No
sertão baiano
Antonio Novais Torres
PÓRCIA
“De Pórcia te comove
a bela história
O exemplo de ternura.
Mas eu sei que
dispensas a alta glória
De seguir teu marido
à sepultura.”
Do poeta cearense
Eurico Facó
Pórcia era uma recatada e tímida donzela da família feudal dos Castros que, por
amor a Leolino, um rude e valente homem da família Canguçu, abandonou lar,
família, conforto e honra, tornando-se a heroína do mais dramático idílio do
sertão.
O Major Silva Castro, desgostoso com a carreira militar, tornou-se um senhor
feudal do sertão, proprietário de fazendas em Caetité e Curralinho, onde a
família costumava passar as férias e recebia visitas de estudantes vindos da
capital.
Assim tem início o idílio de Pórcia e Leolino: o Major Silva Castro manda as
filhas solteiras passearem nas fazendas do alto sertão de Caetité. Lá se
demoraram por algum tempo, quando veio a seca as moças tiveram que tomar o
caminho de volta, indo em direção à fazenda Cabeceiras, região que não tinha
sido atingida pela seca e onde o major as esperava, as quais foram conduzidas
por um irmão do major de nome Luiz Antônio.
A viagem foi realizada por etapas, de pouso em pouso pelas fazendas do
itinerário pertencentes a amigos do major. Oportunidade em que as moças
aproveitavam a estada para promover festas, bailes, folguedos e jogos, sem
nenhuma preocupação com o flagelo da seca− caatinga ressequida, gado morrendo,
homens em fuga pela fome e falta d’água, tudo pela inclemência do sol abrasador
do sertão impiedoso. Nessas circunstâncias chegaram à fazenda do Capitão
Inocêncio Pinheiro Canguçu, fazendeiro amigo e companheiro de armas do Major
Silva Castro.
O capitão, em nome da amizade à família dos Castros promoveu festas e tudo fez
com o intuito de recepcionar e agradar, demonstrando a hospitalidade sertaneja.
Foram dias de muitas alegrias, festas e folguedos para esquecerem a inclemência
da seca. Enquanto isso, o Capitão Inocêncio e Luís Antônio discutia e analisava
os prejuízos da seca, os horrores da falta de chuva que castigava o sertão. O
Capitão também narrava para as meninas as aventuras, heroísmo e proezas do
major, chefe do batalhão que sob seu comando contou com a simpatia, amizade e
lealdade dos seus soldados. As moças ficaram encantadas com essas histórias.
Ficaram mais encantadas ainda com os galanteios dos rapazes Canguçus.
Em certa oportunidade, um frio invade o coração de Pórcia, deitada numa rede,
sob o luar do céu límpido da fazenda. Em devaneios, um frio nas mãos, um
desejo indefinido se apossa do seu corpo, enquanto os outros, lá dentro da
casa, brincam de berlinda. Distingue a voz e o riso de Leolino, cerrando os
olhos para melhor percepção, fazendo deduções da figura do bem-amado, impedido
de possui-la por estar ligado a outra pelos laços da lei e de não poder dizer
do seu amor.
Pórcia, neste ínterim, estremece na rede. Surpreende-se com os passos que se
aproximam, nem ouve a respiração ofegante e precipitada. Sente apenas uns
lábios tocarem os seus num frenesi inexplicável e delirante de um beijo
demorado que advinha ser da boca de Leolino, áspera, veludosa, brutal e
cariciosa. Deixa-se conquistar sem palavras e ele a olha e admira
contemplando-a num encantamento do luar que cai sobre a rede.
Quando ele diz que a ama, Pórcia se recorda da lei do sertão, de que a
infidelidade e o adultério são punidos com severidade, com vingança de morte.
Lembra-lhe a esposa, os pais, as famílias, tudo que poderão falar deles e
censurá-los. Em resposta, ele a beija de novo, acariciando-a levemente como a
luz do luar. É a primeira vez que se falam como amantes e ouve dele com
detalhes da imaginação de sertanejo, um plano de fuga, jurando que esse amor
será para sempre um do outro. Pórcia se encoraja, não teme mais a lei de honra
do sertão, não pensa no sofrimento da família dela (mãe, pai, irmãs), nem no da
esposa de Leolino. Recorda-se somente dos beijos, da boca suave e doce, das
carícias de suas mãos. É o amor que lhe invade o coração, suplantando a razão.
Dias depois, partem todos: o tio Luiz Antônio e os ‘cabras’ da comitiva rumo a Curralinho.
Leolino, premeditado, antecipa-se com pretexto de negócios em outra localidade.
As despedidas da fazenda e dos Canguçus são cheias de emoção e saudades.
O Capitão Inocêncio envia ao amigo Major Silva Castro suas recomendações e presente
de um bom vinho, despede-se calorosamente das moças com respeitoso beijo na
testa. A comitiva parte ao encontro do major que a espera ansiosamente pela
saudade e por saber das notícias da seca e dos prejuízos. Com a pressa de
chegar, não se faz mais nenhuma parada. Os animais estão cansados, exaustos e
suados pelo esforço. Os cabras tocam os cavalos para andarem mais depressa,
pressentindo uma tempestade. Enquanto isso na casa dos Castros o preparativo
para a recepção da comitiva é movimentado num entra e sai de expectativa e com
todo tipo de comida.
Pórcia é a única que está distante de tudo. Olhos absortos e perdidos na
escuridão da noite. O pensamento no arrebatado rapaz, indagando-se: “será que
não virá?” Leolino não faltaria, era homem de palavra, fibra e temperamento de
sertanejo. Surge então, de surpresa, Leolino, cujo encontro Luiz Antônio pensa
ser casual e quando se dirige para os cumprimentos, os clavinotes são apontados
e os homens da comitiva imobilizados. Leolino toma Pórcia, coloca-a na garupa
do seu cavalo e partem indo esconder o seu amor num lugar bem longe.
Pórcia se enche de contentamento, abraça a cintura do seu homem que
galopa na pressa de possuí-la o quanto antes. Chegam finalmente a um rancho
pobre, circundado por capangas de armas em punho e punhal à altura do
peito para protegê-los. Leolino a conduz nos braços para a tosca cama que será
o seu ninho de amor e se enchem de carícias e de amor. Aí passam a viver, longe
de todos e protegidos por um pequeno grupo de jagunços.
Delirantes de amor, Leolino raramente deixa a casa, por receio de vingança dos
Castros e pelo desejo ardente de estar sempre junto à sua amada que carrega no
ventre um filho seu fruto do amor livre e arrebatador. A vida continua em sua
rotina normal, é uma festa permanente ao som dos trinados dos pássaros e das
palavras de amor sussurradas pelos lábios do fervoroso amante.
Na casa dos Castros, com a notícia do rapto de Pórcia, não houve mais festas. O
Major Castro deixou que as filhas expressassem os seus sentimentos em lágrimas
e que a esposa se desesperasse. Em seus olhos não brotaram sequer uma lágrima,
de sua boca se ouviu sequer uma palavra. Reuniu o irmão, os parentes próximos,
aceitou a aliança dos Mouras, dos Medrados, famílias que odiavam os Canguçus e
partiu para a guerra da vingança.
Enquanto procuravam acercar-se da casa onde Leolino e Pórcia viviam
e escondiam o seu amor, uma criança já havia nascido uma linda criança que era
a vida dos pais e viera completar aquela felicidade.
Um dia, porém, Leolino e Exupério, enganados com a calma que reinava nos
últimos dias, certos de que os Castros e seus aliados tinham desistido da
vingança. Ingenuamente partem para um negócio de pouca demora.
Pórcia, fica guardada pelos “cabras”, brinca com o filho a ensinar-lhe as
primeiras palavras para fazer uma surpresa a Leolino quando chegasse. Eis que
rompe um tiroteio. Ela observa da porta e vê que os capangas resistem ao
ataque, mas vê também que os inimigos são muitos, seu pai à frente, comandando
o combate. Pressentindo que Exupério e Leolino não chegariam a tempo de
socorrê-la, envolve o filho nos braços protetores e tenta partir pelos campos.
É tarde, porém, os seus guardiões já não respondem ao tiroteio, estão
dizimados, deram suas vidas por esse amor.
Os homens dos Castros, dos Mouras e Medrados invadem a casa, destroem tudo que
encontram. Pórcia vê rostos conhecidos, que foram amigos e que
agora, após o combate e a vitória, estão endurecidos e, embrutecidos,
olham-na como a uma inimiga. Querem levá-la, ela resiste. Seu pai não
pronuncia uma única palavra, não a olha sequer. Manda que a levem e ela,
então, desprendendo-se dos braços que a seguram, parte para o quarto de
onde volta com a criança. Apresenta ao Major Silva Castro o seu neto, o filho
daquele amor condenado.
Seus olhos suplicam piedade, a criança ri. Os Mouras, os Medrados, os cabras se
afastam, deixam que o pai e, a filha, decidam a questão. Mas é preciso
cumprir a lei do sertão de punir o adultério, lavar a honra dos ofendidos e
desfeiteados porque aquele filho ilegítimo será sempre um insulto à honra dos
Castros.
O Major Silva Castro faz um sinal aos cabras, eles tomam a criança (sorria a
criança...) e, à vista da mãe que enlouquece, retalham-na a facão. A lei está
vingada, o filho daquele amor foi cortado da terra. Pórcia não resiste mais,
perde a consciência e deixa-se levar pelos homens, vai na garupa do
cavalo de seu pai. Seus olhos sem brilho fitam a casa onde ficou o cadáver
retalhado do filho. E de súbito a sua voz atroa, na floresta, clamando a
Leolino vingança para o filho inocente, pedindo a morte de seus assassinos.
Ao entardecer, Leolino chega com Exupério. Vem a galope, saudoso da mulher e do
filho. Quando se aproxima da casa, o silêncio absoluto fá-lo suspeitar de algo.
O que presencia enraivece-o e machuca-lhe o coração. Encontram os corpos dos
capangas, um após o outro, mortos, a casa saqueada, mas não tem ainda
conhecimento do que acontecera com o filho.
Um dos cabras que estava apenas ferido arrasta-se até
ele e conta tudo o que viu. Correm Leolino e Exupério para onde se encontram os
restos do menino retalhado a facão, choram e juram vingança. As guerras das
famílias assumem proporções jamais vistas no sertão. Leolino desistiu de tudo,
dedicando-se à vingança. Mata Manoel Justiniano, da prole dos Mouras, um dos
assassinos de seu filho, mas não para por aí, tem sede de sangue. Exupério
exímio atirador−nunca errava o alvo – entrega-se de corpo e alma à vingança do
irmão e mata um Medrado e três cabras do seu bando.
Os Castros e seus aliados não se descuidavam, revidavam liquidando a gente dos
Ganguçus, procurando encontrar Leolino. Certa vez, encontram-no e
prenderam-no, mas Exupério vinha por perto com seus homens e a sua
pontaria de exímio atirador, afamado em toda região, salvou o irmão, liquidou
vários inimigos e fugiram os dois.
Leolino morreu no interior de Minas Gerais, atirado pelas costas, por um cabra
que pertencia aos Mouras. Mouras, Medrados e Castros continuaram a cair
sob os clavinotes de Exupério e seus seguidores, agora, na vingança da morte do
irmão. A luta se prolongou, o sertão banhou-se de sangue.
Essa é
a síntese da história do amor de um casal de jovens que rompeu com todas as barreiras
que impediam seu amor e que por isso morreram. Parte dessa história se passou
aqui na região de Caetité e em Bom Jesus do Campo Seco, atual Brumado.
Bibliografia:
O texto
é uma síntese transcrita da história narrada no livro Sinhazinha de Afrânio Peixoto
e ABC de Castro Alves de Jorge Amado.
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