A
jangada saiu
Com
Chico, Ferreira e Bento.
E a
jangada voltou só.
Dorival
Caymmi
Jangada em Tibau no Rio Grande do Norte.
Jangada tradicional, modelo físico (miniatura)
Jangada refere-se, entre outros significados, a
uma embarcação de madeira utilizada por pescadores artesanais da Região
Nordeste do Brasil.
A
forma da jangada incorpora uma série de interessantes avanços da ciência
artesanal neolítica -
que realizava experimentos diretos, nos materiais e a partir dos fenômenos
presenciados, em "projetos de pesquisa" totalmente guardados na
memória dos artesãos.
Em
especial sua vela triangular
envolve uma série de efeitos avançados, relacionados à dinâmica dos fluidos.
Também conhecida como "vela latina", ela permite navegar contra
o vento,
aproveitando a diferença de pressão do ar, que se forma entre sua "face
externa" (aquela que se torna convexa pela pressão interna do vento) e sua
"face interna" (aquela que se torna côncava, lado em que se posta o
navegante). As grandes embarcações também usaram a vela latina, mas de modo
limitado, pois o seu emprego bem sucedido depende crucialmente da presença do
navegante, que deve estar atento aos movimentos do vento: as diferenças de
pressão são ativamente manipuladas por todo o tempo de navegação contra o
vento. Os mesmos princípios são usados para manter os aviões no ar, graças à
geometria de suas asas.
No
caso da jangada, há uma graciosa curva quase-parabólica na parte superior do
triângulo, e outra mais estendida e curta, abaixo. Essa assimetria se deve à
altura de manipulação do mastro, que gira suavemente - dessa vez usando o
princípio mecânico da alavanca - em torno de seu eixo.
Sua
tecnologia de construção consiste no emprego hábil de materiais como madeiras
de flutuação (como a balsa paraense,
e outras espécies de difícil obtenção na atualidade), tecidos e cordas
artesanais. A jangada tradicional não possui elementos em metal (como pregos,
braçadeiras, etc); toda a sua estrutura é totalmente fixada por encaixes e
amarrações com cordas de fibras selvagens.
A
jangada é feita, tipicamente, com 6 paus: 2 no centro (chamados de
"meios"), 2 seguintes, dispostos simetricamente (chamados
"mimburas", palavra de origem tupi), e 2 externos, chamados de
"bordos". Os 4 paus mais centrais (meios e mimburas) são unidos por
cavilhas de madeira mais dura que a desses paus. Já os paus de bordo são
encavilhados nos mimburas, de modo a ficarem um pouco mais elevados.
Sobre
essa armação básica, instalam-se 2 bancos de madeira (cada qual respectivamente
suportado por 4 elegantes hastes também de madeira, presos aos mimburas. Sobre
essas hastes fixa-se uma tábua de madeira rija. O banco mais central, ou banco
"de vante", apóia o mastro da jangada. O outro banco, da ré, também é
chamado de banco "do mestre", pois nele trabalha o diretor da jangada
(que, com um remo, a dirige). O remo do mestre se encaixa entre o mimbura e um
dos paus do meio (o meio de boreste). Há ainda uma outra abertura entre os dois
paus do meio, para a passagem da "tábua de bolina". Essa tábua pode
ser habilmente graduada em altura (o quanto é enfiada no mar) e inclinação (de
forma mais limitada, no plano medial da embarcação). A tábua de bolina reduz o
caimento da jangada quando ela navega com a proa bem cingida à linha do vento:
isso é "navegar à bolina" (palavra que, por sua vez, vem do inglês
"bowline").
Todos
os elementos da jangada tradicional são feitos artesanalmente, desde o mastro à
vela, das cordas ao banco de navegação, redes de pesca, anzóis, âncora e
samburás (cestos para guardar peixes e pertences).
Âncora
de jangada
Sua
tripulação, nas versões da jangada tradicional - ou seja, o modelo mais comum
que conhecemos desde o início do século XX -, é de três a cinco pessoas. Essa
turma trabalha num espaço de aproximadamente 5 a 7 metros, em média (na maior
extensão, embora haja jangadas maiores de 8 metros), por 1,4 a 1,7 metros, na
menor extensão.
Suas
dimensões são resultado de uma série de "limitantes de projeto"
náutico, entre os quais: o tamanho dos troncos disponíveis, a resistência dos
encaixes e amarrações, a força necessária para movê-la sobre as ondas, o
tamanho das velas e o empuxo do vento sobre elas, a força humana necessária
para que apenas um homem (por vez, rotineiramente) a manobre, entre outros. Sua
ergonomia é engenhosamente composta e administrada, se compreendermos essa
embarcação artesanal com os olhos dos projetistas modernos.
Os
pescadores tradicionais sempre obedeceram a regras bem conhecidas de uso das
marés, dos regimes de ventos, das correntes, da sazonalidade da pesca. Em
função disso, suas incursões no mar variam bastante quanto ao tempo de
permanência, ao trajeto navegado, e ao tipo de pesca que conseguem. Um período
de permanência comum era de três dias a uma semana (algumas vezes mais, como
relatam os antigos pescadores) no mar alto, a até 120 quilômetros da costa.
Essa duração é cada vez mais rara, e os jangadeiros dificilmente ultrapassam os
três dias, na atualidade, com incursões de até 50 quilômetros distanciados da
costa. Da mesma forma, as incursões de grupos de jangadas também são cada vez
mais raras, sendo mais freqüente a pesca de uma turma isolada, numa única
jangada.
Ainda
assim, em vários pontos do litoral cearense há corridas de jangadas, sendo
muito famosa a que ocorre anualmente na região do porto do Mucuripe (na capital
do Estado do Ceará, Fortaleza).
Dezenas de jangadas participam dessas competições populares, num espetáculo sem
paralelo no extenso litoral brasileiro.
O surgimento da jangada no isolado Nordeste Brasileiro
Como
a jangada chegou ao Brasil? Ou se ela já estava aqui, seria como parte da
cultura dos povos indígenas?
A
jangada vem para o Brasil como
parte da rica troca havida entre a Índia, a África, a China e o Japão, sobretudo nos primeiros dois séculos da colonização do Brasil, pelo povo português.
Incorpora ainda técnicas indígenas de corte de madeiras e extração das fibras
de cordoamentos. Vem com as pessoas envolvidas nesse tráfico de outras pessoas,
de bens, de animais, de plantas, de saberes - e, claro, especialmente o saber
dos pescadores do Oceano Índico e
das costas do Moçambique,
que usavam barcos artesanais semelhantes às jangadas brasileiras - mas não
iguais.
A
palavra "jangada" trai essa origem asiática: vem de "changadam",
palavra malaiala (língua dravídica da costa do Malabar, no estado indiano de Kerala) e, mais anteriormente, do sânscrito.
Muito antes de ser uma embarcação típica de qualquer zona do Brasil, o termo
sempre correspondeu a uma embarcação rudimentar feita com troncos de madeira.
Parece,
aos olhos de hoje, que as jangadas somente surgem no trecho da costa do
Nordeste que vai do Rio Grande do Norte ao Piauí por
curiosas razões históricas, pois poderíamos ter jangadeiros em todo o litoral
do Brasil, desde o início da Colônia brasileira.
Isso
se deveu, sobretudo, à sistemática eliminação de todas as formas de navegar que
não fossem controladas pela Coroa portuguesa, em eficiente vigor desde o século XVII,
com o início da exploração das Minas Gerais (centro-sul
do Brasil), para evitar o contrabando do ouro. Essa faixa do litoral nordeste brasileiro era
despovoada e imprópria para portos dos barcos transatlânticos à vela, pois é
varrida pela poderosa corrente oceânica da Guiana, que dificultava terrivelmente a chegada de
barcos vindos da Europa.
Os
primeiros jangadeiros lançaram seus barcos ao mar em meio ao abandono desses
séculos de solidão e isolamento, ainda que fossem parte das diversas levas
migrantes que povoaram o interior nordestino desde meados do século XVII,
trazendo e cultivando o gado cuja carne alimentava os trabalhadores da
mineração.
Com
sua admirável capacidade de navegar contra o vento, e de usar a força do vento
para sobrepujar a corrente oceânica, a jangada encontrou nesse trecho do
litoral brasileiro uma situação ideal, até a chegada dos barcos motorizados,
que viabilizam os (até hoje curiosamente poucos) portos surgidos desde o século XIX.
O
conhecimento da construção dessa família de embarcações artesanais está em
extinção: embora ainda haja colônias de pescadores remanescentes das primeiras
comunidades que ocuparam o litoral brasileiro (sobretudo no litoral do Estado
do Ceará e do Rio Grande do Norte), praticamente não se constrói mais a jangada
tradicional, com troncos de madeira de flutuação, as jangadas de troncos. As
atuais jangadas são feitas em pranchas de madeira industrializada ou utilizando
instrumentos de corte mecanizado - as jangadas de tábuas.
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