terça-feira, 27 de novembro de 2012

JOÃO UBALDO RIBEIRO - O MAIS RECENTE IMORTAL BAIANO

Otávio Mangabeira, primeiro governador baiano pós a ditadura Vargas, profundo conhecedor da alma da gente baiana, costumava dizer, sem nenhum pudor: “o baiano é capaz de gastar cem para o outro não ganhar dez.” Não desejava, com essa tirada, o grande político baiano, obscurecer as qualidades dos seus conterrâneos, que são muitas, e dão vez ao seu decantado modo de ser, tão festejado e imitado, senão, em apontar o grande ciúme que o baiano sente por alguém, quando esse se destaca mais do que ele.
                Foi, quiçá, por aquele motivo, segundo penso, o ciúme, que o nosso João Ubaldo, enquanto jovem, não logrou ser aclamado Imortal pela Academia de Letras da Bahia, muito embora suas qualidades de literato de escol jamais tenham sido contestadas.  Era a velha inveja impedindo a ascensão de quem, por méritos próprios, já ganhara, nacionalmente, o respeito da comunidade literária. Tanto que galgaria à Imortalidade, chancelada que foi pela Academia Brasileira de Letras.
                Ontem, 22 de novembro de 2012, assisti a ser empossado na vetusta academia baiana, numa festa de ”mea culpa”, ou de resgate da intolerância, porém, tardiamente levada a efeito, nosso João Ubaldo ser jungido pelo título de imortal baiano. Honraria que veio desacompanhada de juros e correção monetária, devidas. Como ele próprio acentuou, em seu enxuto discurso de posse, mas, exuberante e lírico, profissão de fé de sua baianidade, que a Bahia não lhe é devedora mas, sim ele é devedor da Bahia, deixemos a cobrança daquelas taxas na coluna da somenos importância.
                Parabéns João Ubaldo, que essa láurea o torne, também, “imorrível”. Ao menos, na memória do nosso amado povo.
                Do amigo
                LCFACÓ
ECOS DA SOLENIDADE
DISCURSO DO NOVO IMORTAL
João Ubaldo Ribeiro

[Preâmbulo]
               
                Senhoras e senhores,
                Antes de fazer o pequeno discurso de agradecimento que se seguirá, preciso dar uma explicação. Tenho ciência da prática de, no momento da posse, falar-se em louvor dos ocupantes anteriores da cadeira até então vaga. Mas, como pretendo homenagear a Bahia e os baianos, acredito que, louvando a Bahia, também os estarei louvando. Além disso, e mais importante, suas biografias e fortunas críticas hão de ser muito mais bem servidas nas mãos de literatos e historiadores habilitados, o que está longe de ser meu caso. Refiro-me ao patrono da Cadeira 9, Antônio Ferreira França, e aos ilustres confrades José Alfredo de Campos França, Edgard Ribeiro Sanches e Antônio Luiz Machado Neto, o último dos quais um pensador notável, de quem fui aluno e permaneço admirador. Abro, contudo, exceção para Cláudio Veiga. Com minha decisão de não falar sobre cada antecessor, ele seria o único a não ter seu nome e sua obra lembrados na posse de um sucessor, o que configuraria injustiça muito grave. No meu caso, mais grave ainda, porque, para alegria minha, conheci-o pessoalmente e me relacionei mais ou menos de perto, não só com ele, mas com outros membros de sua família, tantos deles conceituados inlectuais e educadores. Cavalheiro de maneiras e trato incriticáveis,era um homem de letras por excelência e um mestre apaixonado pelo que ensinava. Autor de ensaios, antologias e traduções modelares, dedicou-se por inteiro à sua vocação, cumprida com brilho e destaque, não apenas aqui, mas também no exterior. Sua obra, não pequena, permanece importante e atual. À frente desta Academia, foi um trabalhador infatigável e devotado, que deixou um legado talvez inestimável. A meu amigo, o escritor Cláudio Veiga, antecessor que muito me honra, presto, portanto, minhas mais sinceras homenagens e reitero o preito de admiração que tive a enchança de manifestar-lhe em vida, mais de uma vez.

[Discurso]

Queridos conterrâneos e amigos, este é para mim, acima de tudo, um dia de extraordinária celebração, um dia de consagração e glória. Nada equivale ao que estou vivendo agora. Recebo hoje um prêmio que me exalta e enobrece mais que qualquer outro: a expressão do reconhecimento e da estima de meus concidadãos, o abraço da minha terra, o insubstituível sentimento de ver compreendido, e com tanta generosidade retribuído, o intenso amor que sempre lhe votei, e que transborda de tudo o que faço. Ingresso nesta Academia com grande orgulho. Recebo, através dela, mais do que mereço, mas nem por isso rejeito os louros. E a principal razão para que eu aja assim é que esses louros não são meus, são da Bahia, são de nossa singular civilização, são da força cultural que sempre nos distinguiu. Sou filho da Bahia, filho da Denodada Vila de Itaparica, filho do Recôncavo Baiano, filho dessa costa venerável cujas ondas testemunharam o nascimento da nacionalidade brasileira.
                Sou cria do Colégio Estadual da Bahia, Seção Central, o grande Central, verdadeira universidade pública, onde mestres e educadores inesquecíveis ministravam, através das aulas e dos exemplos, a melhor formação que se podia obter. Sou, ainda mais, cria da sempre celebrada Faculdade de Direito da Bahia, onde fui educado numa tradição humanista esclarecida, eloquente e libertária, entre juristas e pensadores de nível universal. Na faculdade, aprendi a ser cidadão, aprendi a escrever, aprendi que modelos admirar e adotar, incorporei valores básicos, convivi com espíritos eminentes, fiz discursos, escrevi artigos, disputei campanhas, perpetrei poemas, encenei peças. E, finalmente, sou cria do velho Jornal da Bahia, onde outros mestres também me formaram, na profissão que até hoje exerço.
                Na Bahia aprendi o encanto de andar de madrugada com as pedras das ruas molhadas pela chuva recente, vendo meus amigos, tanto os da minha idade quanto os mais velhos, parar, abrir os braços, apontar os campanários ou o casario de Santo Antônio Além do Carmo, e recitar poetas do mundo todo, com quem nos sentíamos irmanados. Andei com pintores, escultores, cantores, mágicos de rua, jagunços, vagabundos, cafetinas lendárias, mulheres enigmáticas, anarquistas, stalinistas, trotsquistas, fascistas, músicos loucos, ouvi todos os sotaques. Conheci gente mitológica, escutei e contei colhudas e narrações de milagres portentosos, naveguei de saveiro pelas águas da baía, fiz samba-de-roda, saí de mulher num carnaval, participei de expedições de pesca, virei cozinheiro, sonhei com revoluções, marchei em passeatas e agitações nas praças, assinei manifestos vanguardistas, desfilei no Sete de Setembro, levei moças para conhecer o luar de Abaeté, tirei muitas vezes nota dez em redação, mas também já tomei zero, decorei Virgílio, pesquei em provas de Matemática, editei suplementos literários, li Sartre, frequentei a porta da Livraria Civilização Brasileira da Rua Chile, onde não conhecer as novidades culturais podia resultar em opróbrio, algumas vezes parei à meia-noite à porta da Catedral, junto com amigos, achando que ouvíamos o fantasma do padre Vieira lá dentro, esbravejando contra os hereges holandeses.
                Que mais me deu a Bahia, que mais nos deu, com que outras graças nos rodeou e nos criou? Bem mais fácil seria enumerar o que ela não nos deu. Quanto a mim, é impossível empreender esse inventário, sou devedor, não sou credor de nada. Não há como fazer a lista de tudo o que plasmou minha maneira de ver, sentir e expressar o mundo, de gente de todas as extrações que me ensinou alguma coisa e me tornou o que sou. Não é ufanismo bairrista dizer que a Bahia é um privilégio para quem nasceu nela, ou por ela foi adotado. Em nenhum outro país do mundo se deu a mistura de gente que sempre foi comum no Brasil e continua a ser. E, no Brasil, não há lugar onde essa mistura de corpos e mentes seja tão universalizada quanto na Bahia, onde faça parte tão entranhada da paisagem humana. Como se aqui se realizasse um intento do Criador, passamos por cima de todas as barreiras que foram criadas e ainda são criadas contra a integração da Humanidade. As culturas de origem africana trazidas para cá, em todas as suas manifestações, não morreram aqui, mas se transformaram e se revivificaram, e hoje, apesar de às vezes não percebermos bem essa realidade, espantosa em qualquer outro país, são um exemplo para o mundo. Aqui se dissolveram, numa mistura esplendorosa e fecunda, original e única, raças, crenças, costumes, falas, hábitos, gostos e aparências — é difícil avaliar como isso é precioso e raro, forte e delicado ao mesmo tempo. Basta trazer à mente a História, pregressa e presente, de nossa espécie, para verificar como dificilmente, ou nunca, esse fenômeno acontece. Mas acontece aqui e assim se define nossa identidade. Somos os detentores — e temos o dever de também ser os guardiães — dessa magnífica singularidade. Não somos brancos, negros ou índios; somos baianos. Não pertencemos, no maior rigor da palavra, a nenhuma religião, nem mesmo somos ateus; somos baianos. Não pretendemos ser melhores que ninguém. Mas somos baianos.
                Encerro este agradecimento com algumas referências essenciais. Quero, em primeiro lugar, com amor, gratidão e saudade, lembrar meu pai, Manoel Ribeiro, minha mãe, Maria Felipa Osório Pimentel Ribeiro e minha irmã, Sônia Maria Ribeiro Bandeira. Ressalto o apoio e a amizade de meu irmão, Manuel Ribeiro Filho. Agradeço a bênção que representam meus filhos, Emília, Manuela, Bento e Francisca. E, sobretudo, agradeço a minha mulher e companheira, Berenice, que, há mais de trinta anos, me deu a perene felicidade de aceitar meu nome.
                Muito obrigado.
                                                                                   Joaci Góes saudando o novo imortal.                  



                                                        João Ubaldo ao lado do decano dos imortais baianos, Professor Luiz Henrique

                                                                                     Julival Góes e Luiz Carlos Facó


                                                              Da esquerda para a direita: Julival, Facó, Ediane e Sérgio Ferro


                  Da esquerda para a direita: Desembargador Geminiano Conceição, João Carlos Teixeira Gomes, Facó e os imortais Rizodalvo Menezes e Joaci Góes


                                                                                João Ubaldo e Facó "bebemorando" a ocasião

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