conquista, em território baiano, adveio uma tempestade cujas proporções jamais supusera existir.
O céu fez-se plúmbeo, quase negro, num piscar de olhos. Das nuvens carregadas eram despejados milhões de litros d’água, intermitentemente. Os trovões ribombavam com estridência estarrecedora. Os raios riscavam o firmamento, a cada segundo, fazendo clarear toda aquela planura submetida às trevas. A violência do vento era tamanha que dava a impressão de poder arrastar, com facilidade, a mais sólida estrutura.
Sozinho, no meio da estrada, não sabia se presenciava o princípio ou o fim do mundo. A minha impotência, fragilidade, diante de tamanha fúria, era evidente. Urgia encontrar um abrigo que me protegesse e que me desse tranquilidade.
Envolvido por essa procura angustiante vislumbrei, metros adiante, uma luz bruxuleante. Era o farol que buscava. Aquela réstia guiou-me até uma pensão chamada Dona Flor e Seu Marido. Pobre em instalações, rica no atendimento.
A proprietária, chamada Flor, deu-me as boas vindas com atenção e delicadeza, apresentando-me às acomodações que iria ocupar, ao marido, apelidado Mutum-do-Cu-Branco, e às duas filhas.
Malgrado a estafa que me dominava, recompus-me depois de um reconfortante banho morno e pedi o jantar. Uma deliciosa carne do sol com pirão de leite. Ingerida com a gula dos esfaimados.
Enquanto degustava o manjar, veio sentar-se ao meu lado o marido da proprietária, provável cozinheira da estalagem, para puxar dois dedos de prosa:
- Com medo, excelência, por causa de uns chuviscos à toa?
- Absolutamente. Respondi-lhe. Talvez, preocupado com a continuação da viagem que se faz longa. Principalmente se persistir este tempo ruim.
- Não se preocupe, excelência, vou providenciar que ele mude, que o sol apareça amanhã bem cedo e o senhor prossiga sem problemas.
Diante de tão insensata afirmação, coloquei-me na defensiva.
Mas meu interlocutor era insistente e voltou à carga.
- O senhor deve me achar louco por lhe prometer tempo bom. Poucos acreditam que eu consiga, mas sei que posso. Sou amazonense, extrativista. Recolhi muito látex de seringueira, amêndoas de castanhas do Pará, pupunha, urucum. Um dia, depois de doze maleitas brabas, resolvi largar tudo e sair pelo mundo. Acabei aqui na Bahia. Casei com a Flor e tenho duas filhas. Mas jamais esqueci o que aprendi na floresta com os pajés da nação dos índios canamiris. Por isso, posso lhe assegurar bom tempo ao amanhecer. Mesmo porque ele esta assim por descuido meu.
Fiquei assustado mais uma vez. Porém, interessado. Caso não estivesse diante de um doido varrido, pelo menos me encontrava na presença de um contador de casos. E eu adoro ouvi-los.
Mutum-do-Cu-Branco, apelido possivelmente adquirido no Amazonas, onde se encontra esse tipo de ave, cujo macho é preto e tem a base do bico na cor amarela. Era negro, de olhos amendoados, brilhantes, beirando seus sessenta anos, lábios grossos, irremediavelmente descorados. Em tudo fazendo lembrar um espécimen daquela família. Suas características mais marcantes residiam num sorriso sereno, fala pausada, gestos largos, quase teatrais. Acompanhavam-no, também, a argúcia e o dom da aguda observação. Nada lhe escapava. Tanto assim, que espreitando meu interesse em sua história, desandou a falar.
- Pois é, excelência, quando quedei nestas bandas era um homem sem crédito, eira nem beira. Mas logo aconteceu um fato que mudou a opinião de muitos. Eu tinha um velho cão chamado Caipora, o companheiro inseparável das minhas andanças por esse mundo de meu Deus. Certo dia ele amanheceu doente. Não bebia água, latia irado, não reconhecia o próprio dono. Vi logo que era raiva. O bichinho endoidara. Então lembrei-me do ensinamento de um velho índio e corri a pô-lo em prática. Segurei com cuidado o Caipora, arrastei-o à casa do vizinho, Zé Piromba, e o amarrei num pé de bananeira, prestes a ser arrancada pois jamais houvera dado frutos, e esperei o resultado. O cão rosnava, debatia-se, e em dado momento fez o que eu previra. Voltou todo o seu ódio contra o tronco da bananeira e passou a mordê-la repetidas vezes. Dia seguinte, lá estava o Caipora “mortinho” da silva e a estéril planta carregada de frutos. Os mais variados: bananas maçã, prata, d’água, tangerinas, laranjas, sapotis, mamões, cajás. Uma beleza. A bananeira endoidecera como o Caipora e, desde então, jamais deixou de produzir. De cada fruta um pouco. Tudo comprovado, testemunhado e registrado em cartório para que não houvessem laivos de dúvidas. Se pude fazer isso, posso realizar muito mais. Inclusive desentocar o astro rei que se encontra escondido sob estas pesadas nuvens.
Não resistindo a tamanha presunção do meu anfitrião e visando instigá-lo, um pouco mais, perguntei-lhe:
- O que você fará para deter esta tromba d’água, fazer cessar tantos ventos e raios?
A resposta veio de inopino:
- Escute, excelência, sou um homem vivido, trabalhador e conhecedor dos segredos da vida. Desde cedo aprendi certas coisas aqui, outras, acolá. Mas não sei tudo. Só o suficiente para agir em determinadas situações. Principalmente como a que ora atravessamos, da qual sou o único responsável.
E depois de breve pausa concluiu:
- Sempre gostei de caçar raios. Os filhotes. Encontráveis em pequenos ninhos nos ocos das árvores. Por ocasião das festanças de São João, solto os maiores, os bem criados, para festejar o santo da minha devoção. Acontece que hoje, pela manhã, depois de voltar de mais uma colheita, com um magote especial, por descuido, deixei escapar, do baú onde os acomodo, a maioria deles. Daí esta festança nos céus. Mas se tranquilize, excelência. Amanhã tudo estará sossegado e o senhor partirá sem perigo.
Com muito sono fiz menção de levantar. Mas dona Flor, que a tudo escutava, repousando, num canto da sala, disse com a certeza própria das mulheres:
- Neste homem o senhor pode confiar. Bote fé nele excelência.
Com pesar, despedi-me do casal, mesmo sendo apreciador de uma agradável conversa. E, no recolhimento do modesto quarto que ocupava, dei razão ao grande Anatole France, quando sentenciou: “Somente as mulheres e os médicos sabem quanto a mentira é necessária e benéfica aos homens.”
NR/*Conto extraído do livro Garimpando Lembranças.
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