Conto de Artur Azevedo
(foi preservada a ortografia original)
Era a primeira vez que o Getúlio vinha ao Rio de
Janeiro. Conquanto filho do barão de Batatais, lavrador abastado, jamais se
divertira. Depois de formado em Direito, sabe Deus como, na capital de São
Paulo, voltara para a fazenda do pai, onde nasceu, e onde esperava morrer.
Aos vinte e oito anos chegaram-lhe desejos de ver mundo.
Falou ao barão de uma viagem à Europa. - Para que Europa? - disse o velho. -
Vai ao Rio de Janeiro, que ainda não conheces, e é uma capital digna de ser
vista. A Europa irás depois comigo, tua mãe e tua irmã se Deus nos der vida e
saúde. - O bacharel contentou-se, pois, com o Rio de Janeiro.
Quando se despediu do filho, na plataforma da estação,
o barão recomendou-lhe, pela centésima vez, que tivesse muito cuidado com as
más companhias, o que não impedia que o rapaz, aqui chegado, se entregasse
confiadamente ao Alípio.
É verdade que o Alípio tinha exterioridades que
enganavam, e não vivia senão à custa delas. Delas e do próximo. Era um rapaz da
moda, mas passou pelo serviço antropométrico e ainda hoje tem o retrato na
polícia.
Ele e o paulista encontraram-se dir-se-ia que por
acaso, sentados à mesma mesa, para tomar café, num botequim da rua do Ouvidor,
e quando as duas colherinhas, batendo uma na outra, tiniram no açucareiro, o
Alípio ergueu os olhos, apertou-os como para reconhecer o Getúlio, e disse-lhe:
- Cavalheiro, creio que já nos encontramos.
- É possível.
- Mas onde? Não me posso lembrar!
- Em São Paulo?
- Não, não creio.
- Talvez em Poços de Caldas. Estive lá duas vezes.
- É isso. Foi em Poços de Caldas! O cavalheiro é
paulista?
- Sim senhor, e é a primeira vez que venho ao Rio.
- Tem gostado?
- Muito, mas ainda não vi nada; cheguei ontem.
- Conquanto não tenha a satisfação de o conhecer,
ofereço-lhe os meus fracos préstimos.
- Muito obrigado, mas não venho aqui fazer outra coisa
senão passear. Há sete anos que me meti na fazenda de meu pai; era tempo de
espairecer.
- Ah! O cavalheiro é lavrador?
- Sim, senhor, formei-me em Direito, mas sou um
simples fazendeiro, sócio de meu pai. O senhor nunca ouviu falar do barão de
Batatais?
- Batatais? Pois não, doutor! Ora essa! É uma das
primeiras fortunas de São Paulo!
- Pois é meu pai.
- Se o doutor vem ao Rio de Janeiro simplesmente para
se distrair, razão de mais para aceitar os meus fracos préstimos. Sou carioca
da gema, conheço toda a cidade como as palmas das minhas mãos, e posso
mostrar-lhe o que ela tem de mais interessante.
- Oh! Senhor! Não sei a que deva...
- À simpatia. O doutor não imagina como simpatizei com
a sua pessoa!
- Mas o senhor naturalmente tem mais que fazer do que
me servir de cicerone.
- Que fazer? Eu? Ah, meu doutor, infelizmente a minha
vida é esta - andar pelos cafés, pelos teatros, pelos clubes, pelas casas de
jogo, pelas alcovas - enfim, pelo monde
ou l'on s'amuse! Não sei o
que é trabalhar! E não tenho remorsos, porque meu pai trabalhou por si e por
mim. O que faço é gozar o que ele não gozou, para que me não aconteça o mesmo.
- Então é rico?
- Tenho alguma coisinha, tenho...
Nesse mesmo dia jantaram juntos no Brito (o Alípio não
consentiu que o Getúlio pagasse), e à noite foram ao Cassino, onde o paulista
se divertiu a valer. Separaram-se amigos às três horas da madrugada, na rua
Senador Dantas, concertando encontrar-se ao meio-dia para almoçarem juntos.
Almoçaram, deram um longo passeio a Botafogo, e foram
jantar numa casa de jogo, que o Alípio quis mostrar ao Getúlio, a título de
curiosidade.
- Só a título de curiosidade - repetiu o carioca. - Eu
jogo, mas não te aconselho que jogues. (Já se tratavam por tu.) O jogo é
estúpido: tira sempre o necessário e não dá nunca senão o supérfluo. Tu alguma
vez jogaste?
- Já, em Poços de Caldas, mas jurei que nunca mais
jogaria! Perdi uma boa bolada, e o velho ficou furioso!
- Devo prevenir-te de uma coisa: esta casa de jogo é
uma das mais decentes do Rio de Janeiro, mas tem cuidado. Aqui vem de tudo. Vês
aquele sujeito gordo? É um magistrado integérrimo! Vês aquele sujeito magro?
Tem o retrato na polícia!
Depois do jantar, que foi magnífico, regado por
excelentes vinhos, aparelharam a roleta. O banqueiro, ex-advogado sem causa,
tomou o seu lugar sobre um estrado, diante das fichas multicores alinhadas em
ordem, formando pequenas colunas, e o pessoal do vício abancou-se em volta do
tapete verde.
- Eu vou piabar - disse o Getúlio ao Alípio.
- Vê, vê só, não jogues! Eu teria remorsos se te
trouxesse a esta casa para perderes dinheiro!
Começou o jogo. Depois das três primeiras bolas, o
bacharel não resistiu: comprou cem mil-réis de fichas, que voaram logo.
O Alípio lançou-lhe um olhar repreensivo.
- Não posso ver defunto sem chorar - respondeu o
outro, que insiste e em dez minutos perdeu oitocentos mil-réis.
Acendeu-se-lhe, então toda, a sua coragem de paulista,
e fez a última parada, tão forte, que ressarciu todo o prejuízo e ganhou perto
de um conto de réis.
O Alípio que, jogando, ou antes, fingindo jogar,
examinava-o de soslaio, viu-o aproximar-se do banqueiro, receber um maço de
notas, e arrumá-las na carteira, que guardou sorridente no bolso do peito.
- Vou-me embora - disse-lhe o Getúlio. - Preciso
recolher-me hoje um pouco mais cedo: estou com dor de cabeça.
O Alípio deixou a sala do jogo para acompanhá-lo até o
corredor, e perguntou-lhe indiferentemente, ajudando-o a vestir o sobretudo:
- Ganhaste?
- Alguma coisa.
- Pois sim, mas não tornes a jogar, vai com o que te
digo! aconselhou, abotoando-lhe o sobretudo. - Levanta a gola, agasalha-te bem,
não brinques com este clima. Eu ainda fico.
- Precisas de algum dinheiro?
- Não.
- Então até amanhã?
- Decerto. Irei buscar-te ao hotel às mesmas horas de
hoje. Adeus!
O paulista desceu as escadas lépido e contente, foi
para o hotel, que não era longe, entrou para o seu quarto, despiu-se e resolveu
dar, antes de dormir, um balanço ao dinheiro para saber ao certo qual tinha
sido o seu lucro. Foi ao bolso: a carteira lá não estava... Escusado é dizer
que o Alípio nunca mais o procurou.
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