(É doce morrer no mar...)
Por
JOACI GÓES
O Brasil continua
celebrando o centenário de Caymmi, ocorrido a 30 de abril. Nascido em Salvador,
ele
morreu no Rio de Janeiro, em 16 de agosto de 2008, às seis horas da manhã,
vitimado por uma crise de insuficiência renal e falência múltipla dos órgãos,
em consequência de um câncer renal que o perseguia há nove anos.
Seu bisavô
paterno, Caimmi, sem o y, chegou ao Brasil, vindo da Itália, para trabalhar na
recuperação do Elevador Lacerda, em Salvador. O violão foi o instrumento que
acompanhou sua voz forte e calorosa, desde o início de sua vida profissional,
aos vinte anos, na composição e execução de um cancioneiro que o imortalizou
como cultor do samba e da bossa nova. Ele foi também pintor e ator.
Seu pai,
Durval Henrique, nas horas de folga do serviço público, tocava violão, piano e
bandolim, enquanto a mãe, mestiça de africana com português, cantava durante as
atividades domésticas. Ainda pequeno Dorival participava, como baixo-cantante,
em coro de igreja.
Aos treze
anos, interrompeu os estudos para trabalhar como office-boy no jornal O
Imparcial. Dois anos depois, com o fechamento do jornal, passa a vender
bebidas. Com a música no sangue e na alma, compõe a primeira canção, No Sertão,
aos dezesseis anos. A estreia como cantor e violonista, ocorreu na Rádio Clube
da Bahia, aos vinte anos.
Em 1936,
ganhou o concurso de músicas de carnaval com o samba A Bahia também dá. Ao
completar vinte e quatro anos, vai para o Rio, com o propósito de trabalhar
como jornalista e cursar Direito. Logo, começou a cantar na Rádio Tupi, onde
interpretou, pela primeira vez, o legendário O que é que a baiana tem, canção com
que Carmen Miranda, a Pequena Notável, vestida de baiana estilizada, alcançou o
estrelato, no filme de 1938, Banana da terra.
Do
casamento com a cantora mineira Stella Maris, nome artístico de Adelaide
Tostes, nasceram os filhos Dori, Danilo e Nana, todos artistas e Caymmi como
ele.
A linguagem
corporal de Caymmi é expressiva de grande tranquilidade. Na sua voz persuasiva,
a morte no mar, que ele tanto amou, aparece como uma ocorrência natural,
simples, suave, doce. Sua obra está impregnada da vida a um tempo romântica e
trágica dos pescadores negros, como se vê em É doce morrer no mar, Canoeiro,
Pescaria, A jangada voltou só, Histórias de pescadores, O mar, e muitas outras
composições. Com Oração de Mãe Menininha, rendeu sua homenagem maior ao Candomblé.
Os hábitos,
costumes e tradições do povo baiano foram a fonte primária de sua inspiração,
tendo a música negra exercido forte influência sobre ele, levando-o a
desenvolver um estilo inconfundível de compor e cantar, como destacou Chico Buarque,
valorizando a espontaneidade, a sensualidade e a riqueza melódica dos seus
ritmos e versos. Nenhum outro compositor
brasileiro produziu tantas obras antológicas do cancioneiro popular, a
exemplo de Saudade da Bahia, Rosa Morena, Maracangalha, O Dengo que a Nega
Tem, Samba da minha Terra, Doralice, Marina, Modinha para Gabriela, Saudade de
Itapuã...
Em várias
canções, como em Maracangalha, de 1956, e Saudade da Bahia, de 1957, a Bahia
aparece como um lugar cheio de exotismo e magia, conforme se encontra em muitos
textos entre a última década do Século XIX e as três primeiras do Século XX,
onde são frequentes as referências a elementos da cultura africana, como a
religião, o vestuário, o ritmo, as danças e a comida, com um rico universo de
ingredientes e iguarias, como o dendê, o acarajé, o efó, o vatapá, a farofa,
componentes básicos do famoso caruru.
Homenageando
o grande cantor do mar que, despedindo-se do pai e da mãe, pegou o “Ita no
Norte e foi pro Rio morar”, Gilberto
Gil, amigo e ex-genro, disse, cantando, que “Dorival é ímpar, Dorival é um Buda
nagô”. Tom Jobim, por sua vez,
disse: “O Dorival é um gênio”. Se eu
pensar em música brasileira, eu vou sempre pensar em Dorival Caymmi.
Ele é uma
pessoa incrivelmente sensível, uma criação incrível. Isso sem falar no pintor,
porque o Dorival também é um grande pintor”. Caetano Veloso não deu por menos:
“Eu escrevi 400 canções e Dorival Caymmi 70. Mas ele tem 70 canções perfeitas e
eu não”.
Na verdade,
Caymmi deixou um pouco mais de cem canções, em seus 94 anos. Explica-se essa
produção numericamente pequena, relativamente à sua longevidade, porque seu
método de compor oscilava entre a produção de um só impulso criativo e um
burilar intermitente que poderia levar anos em torno de apenas uma composição.
O resultado, porém, é o que todos conhecemos: obras primas.
A
canção O que é que a baiana tem?,
além de catapultar Carmen Miranda para a fama, (foi dele a sugestão para
que ela, vestida de baiana estilizada incorporasse e projetasse
internacionalmente o perfil da mulher baiana como a expressão máxima de dengosa
feminilidade) exerceu grande influência na música popular brasileira, sendo
imitada por compositores como Pedro Caetano, Joel de Almeida e Raul Torres. Sem
dúvida, não há quem possa rivalizar com Caymmi na fixação da boa imagem da
Bahia mundo afora.
Os que
atribuem a Caymmi a responsabilidade pela formação da imagem do baiano como
preguiçoso, avesso ao trabalho, equivocam-se. Em primeiro lugar porque essa
imagem é anterior a ele. Em segundo porque a valorização hedonística que faz de
certos requisitos fisiológicos, como o sono, o bem comer, o amor e a alegria de
viver não exclui a dureza da vida, como se vê da perigosa labuta dos pescadores
que vão perigosamente ao mar.
Seu
personagem masculino mais conhecido, João Valentão, só descansa depois de
cumpridos os deveres de assegurar o ganha-pão.
A afetuosa
relação de Caymmi com a Bahia não foi afetada por um certo ressentimento que
alimentou relativamente a alguns dos seus governantes. Queixava-se de não ter
na terra natal que tanto amava e projetou, através de suas canções, o
reconhecimento que lhe era tributado em outros estados.
A venda,
porém, da casa no Rio Vermelho que recebeu da Bahia, durante o governo Luís
Viana Filho, na década de 1970, nada teve a ver com esse ruído afetivo, como
foi propagado. Ocorreu pela combinação de dois fatores: seus compromissos
profissionais estarem sediados no eixo Rio-São Paulo, e a família da mulher,
Stella, que não viajava de avião, viver em Minas Gerais. Diante da
impossibilidade de conciliar os compromissos no triângulo Rio-Salvador-Belo
Horizonte, Caymmi optou pela venda.
É preciso
dizer mais para justificar sua presença em meu livro, no prelo, como uma das 51
personalidades mais marcantes do Brasil?
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