sexta-feira, 9 de maio de 2014

DORIVAL CAYMMI (1914-2008)

(É doce morrer no mar...)


Por JOACI GÓES

O Brasil continua celebrando o centenário de Caymmi, ocorrido a 30 de abril. Nascido em Salvador, ele
morreu no Rio de Janeiro, em 16 de agosto de 2008, às seis horas da manhã, vitimado por uma crise de insuficiência renal e falência múltipla dos órgãos, em consequência de um câncer renal que o perseguia há nove anos. 
Seu bisavô paterno, Caimmi, sem o y, chegou ao Brasil, vindo da Itália, para trabalhar na recuperação do Elevador Lacerda, em Salvador. O violão foi o instrumento que acompanhou sua voz forte e calorosa, desde o início de sua vida profissional, aos vinte anos, na composição e execução de um cancioneiro que o imortalizou como cultor do samba e da bossa nova. Ele foi também pintor e ator. 
Seu pai, Durval Henrique, nas horas de folga do serviço público, tocava violão, piano e bandolim, enquanto a mãe, mestiça de africana com português, cantava durante as atividades domésticas. Ainda pequeno Dorival participava, como baixo-cantante, em coro de igreja. 
Aos treze anos, interrompeu os estudos para trabalhar como office-boy no jornal O Imparcial. Dois anos depois, com o fechamento do jornal, passa a vender bebidas. Com a música no sangue e na alma, compõe a primeira canção, No Sertão, aos dezesseis anos. A estreia como cantor e violonista, ocorreu na Rádio Clube da Bahia, aos vinte anos. 
Em 1936, ganhou o concurso de músicas de carnaval com o samba A Bahia também dá. Ao completar vinte e quatro anos, vai para o Rio, com o propósito de trabalhar como jornalista e cursar Direito. Logo, começou a cantar na Rádio Tupi, onde interpretou, pela primeira vez, o legendário O que é que a baiana tem, canção com que Carmen Miranda, a Pequena Notável, vestida de baiana estilizada, alcançou o estrelato, no filme de 1938, Banana da terra.    
Do casamento com a cantora mineira Stella Maris, nome artístico de Adelaide Tostes, nasceram os filhos Dori, Danilo e Nana, todos artistas e Caymmi como ele.  
A linguagem corporal de Caymmi é expressiva de grande tranquilidade. Na sua voz persuasiva, a morte no mar, que ele tanto amou, aparece como uma ocorrência natural, simples, suave, doce. Sua obra está impregnada da vida a um tempo romântica e trágica dos pescadores negros, como se vê em É doce morrer no mar, Canoeiro, Pescaria, A jangada voltou só, Histórias de pescadores, O mar, e muitas outras composições. Com Oração de Mãe Menininha, rendeu sua homenagem maior ao Candomblé.         
Os hábitos, costumes e tradições do povo baiano foram a fonte primária de sua inspiração, tendo a música negra exercido forte influência sobre ele, levando-o a desenvolver um estilo inconfundível de compor e cantar, como destacou Chico Buarque, valorizando a espontaneidade, a sensualidade e a riqueza melódica dos seus ritmos e versos. Nenhum outro compositor brasileiro produziu tantas obras antológicas do cancioneiro popular, a exemplo de Saudade da Bahia, Rosa Morena, Maracangalha, O Dengo que a Nega Tem, Samba da minha Terra, Doralice, Marina, Modinha para Gabriela, Saudade de Itapuã... 
Em várias canções, como em Maracangalha, de 1956, e Saudade da Bahia, de 1957, a Bahia aparece como um lugar cheio de exotismo e magia, conforme se encontra em muitos textos entre a última década do Século XIX e as três primeiras do Século XX, onde são frequentes as referências a elementos da cultura africana, como a religião, o vestuário, o ritmo, as danças e a comida, com um rico universo de ingredientes e iguarias, como o dendê, o acarajé, o efó, o vatapá, a farofa, componentes básicos do famoso caruru.
Homenageando o grande cantor do mar que, despedindo-se do pai e da mãe, pegou o “Ita no Norte e foi pro Rio morar”, Gilberto Gil, amigo e ex-genro, disse, cantando, que “Dorival é ímpar, Dorival é um Buda nagô”. Tom Jobim, por sua vez, disse: “O Dorival é um gênio”. Se eu pensar em música brasileira, eu vou sempre pensar em Dorival Caymmi
Ele é uma pessoa incrivelmente sensível, uma criação incrível. Isso sem falar no pintor, porque o Dorival também é um grande pintor”. Caetano Veloso não deu por menos: “Eu escrevi 400 canções e Dorival Caymmi 70. Mas ele tem 70 canções perfeitas e eu não”. 
Na verdade, Caymmi deixou um pouco mais de cem canções, em seus 94 anos. Explica-se essa produção numericamente pequena, relativamente à sua longevidade, porque seu método de compor oscilava entre a produção de um só impulso criativo e um burilar intermitente que poderia levar anos em torno de apenas uma composição. O resultado, porém, é o que todos conhecemos: obras primas.      
 A canção O que é que a baiana tem?, além  de catapultar Carmen Miranda para a fama, (foi dele a sugestão para que ela, vestida de baiana estilizada incorporasse e projetasse internacionalmente o perfil da mulher baiana como a expressão máxima de dengosa feminilidade) exerceu grande influência na música popular brasileira, sendo imitada por compositores como Pedro Caetano, Joel de Almeida e Raul Torres. Sem dúvida, não há quem possa rivalizar com Caymmi na fixação da boa imagem da Bahia mundo afora. 
Os que atribuem a Caymmi a responsabilidade pela formação da imagem do baiano como preguiçoso, avesso ao trabalho, equivocam-se. Em primeiro lugar porque essa imagem é anterior a ele. Em segundo porque a valorização hedonística que faz de certos requisitos fisiológicos, como o sono, o bem comer, o amor e a alegria de viver não exclui a dureza da vida, como se vê da perigosa labuta dos pescadores que vão perigosamente ao mar. 
Seu personagem masculino mais conhecido, João Valentão, só descansa depois de cumpridos os deveres de assegurar o ganha-pão.
A afetuosa relação de Caymmi com a Bahia não foi afetada por um certo ressentimento que alimentou relativamente a alguns dos seus governantes. Queixava-se de não ter na terra natal que tanto amava e projetou, através de suas canções, o reconhecimento que lhe era tributado em outros estados. 
A venda, porém, da casa no Rio Vermelho que recebeu da Bahia, durante o governo Luís Viana Filho, na década de 1970, nada teve a ver com esse ruído afetivo, como foi propagado. Ocorreu pela combinação de dois fatores: seus compromissos profissionais estarem sediados no eixo Rio-São Paulo, e a família da mulher, Stella, que não viajava de avião, viver em Minas Gerais. Diante da impossibilidade de conciliar os compromissos no triângulo Rio-Salvador-Belo Horizonte, Caymmi optou pela venda.
É preciso dizer mais para justificar sua presença em meu livro, no prelo, como uma das 51 personalidades mais marcantes do Brasil?  

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