Paulo Segundo da Costa*
O
Dique do Tororó, até com certa frequência, tem sido referido como construído
pelos holandeses, que, no dia 10 de maio de 1624, invadiram Salvador onde
permaneceram até 30 de abril de 1625. Foram expulsos - após constantes lutas
com os baianos refugiados nas áreas adjacentes à cidade - pelas forças
militares vindas da Europa, sob o comando do português Dom Manuel de Meneses e
do espanhol Dom Fradique de Toledo y Osório.
Invadida, a cidade era vigiada
diuturnamente pelos baianos impedindo os holandeses de receberem abastecimento
de gêneros alimentícios que necessitavam. A resistência foi forte. Sempre que
tentaram sair da área urbana houve luta, com significativas baixas entre eles.
O Padre Vieira (jesuíta que testemunhou os acontecimentos da invasão; tinha,
ele, na época, 18 anos de idade) narra a seus superiores, em Roma (Ânua de
1626, Cartas do Brasil, Editora Hedra, 2005, S. Paulo), com riqueza de
informação, como os holandeses invadiram a cidade, e como foram dela expulsos.
No relato que fez, diz ele: “Depois da cidade tomada, ao quarto dia,
vieram doze ou treze índios parentes de alguns que na bateria do Forte foram
mortos, deliberados a tomar vingança de suas mortes nas vidas dos holandeses; e
assim o fizeram nalguns que andavam desgarrados, por fora”. (ob. cit., p.
88). Refere às perdas das forças invasoras:
“Estavam acima da Fonte Nova, emboscados numa ilha de
mato, uns poucos dos nossos; foram sitiados dos inimigos e saíram logo muitos
em número, cuidando tinham a presa na mão; mas saiu-lhe bem ao revés do que
cuidaram, porque alem de morrerem alguns, foi necessário a muitos largar as
armas, para tomar às costas os que de malferidos não podiam fugir”. (ob.
cit. p.94) Sob forte vigilância, e muitas vezes mortos, os holandeses tinham
dificuldade de procurar alimentos nas áreas próximas ao centro urbano invadido.
Diz Padre Vieira: “Os nossos matavam uns holandeses (...) serviram-se
da pólvora que tomavam aos primeiros para os atingirem. E, com ser tão grande
esta falta, nunca nos nossos faltou ânimo, de sorte que, fossem os holandeses
poucos ou muitos, sem armas ou bem armados, quando saiam da cidade sempre
tornavam menos, e menos contentes. (...). Com estas perdas e desgraças ficou o
inimigo oprimido, e tão receoso de ter sempre adiante a pior sorte mandou
lançar bando (anúncio público) que
ninguém pusesse mais os pés fora da cidade”. (ob. cit.. p. 96, 97). Para dificultar o
acesso à cidade e provê-la de abastecimento de água, os holandeses barraram o
Rio da Vala, também denominado Rio das Tripas, com um aterro entre a atual
Ladeira da Praça e a encosta do morro da Palma, onde atualmente está instalada
a Reitoria da UCSAL, antigo Convento dos Agostinianos. Padre Vieira refere que
a base da defesa dos holandeses à cidade
invadida eram três morros: o do São
Bento, ao sul; o do Convento do Desterro, ao norte; o da Palma, ao leste. Como
se sabe, eles dominavam amplamente o lado oeste, onde fica a Baia de Todos os
Santos por onde, pelos barcos que a singravam, recebiam mantimentos vindos de
Itaparica e adjacências. É Vieira que informa: “Pelas quebradas dos três
montes que cingiam a cidade, represaram as correntes de algumas fontes, e
fizeram um tanque, tão largo e alto quanto bastou para impedir a passagem a
qualquer força ordinária. Por toda a cidade em roda assentaram artilharia nos
portos e postos mais importantes. E, porque não lhes faltasse coisa alguma com
que pudessem impedir-nos a entrada na cidade semearam, ao redor dela, e dentro,
nas bocas das ruas, uns estepes de ferro, feitos por tal arte que, de qualquer
parte que caiam assentavam três pontas no chão ficando outra para cima, e estes
em tal distância uns dos outros que caminhando, ainda em boa paz, não bastava
qualquer tento para assentar o pé em salvo; errando o passo ficava um homem
preso e enredado, sem remédio”. (ob. cit. p. 98)). Entre a elevação onde estava situada
a cidade e a da Palma construíram um dique; esse sim, o Dique dos Holandeses.
O Dique
Tororó, inicialmente um pequeno lago, em 1846, no governo do Presidente da
Bahia, Francisco José de Sousa d’Andrea foi levantado um aterro barrando a
sangria que ocorria para Rio Lucaia, ao longo da atual Av. Vasco da Gama. Com a
construção dessa barragem, a água represada passou a sangrar pela vala da Rua
do Sangradouro, atual Rua Djalma Dutra, desaguando no Rio das Tripas. No século
XIX, a área por onde sangrava passou a receber o lixo urbano de Salvador. Posteriormente,
essa área foi aterrada para construção da linha 15 do bonde elétrico para o Rio
Vermelho (de baixo), a partir do Largo das Sete Portas. Aterradas a vala da Rua
do Sangradouro, o Dique do Tororó voltou a sangrar para o Rio Lucaia, numa cota
mais elevada.
A cidade sitiada pelos baianos que
combatiam a invasão, inclusive uma emboscada na Fonte Nova, era um respeitável
obstáculo dificultando os holandeses transporem as áreas que a circundavam.
Assim, dificilmente os holandeses se aventurariam a construir um dique para
defesa da cidade a mais de um quilômetro do limite da cidade invadida, sob o
risco de contundentes baixas em suas ralas forças de ocupação (constituídas de
1.700 homens). Parece-me ser despropósito afirmar que o Dique do Tororó é
construção dos holandeses. Os fatos negam essa assertiva. Padre Antônio Vieira,
testemunha dessa história, fornece os argumentos.
NR/ * Paulo Segundo da Costa, é um dos mais competentes
historiógrafos da Bahia. Suas pesquisas históricas têm recebido o aval dos
nossos pesquisadores e historiadores mais sérios.
É sempre com prazer que recebemos e
divulgamos suas pesquisas, possuidoras que são do carimbo da credibilidade e do
prazer narrativo que as revestem.
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