quinta-feira, 21 de agosto de 2014

O HOLOCAUSTO SILENCIOSO DAS MULHERES ÀS QUEM CONTINUAM A EXTRAIR O CLITÓRIS EM PORTUGAL (E NA ÁFRICA)

 POR SOFIA BRANCO

Clitóris

Toda a gente sabe que existe, mas raros são os que vivem de perto com a mutilação genital feminina e aceitam falar sobre o assunto, escondendo-se sob a capa do segredo e do tabu. A prática é tão ancestral que se desconhece a sua origem exata, mas já afetou 135 milhões de crianças, jovens e mulheres. Estima-se que anualmente, dois milhões estão em risco. Seis mil por dia. Duzentas e cinquenta por hora. Quatro por minuto. Entre os países que a praticam há um que fala português: a Guiné-Bissau. O PUBLICO. PT entrou na comunidade guineense muçulmana e descobriu que há excisadoras em Portugal.



PATRÍCIA ROMÃO

Lisboa

Mesquita de Lisboa, duas da tarde de uma sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos. Envergando uma túnica larga em tons de amarelo e preto que deixa por vezes ver a nudez interior, a fanateca [nome guineense dado à mulher que pratica a excisão] diz de imediato que não está disposta a revelar nem denunciar o ritual feminino que implica o corte do clitóris. Fala da "vergonha" que seria um filho seu ver a prática exposta num jornal e, com isso, perder o carácter secreto que lhe está ligado.

Cultura, sofrimento, humilhação

Exprimindo-se em fula [dialeto da tribo com o mesmo nome, uma das etnias muçulmanas mais expressivas da Guiné] e fugindo ao olhar da jornalista, a septuagenária sem nome lá vai dizendo que "é uma coisa dolorosa" e que se pode "salvar ou morrer".

Zangada e desconfiada, faz questão de deixar bem claro que só está ali a conversar porque o líder da comunidade guineense muçulmana em Portugal, que fez as apresentações e teve de assegurar a tradução do diálogo, lhe tinha pedido.

Há 15 anos em Lisboa, a fanateca assume ter feito excisões na Guiné, mas garante que em Portugal "ainda" ninguém lhe pediu e recusa-se a "pôr o segredo das mulheres a nu".

A dada altura chora, porque já se está a "falar a tempo

África

demais" sobre o assunto. No final da conversa é-lhe colocado uma hipótese que a faz mudar radicalmente de atitude. "Se eu me apaixonasse por um guineense muçulmano e ele quisesse casar comigo, pedindo-me para ser excisada, e eu aceitasse o pedido, poderia fazê-lo em Portugal?", questiona a jornalista. Brilho nos olhos e resposta afirmativa. Não faltaria quem fizesse. Segue-se a advertência de que a intervenção implica sofrimento, porque é feita "sem anestesia", e o conselho de se fazer acompanhar por quatro mulheres, "para a segurarem". Fora isso, era só o futuro marido "dar a ordem" e, obviamente, pagar o preço da excisadora.

A conversa termina já a mesquita se esvaziou de gente. O líder da comunidade muçulmana da Guiné, Manso Baldé, que antes tinha confirmado ao PÚBLICO que a mutilação genital feminina (MGF) era praticada em Portugal e que apresentou a septuagenária como sendo uma fanateca, despede-se perguntando à jornalista se percebeu que a anciã "não quis contar" tudo o que sabia. Ainda há tempo para mais uma troca de palavras com a fanateca. Segura as mãos da jornalista e insiste: "Então, sempre quer fazer?".

Duas filhas morreram depois da excisão
Nova tentativa. Quinta do Mocho num dia de sol. Tchambu recebe o PÚBLICO em sua casa. Guineense, muçulmana e excisada, não tem dúvidas em dizer que a


MGF "só prejudica a mulher". Originária da tribo biafada, Tchambu não conseguiu evitar que a filha mais velha também fosse excisada, por pressão da avó, mas impediu que a mais nova tivesse o mesmo destino.

Segundo Tchambu, enquanto nas outras tribos o fenómeno tende a desaparecer, no caso dos fulas - a etnia do seu companheiro atual - trata-se de um ritual "indispensável e obrigatório". "Eles fazem o que viram os antepassados fazer", afirma. Tchambu já teve discussões com o marido sobre a MGF. Apesar de duas das suas filhas terem morrido na sequência do fanado - nome do ritual guineense que marca a passagem da infância à idade adulta e que inclui a circuncisão, no caso dos rapazes, e a vulgarmente chamada excisão, no caso das raparigas -, o marido continua a dizer que o ritual "é um dever para um muçulmano" e considera que as filhas "morreram em combate".


Tchambu dispõe-se a ajudar o PÚBLICO a encontrar outra fanateca. Recorre à irmã, que é "muito religiosa". Bobadela, no mesmo dia de sol. A irmã, mais velha, diz, num português difícil de compreender, que conhece "senhoras que fazem" e que em Portugal "manga [muitas em crioulo] meninas" já foram excisadas. Com uma neta recém-nascida, ela própria admite que levará a criança para a Guiné "para fazer lá". Dois encontros marcados com a fanateca, dois encontros adiados. "A senhora manda dizer que se quiser fazer tudo bem, mas se for para denunciar não vai falar".

"As mulheres que não são excisadas não prestam"
Sendo que na Guiné o ritual se mantém, a questão da conservação da prática no seio da comunidade residente em Portugal, na sua grande maioria concentrada em Lisboa, é inevitável. O PÚBLICO conversou com vários guineenses, muçulmanos e não muçulmanos, e a resposta foi quase sempre afirmativa, incluindo invariavelmente o "já ouvi falar de casos".


Três líderes da comunidade muçulmana guineense em Portugal, dois fulas e um mandinga, não hesitaram em confirmar a manutenção da prática. Durante um encontro com o PÚBLICO, também na mesquita de Lisboa, os três membros da Associação de Muçulmanos Naturais da Guiné garantiram que a comunidade residente em Portugal "ainda faz o fanado", masculino e feminino. Com uma diferença: enquanto os rapazes são circuncidados nos hospitais, entre os nove e dez anos de idade, as meninas são excisadas em casa, recorrendo-se a uma anciã e normalmente ainda bebés, "com dois ou três anos, porque é mais fácil nessa altura".

Admitindo que a festa associada ao ritual vai-se perdendo e que a tradição está "atualmente reduzida à excisão", os três responsáveis falaram da excisão feminina com a naturalidade com que se fala de outra tradição qualquer, reconhecendo, no entanto, que se trata de "uma cerimónia muito delicada" e que pode, quando mal feita, conduzir à morte.


Muitas das vezes, quando algo corre mal no procedimento, costuma culpar-se a menina, porque já era impura, ou os pais da menina, porque não a educaram na pureza, ou atribui-se o fracasso a uma qualquer intervenção divina.

Admitindo o carácter "secreto" da prática, os líderes muçulmanos adiantaram desde logo que as excisadoras "têm medo de ser identificadas, agora que há muitas organizações por aí que combatem" a MGF.

"Os usos e costumes não devem ser abandonados. Há uma tendência [na Europa] para monopolizar a civilização e cultura dos outros. Não deviam pôr em causa [os nossos valores], nem dizer 'A nossa civilização é mais bonita do que a vossa'", criticou Alage Mamadu Dumbiá, um dos membros da associação. "Não é crime, não pode ser crime, porque é a nossa tradição. É um símbolo da nossa identidade, uma forma de continuarmos a saber quem somos, fora do nosso país", defendeu.


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