segunda-feira, 12 de maio de 2014

HISTÓRIAS DE SEBASTIÃO NERY

(Um vaticínio confirmado...)


A magia de dona Flávia
14 de março de 1985, 9 da noite. Janto com um punhado de amigos do Rio em meu apartamento de deputado, na 202 Norte de Brasília: Alfredo Sirkis, vereador do PV, Clarinha e Lúcio Abreu, jornalistas,
outros. De manhã, Tancredo Neves e Sarney tomam posse como presidente e vice da República.
Mais que um jantar, uma celebração. Sirkis na luta armada e no exílio, Lúcio e Clarinha na resistência do Partidão, eu na cassação, todos lutamos por isso. De repente, toca o telefone.
- Venha para o Hospital de base. O Tancredo se internou e vai ser operado com urgência. É grave.
É José Aparecido, ministro da cultura já nomeado por Tancredo. Deixo minha irmã e meu cunhado cuidando dos amigos, pego o carro, saio correndo.
E se Tancredo morrer? Dói dentro. Há mais de trinta anos gosto dele, desde 1951, em Minas, ele jovem e já importante deputado, eu repórter quase menino. Sou testemunha: tinha cabelo. Lembro (-me) do seminário e rezo por ele.
***
Mas dona Flávia não me deixa rezar em paz. Ela disse, garantiu que ele não ia tomar posse. Com seu elegante turbante, os barangandãs rolando no braço e aquele longínquo sorriso de eternidade, será que ela sabia mesmo? 
É menos de uma semana: oito de março, meu aniversário e de todas as mulheres do mundo, e também dia de São João de Deus, padroeiro dos loucos, estávamos no hotel Lage da Pedra, em Gramado, no Rio Grande do Sul, na Festa da Maçã, a convite da Associação Brasileira dos exportadores de Maça.
Éramos seis, com nossas mulheres: jornalistas Silvestre Gorgulho (folha do Meio Ambiente), Carlos Monforte (TV Globo), Milano Lopes (estado de São Paulo), Cornélio Franco (Estado de Minas), o empresário Joaquim Mesquita, de Brasília, e eu.
***
À noite, quiseram comemorar meu aniversário, fomos comer fondue no bar-restaurante do hotel. Chegaram o presidente da Associação da Maça, Mário José Batista, gauchão com cara de terra e sol, e sua mulher, dona Flávia, com seu turbante, balangandans e o sorriso de eternidade.
Sentada à minha frente, fica sabendo que sou baiano:
- Gosto muito da magia de sua terra. Estudo isso>
- A senhora trabalha com magia?
- Trabalhar, não. Sou apenas interessada. Amanhã os senhores vão almoçar em nossa chácara, aqui perto, e poderão ver meu gabinete, os globos, as cartas, os búzios. Não sou profissional, não faço consultas. Apenas recebo amigos e conversamos sobre a vida, magia, futuro.
O marido ao seu lado, deu um discreto olhar de não gostar.
Dai a pouco, surge o nome de Tancredo. Já baianamente de olho na magia dela, vejo claramente que fica triste ao ouvir o nome de Tancredo. E ela percebe que percebi:
- Os senhores são amigos de doutor Tancredo?
O marido está preocupado:
- Flávia, estamos aqui recebendo nossos amigos e comemorando o aniversário do Nery. Eles todos são amigos do doutor Tancredo. Não vamos preocupá-los com isso.
Não sei, se Silvestre ou Cornélio, os dois mineiros, um pergunta logo:
- Isso o quê?
Dona Flávia respira devagar e fala baixinho como uma extrema-unção:
- Ele não vai tomar posse.
Deu um branco na mesa. Quero saber:
- Golpe ou morte?
- Não sei, não tenho a menor ideia. Minhas fontes, todas, sem exceção, só dizem que o doutor Tancredo não vai ser presidente. Por que, não sei.
O marido mudou o assunto e dona Flávia voltou a seu ar de eternidade.
***
Mais de meia noite, muito vinho e fondue, voltamos para o hotel. Uma das mulheres estava indignada:
- Vocês não vão publicar a história maluca dessa louca.
Ninguém levou a sério. Fizemos um pacto de silêncio. Mas brinquei:
- Se ele não tomar posse, conto a magia de dona Flávia.
No dia seguinte almoço na casa de dona Flávia e seu marido. Logo na entrada, um leão imenso, brabo, dentro de uma jaula, no meio do jardim. Com estranha sabedoria não gostava de jornalista. Quando nos viu, avançou feroz sobre as grades, a jaula balançando, corremos todos.
Ao lado da bela casa ampla, cercada de jardins, o gabinete de dona Flávia, entupido de magias: todos os mapas, cartas e búzios do mundo. E ela, gentil, meiga, tranquila, mostrando:
- Olhem aqui os globos, mapas, cartas, búzios. Em todos infelizmente está claro: o doutor Tancredo não vai assumir. Por que, não sei.
***
 Chego ao Hospital de Base com a lembrança de dona Flávia me torturando. Na calçada, na portaria, corredores, saletas, até dentro da sala de cirurgia, dezenas, centenas de políticos alvoroçados e irresponsáveis.
Tancredo não morreu de infecção hospitalar. Morreu de infecção política.

Depois da morte, contei a magia de dona Flávia.

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