(Um vaticínio
confirmado...)
A magia de dona Flávia
14 de março
de 1985, 9 da noite. Janto com um punhado de amigos do Rio em meu apartamento
de deputado, na 202 Norte de Brasília: Alfredo Sirkis, vereador do PV, Clarinha
e Lúcio Abreu, jornalistas,
outros. De manhã, Tancredo Neves e Sarney tomam
posse como presidente e vice da República.
Mais que um
jantar, uma celebração. Sirkis na luta armada e no exílio, Lúcio e Clarinha na
resistência do Partidão, eu na cassação, todos lutamos por isso. De repente,
toca o telefone.
- Venha para
o Hospital de base. O Tancredo se internou e vai ser operado com urgência. É
grave.
É José
Aparecido, ministro da cultura já nomeado por Tancredo. Deixo minha irmã e meu
cunhado cuidando dos amigos, pego o carro, saio correndo.
E se
Tancredo morrer? Dói dentro. Há mais de trinta anos gosto dele, desde 1951, em
Minas, ele jovem e já importante deputado, eu repórter quase menino. Sou
testemunha: tinha cabelo. Lembro (-me) do seminário e rezo por ele.
***
Mas dona
Flávia não me deixa rezar em paz. Ela disse, garantiu que ele não ia tomar
posse. Com seu elegante turbante, os barangandãs rolando no braço e aquele
longínquo sorriso de eternidade, será que ela sabia mesmo?
É menos de
uma semana: oito de março, meu aniversário e de todas as mulheres do mundo, e
também dia de São João de Deus, padroeiro dos loucos, estávamos no hotel Lage
da Pedra, em Gramado, no Rio Grande do Sul, na Festa da Maçã, a convite da
Associação Brasileira dos exportadores de Maça.
Éramos seis,
com nossas mulheres: jornalistas Silvestre Gorgulho (folha do Meio Ambiente),
Carlos Monforte (TV Globo), Milano Lopes (estado de São Paulo), Cornélio Franco
(Estado de Minas), o empresário Joaquim Mesquita, de Brasília, e eu.
***
À noite,
quiseram comemorar meu aniversário, fomos comer fondue no bar-restaurante do
hotel. Chegaram o presidente da Associação da Maça, Mário José Batista, gauchão
com cara de terra e sol, e sua mulher, dona Flávia, com seu turbante,
balangandans e o sorriso de eternidade.
Sentada à
minha frente, fica sabendo que sou baiano:
- Gosto
muito da magia de sua terra. Estudo isso>
- A senhora trabalha com magia?
- A senhora trabalha com magia?
- Trabalhar,
não. Sou apenas interessada. Amanhã os senhores vão almoçar em nossa chácara,
aqui perto, e poderão ver meu gabinete, os globos, as cartas, os búzios. Não
sou profissional, não faço consultas. Apenas recebo amigos e conversamos sobre
a vida, magia, futuro.
O marido ao
seu lado, deu um discreto olhar de não gostar.
Dai a pouco,
surge o nome de Tancredo. Já baianamente de olho na magia dela, vejo claramente
que fica triste ao ouvir o nome de Tancredo. E ela percebe que percebi:
- Os
senhores são amigos de doutor Tancredo?
O marido
está preocupado:
- Flávia,
estamos aqui recebendo nossos amigos e comemorando o aniversário do Nery. Eles
todos são amigos do doutor Tancredo. Não vamos preocupá-los com isso.
Não sei, se
Silvestre ou Cornélio, os dois mineiros, um pergunta logo:
- Isso o
quê?
Dona Flávia
respira devagar e fala baixinho como uma extrema-unção:
- Ele não
vai tomar posse.
Deu um
branco na mesa. Quero saber:
- Golpe ou
morte?
- Não sei,
não tenho a menor ideia. Minhas fontes, todas, sem exceção, só dizem que o
doutor Tancredo não vai ser presidente. Por que, não sei.
O marido
mudou o assunto e dona Flávia voltou a seu ar de eternidade.
***
Mais de meia
noite, muito vinho e fondue, voltamos para o hotel. Uma das mulheres estava
indignada:
- Vocês não
vão publicar a história maluca dessa louca.
Ninguém
levou a sério. Fizemos um pacto de silêncio. Mas brinquei:
- Se ele não
tomar posse, conto a magia de dona Flávia.
No dia
seguinte almoço na casa de dona Flávia e seu marido. Logo na entrada, um leão
imenso, brabo, dentro de uma jaula, no meio do jardim. Com estranha sabedoria
não gostava de jornalista. Quando nos viu, avançou feroz sobre as grades, a
jaula balançando, corremos todos.
Ao lado da
bela casa ampla, cercada de jardins, o gabinete de dona Flávia, entupido de
magias: todos os mapas, cartas e búzios do mundo. E ela, gentil, meiga,
tranquila, mostrando:
- Olhem aqui
os globos, mapas, cartas, búzios. Em todos infelizmente está claro: o doutor
Tancredo não vai assumir. Por que, não sei.
***
Chego ao Hospital de Base com a lembrança de
dona Flávia me torturando. Na calçada, na portaria, corredores, saletas, até
dentro da sala de cirurgia, dezenas, centenas de políticos alvoroçados e
irresponsáveis.
Tancredo não
morreu de infecção hospitalar. Morreu de infecção política.
Depois da
morte, contei a magia de dona Flávia.
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