segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O AMOR (TRÁGICO) DE PÓRCIA E LEOLINO

No sertão baiano


 Antonio Novais Torres



PÓRCIA

“De Pórcia te comove a bela história
O exemplo de ternura.
Mas eu sei que dispensas a alta glória
De seguir teu marido à sepultura.”

Do poeta cearense Eurico Facó




            Pórcia era uma recatada e tímida donzela da família feudal dos Castros que, por amor a Leolino, um rude e valente homem da família Canguçu, abandonou lar, família, conforto e honra, tornando-se a heroína do mais dramático idílio do sertão.

            O Major Silva Castro, desgostoso com a carreira militar, tornou-se um senhor feudal do sertão, proprietário de fazendas em Caetité e Curralinho, onde a família costumava passar as férias e recebia visitas de estudantes vindos da capital.



            Assim tem início o idílio de Pórcia e Leolino: o Major Silva Castro manda as filhas solteiras passearem nas fazendas do alto sertão de Caetité. Lá se demoraram por algum tempo, quando veio a seca as moças tiveram que tomar o caminho de volta, indo em direção à fazenda Cabeceiras, região que não tinha sido atingida pela seca e onde o major as esperava, as quais foram conduzidas por um irmão do major de nome Luiz Antônio.

            A viagem foi realizada por etapas, de pouso em pouso pelas fazendas do itinerário pertencentes a amigos do major. Oportunidade em que as moças aproveitavam a estada para promover festas, bailes, folguedos e jogos, sem nenhuma preocupação com o flagelo da seca− caatinga ressequida, gado morrendo, homens em fuga pela fome e falta d’água, tudo pela inclemência do sol abrasador do sertão impiedoso. Nessas circunstâncias chegaram à fazenda do Capitão Inocêncio Pinheiro Canguçu, fazendeiro amigo e companheiro de armas do Major Silva Castro.

            O capitão, em nome da amizade à família dos Castros promoveu festas e tudo fez com o intuito de recepcionar e agradar, demonstrando a hospitalidade sertaneja. Foram dias de muitas alegrias, festas e folguedos para esquecerem a inclemência da seca. Enquanto isso, o Capitão Inocêncio e Luís Antônio discutia e analisava os prejuízos da seca, os horrores da falta de chuva que castigava o sertão. O Capitão também narrava para as meninas as aventuras, heroísmo e proezas do major, chefe do batalhão que sob seu comando contou com a simpatia, amizade e lealdade dos seus soldados. As moças ficaram encantadas com essas histórias. Ficaram mais encantadas ainda com os galanteios dos rapazes Canguçus.

         

   Pórcia sentia no corpo e no coração, um frio estranho, quando seus olhos negros cruzavam com os olhos inquietos de Leolino Canguçu. Jovem forte, árdego e insinuante, fogoso como um cavalo daqueles que ela vira em Caetité. Um jovem alegre, descontraído e ao mesmo tempo sério, a depender das circunstâncias e do sentimento do seu coração.  Sentia-se demasiadamente atraída por Leolino. Entretanto, sabia ser impossível amá-lo, ainda que o achasse belo e sedutor, por ser casado. Embora tenha sido um casamento de família, sem que ambos tivessem feito a escolha. Por outro lado, o rapaz sentia não ter, nos olhos, da esposa   a doçura e as promessas de amor que existiam nos olhos da menina dos Castros. Havia, porém, entre eles, a barreira da lei da honra do sertão e, se rompida e desrespeitada, esse código de honra era severamente vingado.

            Em certa oportunidade, um frio invade o coração de Pórcia, deitada numa rede, sob o luar  do céu límpido da fazenda. Em devaneios, um frio nas mãos, um desejo indefinido se apossa do seu corpo, enquanto os outros, lá dentro da casa, brincam de berlinda. Distingue a voz e o riso de Leolino, cerrando os olhos para melhor percepção, fazendo deduções da figura do bem-amado, impedido de possui-la por estar ligado a outra pelos laços da lei e de não poder dizer do seu amor.

            Pórcia, neste ínterim, estremece na rede. Surpreende-se com os passos que se aproximam, nem ouve a respiração ofegante e precipitada. Sente apenas uns lábios tocarem os seus num frenesi inexplicável e delirante de um beijo demorado que advinha ser da boca de Leolino, áspera, veludosa, brutal e cariciosa. Deixa-se conquistar sem palavras e ele a olha e admira contemplando-a num encantamento do luar que cai sobre a rede.

            Quando ele diz que a ama, Pórcia se recorda da lei do sertão, de que a infidelidade e o adultério são punidos com severidade, com vingança de morte. Lembra-lhe a esposa, os pais, as famílias, tudo que poderão falar deles e censurá-los. Em resposta, ele a beija de novo, acariciando-a levemente como a luz do luar. É a primeira vez que se falam como amantes e ouve dele com detalhes da imaginação de sertanejo, um plano de fuga, jurando que esse amor será para sempre um do outro. Pórcia se encoraja, não teme mais a lei de honra do sertão, não pensa no sofrimento da família dela (mãe, pai, irmãs), nem no da esposa de Leolino. Recorda-se somente dos beijos, da boca suave e doce, das carícias de suas mãos. É o amor que lhe invade o coração, suplantando a razão.

            Dias depois, partem todos: o tio Luiz Antônio e os ‘cabras’ da comitiva rumo a Curralinho. Leolino, premeditado, antecipa-se com pretexto de negócios em outra localidade. As despedidas da fazenda e dos Canguçus são cheias de emoção e saudades.

            O Capitão Inocêncio envia ao amigo Major Silva Castro suas recomendações e presente de um bom vinho, despede-se calorosamente das moças com respeitoso beijo na testa. A comitiva parte ao encontro do major que a espera ansiosamente pela saudade e por saber das notícias da seca e dos prejuízos. Com a pressa de chegar, não se faz mais nenhuma parada. Os animais estão cansados, exaustos e suados pelo esforço. Os cabras tocam os cavalos para andarem mais depressa, pressentindo uma tempestade. Enquanto isso na casa dos Castros o preparativo para a recepção da comitiva é movimentado num entra e sai de expectativa e com todo tipo de comida.

            Pórcia é a única que está distante de tudo. Olhos absortos e perdidos na escuridão da noite. O pensamento no arrebatado rapaz, indagando-se: “será que não virá?” Leolino não faltaria, era homem de palavra, fibra e temperamento de sertanejo. Surge então, de surpresa, Leolino, cujo encontro Luiz Antônio pensa ser casual e quando se dirige para os cumprimentos, os clavinotes são apontados e os homens da comitiva imobilizados. Leolino toma Pórcia, coloca-a na garupa do seu cavalo e partem indo esconder o seu amor num lugar bem longe.

             Pórcia se enche de contentamento, abraça a cintura do seu homem que galopa na pressa de possuí-la o quanto antes. Chegam finalmente a um rancho pobre,  circundado por capangas de armas em punho e punhal à altura do peito para protegê-los. Leolino a conduz nos braços para a tosca cama que será o seu ninho de amor e se enchem de carícias e de amor. Aí passam a viver, longe de todos e protegidos por um pequeno grupo de jagunços.

            Delirantes de amor, Leolino raramente deixa a casa, por receio de vingança dos Castros e pelo desejo ardente de estar sempre junto à sua amada que carrega no ventre um filho seu fruto do amor livre e arrebatador. A vida continua em sua rotina normal, é uma festa permanente ao som dos trinados dos pássaros e das palavras de amor sussurradas pelos lábios do fervoroso amante.

            Na casa dos Castros, com a notícia do rapto de Pórcia, não houve mais festas. O Major Castro deixou que as filhas expressassem os seus sentimentos em lágrimas e que a esposa se desesperasse. Em seus olhos não brotaram sequer uma lágrima, de sua boca se ouviu sequer uma palavra. Reuniu o irmão, os parentes próximos, aceitou a aliança dos Mouras, dos Medrados, famílias que odiavam os Canguçus e partiu para a guerra da vingança.

             Enquanto procuravam  acercar-se da casa onde Leolino e Pórcia viviam e escondiam o seu amor, uma criança já havia nascido uma linda criança que era a vida dos pais e viera completar aquela felicidade.

      Um dia, porém, Leolino e Exupério, enganados com a calma que reinava nos últimos dias, certos de que os Castros e seus aliados tinham desistido da vingança. Ingenuamente partem para um negócio de pouca demora.

      Pórcia, fica  guardada pelos “cabras”, brinca com o filho a ensinar-lhe as primeiras palavras para fazer uma surpresa a Leolino quando chegasse. Eis que rompe um tiroteio. Ela observa da porta e vê que os capangas resistem ao ataque, mas vê também que os inimigos são muitos, seu pai à frente, comandando o combate. Pressentindo que Exupério e Leolino não chegariam a tempo de socorrê-la, envolve o filho nos braços protetores e tenta partir pelos campos. É tarde, porém, os seus guardiões já não respondem ao tiroteio, estão dizimados, deram suas vidas por esse amor.

      Os homens dos Castros, dos Mouras e Medrados invadem a casa, destroem tudo que encontram. Pórcia vê rostos conhecidos,  que foram  amigos e que agora, após o combate e a vitória, estão endurecidos e, embrutecidos,  olham-na como a uma inimiga. Querem levá-la, ela resiste. Seu pai não pronuncia uma única palavra, não a olha sequer.  Manda que a levem e ela, então,  desprendendo-se dos braços que a seguram, parte para o quarto de onde volta com a criança. Apresenta ao Major Silva Castro o seu neto, o filho daquele amor condenado.

      Seus olhos suplicam piedade, a criança ri. Os Mouras, os Medrados, os cabras se afastam, deixam que o pai e,  a filha, decidam a questão. Mas é preciso cumprir a lei do sertão de punir o adultério, lavar a honra dos ofendidos e desfeiteados porque aquele filho ilegítimo será sempre um insulto à honra dos Castros.

      O Major Silva Castro faz um sinal aos cabras, eles tomam a criança (sorria a criança...) e, à vista da mãe que enlouquece, retalham-na a facão. A lei está vingada, o filho daquele amor foi cortado da terra. Pórcia não resiste mais, perde a consciência e  deixa-se levar pelos homens, vai na garupa do cavalo de seu pai. Seus olhos sem brilho fitam a casa onde ficou o cadáver retalhado do filho. E de súbito a sua voz atroa, na floresta, clamando a Leolino vingança para o filho inocente, pedindo a morte de seus assassinos.

      Ao entardecer, Leolino chega com Exupério. Vem a galope, saudoso da mulher e do filho. Quando se aproxima da casa, o silêncio absoluto fá-lo suspeitar de algo. O que presencia enraivece-o e machuca-lhe o coração. Encontram os corpos dos capangas, um após o outro,  mortos, a casa saqueada, mas não tem ainda conhecimento do que acontecera com o filho.

      Um dos cabras que estava apenas ferido  arrasta-se até ele e conta tudo o que viu. Correm Leolino e Exupério para onde se encontram os restos do menino retalhado a facão, choram e juram vingança. As guerras das famílias assumem proporções jamais vistas no sertão. Leolino desistiu de tudo, dedicando-se à vingança. Mata Manoel Justiniano, da prole dos Mouras, um dos assassinos de seu filho, mas não para por aí, tem sede de sangue. Exupério exímio atirador−nunca errava o alvo – entrega-se de corpo e alma à vingança do irmão e  mata um  Medrado e três cabras do seu bando.

      Os Castros e seus aliados não se descuidavam, revidavam liquidando a gente dos Ganguçus, procurando encontrar Leolino. Certa vez, encontram-no  e  prenderam-no, mas Exupério vinha por perto com seus homens e a sua pontaria de exímio atirador, afamado em toda região, salvou o irmão, liquidou vários inimigos e fugiram os dois.

      Leolino morreu no interior de Minas Gerais, atirado pelas costas, por um cabra que pertencia aos Mouras.  Mouras, Medrados e Castros continuaram a cair sob os clavinotes de Exupério e seus seguidores, agora, na vingança da morte do irmão. A luta se prolongou, o sertão  banhou-se de sangue.

Essa é a síntese da história do amor de um casal de jovens que rompeu com todas as barreiras que impediam seu amor e que por isso morreram. Parte dessa história se passou aqui na região de Caetité e em Bom Jesus do Campo Seco, atual Brumado.

Bibliografia:
O texto é uma síntese transcrita da história narrada no livro Sinhazinha de Afrânio Peixoto e ABC de Castro Alves de Jorge Amado.      


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