Conto de Machado de Assis
(Foi
observada a ortografia original)
Ótimo
conto
Um dos
problemas que mais preocupavam a rua do Ouvidor entre as da Quitanda e
Gonçalves Dias, das duas às quatro horas da tarde, era a profunda e súbita
melancolia do Dr. Maciel. O Dr. Maciel tinha apenas vinte e cinco anos, idade
em que geralmente se compreende melhor o Cântico dos Cânticos do que as
Lamentações de Jeremias. Sua índole mesma era mais propensa ao riso dos
frívolos do que ao pesadume dos filósofos. Pode-se afirmar que ele preferia um
dueto da Grã Duquesa a um teorema geométrico, e os domingos do Prado Fluminense
aos domingos da Escola da Glória. Donde vinha pois a melancolia que tanto
preocupava a rua do Ouvidor?
Pode o
leitor coçar o nariz à procura da explicação; a leitora não precisa desse
recurso para adivinhar que o Dr. Maciel ama, que uma "seta do deus
alado" o feriu mesmo no centro do coração. O que a leitora não pode
adivinhar, sem que eu lho diga, é que o jovem médico ama a viúva Seixas, cuja
maravilhosa beleza levava após si os olhos dos mais consumados pintalegretes. O
Dr. Maciel gostava de a ver como todos os outros; amou-a desde certa noite e
certo baile, em que ela, andando a passear pelo seu braço, perguntou-lhe de
repente com a mais deliciosa languidez do mundo:
-
Doutor, por que razão não quer honrar a minha casa? Estou visível todas as
quintas-feiras para a turba-multa; os sábados pertencem aos amigos. Vá lá aos
sábados.
Maciel
prometeu que iria no primeiro sábado, e foi. Pulava-lhe o coração ao subir as
escadas. A viúva estava só.
- Venho
cedo, disse ele, logo depois dos primeiros cumprimentos.
- Vem
tarde demais para a minha natural ansiedade, respondeu ela sorrindo.
O que
se passou na alma de Maciel excede a todas as conjecturas. Num só minuto pôde
ele ver juntas todas as maravilhas da terra e do céu, - todas as concentradas
naquela elegante e suntuosa sala cuja dona, a Calipso daquele Telêmaco, tinha
cravados nele um par de olhos, não negros, não azuis, não castanhos, mas dessa
rara cor, que os homens atribuem a mais duradoura felicidade do coração, à
esperança. Eram verdes, de um verde igual ao das folhas novas, e de uma
expressão ora indolente, ora vivaz, - arma de dois gumes, - que ela sabia
manejar como poucas.
E não
obstante aquele intróito, o Dr. Maciel andava triste, abatido, desconsolado. A
razão era que a viúva, depois de tão amáveis preliminares, não cuidou mais das
condições em que seria celebrado um tratado conjugal. No fim de cinco ou seis
sábados, cujas horas eram polidamente bocejadas a duo, a viúva adoeceu
semanalmente naquele dia, e o jovem médico teve de contentar-se com a
turba-multa das quintas-feiras.
A
quinta-feira em que nos achamos é de Endoenças. Não era dia próprio de
recepção. Contudo, Maciel dirigiu-se a Botafogo, a fim de pôr em execução um
projeto, que ele ingenuamente supunha ser fruto do mais profundo maquiavelismo,
mas que eu, na minha fidelidade de historiador, devo confessar que não passava
de verdadeira infantilidade. Notara ele os sentimentos religiosos da viúva;
imaginou que, indo fazer-lhe naquele dia a declaração verbal do seu amor, por
meio de invocações pias, alcançaria facilmente o prêmio de seus trabalhos.
A viúva
achava-se no toucador. Acabara de vestir-se; e de pé calçando as luvas, em
frente do espelho, sorria para si mesma, como satisfeita da toilette. Não
ia passear, como se poderia supor; ia visitar as igrejas. Queria alcançar por
sedução a misericórdia divina.
Era boa
devota aquela senhora de' vinte e seis anos, que freqüentava as festas
religiosas, comia peixe durante toda a quaresma, acreditava alguma coisa em
Deus, pouco no diabo e nada no inferno. Não acreditando no inferno, não tinha
onde meter o diabo; venceu a dificuldade, agasalhando-o no coração. O demo
assim alojado fora algum tempo o nosso melancólico Maciel. A religião da viúva
era mais elegante que outra coisa. Quando ela se confessava era sempre com
algum padre moço; em compensação só se tratava com médico velho. Nunca escondeu
do médico o mais íntimo defluxo, nem revelou ao padre o mais insignificante
pecado.
- O Dr.
Maciel? disse ela lendo o cartão que a criada lhe entregou. Não o posso receber;
vou sair. Espera, - continuou depois de relancear os olhos para o espelho; -
manda-o entrar para aqui.
A ordem
foi cumprida; alguns minutos depois fazia Maciel a sua entrada no toucador da
viúva.
-
Recebo-o no santuário, disse ela sorrindo logo que ele assomou à porta; prova
de que o senhor pertence ao número dos verdadeiros fiéis.
- Oh!
não é da minha fidelidade que eu duvido; e...
- E
recebo-o de pé! Vou sair; vou visitar as igrejas.
- Sei;
conheço os seus sentimentos de verdadeira religião, - disse Maciel com a voz a
tremer-lhe; - vim até com receio de não a encontrar. Mas vim; era preciso que
viesse; neste dia, sobretudo.
A viúva
recolheu a abazinha de um sorriso que indiscretamente ia traindo o seu
pensamento, e perguntou friamente ao médico que horas eram.
- Quase
oito. Sua luva está calçada; falta só abotoá-la. É o tempo necessário para lhe
dizer, neste dia tão solene, que eu sinto...
- Está
abotoada. Quase oito, não? Não há tempo de sobra; é preciso ir a sete igrejas.
Quer fazer o favor de acompanhar-me até o carro?
Maciel
tinha espírito em quantidade suficiente para não perdê-lo todo com a paixão.
Calou-se; e respondeu à viúva com um gesto de assentimento. Saíram do toucador
e desceram ambos silenciosos. No trajeto planeou Maciel dizer-lhe uma só
palavra, mas que contivesse todo o seu coração. Era difícil; o lacaio, que
abrira a portinhola do coupé, ali estava como um emissário do seu mau destino.
- Quer
que o leve até a cidade? perguntou a cidade? perguntou a viúva.
-
Obrigado, respondeu Maciel.
O
lacaio fechou a portinhola e correu a tomar o seu lugar; foi nesse rápido
instante que o médico. inclinando o rosto, disse à viúva:
-
Eulália...
Os
cavalos começaram a andar; o resto da frase perdeu-se para a viúva e para nós.
Eulália
sorriu da familiaridade e perdoou-lha. Reclinou-se molemente nos coxins do
veículo e começou um monólogo que só acabou à porta de S. Francisco de Paula.
- Pobre
rapaz! dizia ela consigo; vê-se que morre por mim. Não desgostei dele a
princípio... Mas tenho eu culpa de que seja um maricas? Agora sobretudo. com
aquele ar de moleza e abatimento, é... não é nada... é uma alma de cera. Parece
que vinha disposto a ser mais atrevido; mas a alma faltou-lhe com a voz, e
ficou apenas com as boas intenções. Eulália! Não foi mau este começo. Para um
coração daqueles... Mas qual! c'est le genre ennuyeux!
Esta é
a glosa mais resumida que posso dar do monólogo da viúva. O cupê estacionou na
praça da Constituição; Eulália, seguida do lacaio, encaminhou-se para a igreja
de S. Francisco de Paula. Ali, depositou a imagem de Maciel nas escadas, e
atravessou o adro toda entregue ao dever religioso e aos cuidados de seu
magnífico vestido preto.
A
visita foi curta; era preciso ir a sete igrejas, fazendo a pé todo o trajeto de
uma para outra. A viúva saiu sem preocupar-se mais com o jovem médico, e
dirigindo-se para a igreja da Cruz.
Na Cruz
achamos uma personagem nova, ou antes duas, o desembargador Araújo e sua
sobrinha D. Fernanda Valadares, viúva do deputado deste nome, que falecera um
ano antes, não se sabe se da hepatite que os médicos lhe acharam se de um
discurso que proferiu na discussão do orçamento. As duas viúvas eram amigas;
seguiram juntas na visitação das igrejas. Fernanda não tinha tantas acomodações
com o céu, como a viúva Seixas; mas a sua piedade estava sujeita, como todas as
coisas, às vicissitudes do coração. Em vista do que, logo que saíram da última
igreja, disse ela à amiga que no dia seguinte iria vê-la e pedir-lhe uma
informação.
- Posso
dar já, respondeu Eulália. Vá embora, desembargador; eu levo Fernanda no meu
carro.
No
carro, disse Fernanda:
-
Preciso de uma informação importante. Sabes que estou um pouco apaixonada?
- Sim?
- É
verdade. Eu disse um pouco, mas devia dizer muito. O Dr. Maciel...
- O Dr.
Maciel? interrompeu vivamente Eulália. Que pensas dele?
A viúva
Seixas levantou os ombros e riu com um ar de tamanha piedade, que a amiga
corou.
- Não
te parece bonito? perguntou Fernanda.
- Não é
feio.
- O que
mais me seduz nele é o seu ar triste, um certo abatimento que me faz crer que
padece. Sabes de alguma coisa a seu respeito?
- Eu?
- Ele
dá-se muito contigo; tenho-o visto lá em tua casa. Sabes se haverá alguma
paixão...
- Pode
ser.
- Oh!
conta-me tudo!
Eulália
não contou nada; disse que nada sabia.
Concordou,
entretanto, que o jovem médico talvez andasse enamorado, porque realmente não
parecia gozar boa saúde. O amor, disse ela, era urna espécie de pletora, o
casamento uma sangria sacramental. Fernanda precisava sangrar-se do mesmo modo
que Maciel.
-
Sobretudo nada de remédios caseiros, concluiu ela; nada de olhares e suspiros,
que são paliativos destinados menos a minorar que a entreter a doença. O melhor
boticário é o padre.
Fernanda
tirou a conversa deste terreno farmacêutico e cirúrgico para subi-la às regiões
do eterno azul. Sua voz era doce e comovida: o coração pulsava-lhe com força; e
Eulália, ao ouvir os méritos que a amiga achava em Maciel, não pôde reprimir esta
observação:
- Não
há nada como ver as coisas com amor. Quem suporia nunca o Maciel que me estás
pintando? Na minha opinião não passa de um bom rapaz; e ainda assim... Mas um
bom rapaz é alguma coisa neste mundo?
- Pode
ser que eu me engane, Eulália, replicou a viúva do deputado, mas creio que há
ali uma alma nobre, elevada e pura. Suponhamos que não. Que importa? O coração
empresta as qualidades que deseja.
A viúva
Seixas não teve tempo de examinar a teoria de Fernanda. O carro chegara à rua
Santo Amaro, onde esta morava. Despediram-se; Eulália seguiu para Botafogo.
-
Parece que ama deveras, pensou Eulália logo que ficou só. Coitada! Um moleirão!
Eram
nove horas da noite quando a viúva Seixas entrou em casa. Duas criadas -
camareiras, - foram com ela para o toucador, onde a bela viúva se despiu; dali
passou ao banho; enfiou depois um roupão e dirigiu-se para o quarto de dormir.
Levaram-lhe uma taça de chocolate, que ela saboreou lentamente, tranqüilamente,
voluptuosamente; saboreou-a e saboreou-se também a si própria,
contemplando, da poltrona em que estava, a sua bela imagem no espelho
fronteiro. Esgotada a taça, recebeu de uma criada o seu livro de orações, e foi
dali a um oratório, diante do qual com devoção se ajoelhou e rezou. Voltando ao
quarto, despiu-se, meteu-se no leito e pediu-lhe que lhe cerrasse as cortinas;
feito o que, murmurou alegremente:
- Ora o
Maciel!
E
dormiu.
A noite
foi muito menos tranqüila para o nosso apaixonado Maciel, que, logo depois das
palavras proferidas à portinhola do carro, ficara furioso contra si mesmo.
Tinha razão em parte; a familiaridade do tratamento dado à viúva precisava de
mais detida explicação. Não era, porém, a razão que lhe fazia ver claro; nele
exerciam maior ação os nervos que o cérebro.
Nem
sempre "depois de uma noite de procelosa, traz a manhã serena
claridade". A do dia seguinte foi tétrica. Maciel gastou-a toda na loja do
Bernardo, a fumar em ambos os sentidos, - o natural e o figurado, a olhar sem
ver as damas que passavam, estranho à palavra dos amigos, aos boatos políticos,
às anedotas de ocasião.
-
Fechei a porta para sempre! dizia ele com amargura.
Pelas
quatro horas da tarde, apareceu-lhe um alívio, debaixo da forma de um colega
seu, que lhe propôs ir clinicar em Carangola, donde recebera cartas muito
animadoras. Maciel aceitou com ambas as mãos o oferecimento. Carangola nunca
entrara no itinerário de suas ambições; é até possível que naquele momento ele
não pudesse dizer a situação exata da localidade. Mas aceitou Carangola, como
aceitaria a coroa de Inglaterra ou as pérolas todas de Ceilão.
- Há
muito tempo, disse ele ao colega, que eu sentia necessidade de ir viver em
Carangola. Carangola exerceu sempre em mim uma atração irresistível. Não podes
imaginar como eu, já na Academia, me sentia arrastado para Carangola. Quando
partimos?
- Não
sei: dentro de três semanas, talvez.
Maciel
achou que era muito, e propôs o prazo máximo de oito dias. Não foi aceito; não
teve remédio senão curvar-se às três semanas prováveis. Quando ficou só,
respirou.
- Bem!
disse ele, irei esquecer e ser esquecido. No sábado houve duas aleluias, uma na
Cristandade, outra em casa de Maciel, aonde chegou uma cartinha perfumada da
viúva Seixas contendo estas simples palavras: - "Creio que hoje não terei
a enxaqueca do costume; espero que venha tomar uma xícara de chá comigo".
A leitura desta carta produziu na alma do jovem médico unia Glória in excelsis
Deo. Era o seu perdão; era talvez mais do que isso. Maciel releu meia dúzia de
vezes aquelas poucas linhas; nem é fora de propósito crer que chegou a
beijá-las.
Ora, é
de saber que na véspera, sexta-feira, as onze horas da manhã, recebera Eulália
uma carta de Fernanda, e que às duas horas foi a própria Fernanda à casa de
Eulália. A carta e a pessoa tratavam do mesmo assunto com a expansão natural em
situações daquelas. Tem-se visto muita vez guardar um segredo do coração; mas é
raríssimo, que, uma vez revelado, deixe de o ser até a saciedade. Fernanda
escreveu e disse tudo o que sentia; sua linguagem, apaixonada e viva, era uma
torrente de afeto, tão volumosa que chegou talvez a alagar, - a molhar pelo
menos, - o coração de Eulália. Esta ouviu-a a principio com interesse, depois
com indiferença, afinal com irritação.
- Mas o
que queres tu que eu te faça? perguntou no fim de uma hora de confidência.
- Nada, respondeu Fernanda. Uma só
coisa: que me animes.
- Ou te auxilie?
Fernanda
respondeu com um aperto de mão tão significativo, que a viúva Seixas
compreendeu facilmente a impressão que lhe causara. No sábado enviou a carta
acima transcrita. Maciel recebeu-a como vimos, e à noite, à hora habitual,
estava à porta de Eulália. A viúva não estava só. Havia umas quatro senhoras e
uns três cavalheiros, visitas habituais das quintas-feiras.
Maciel
entrou na sala um pouco acanhado e comovido. Que expressão leria no rosto de
Eulália? Não tardou sabê-lo; a viúva recebeu-o com o seu melhor sorriso, - o
menos faceiro e intencional, o mais espontâneo e sincero, um sorriso que
Maciel, se fosse poeta, compararia a um íris de bonança, rimado com esperança
ou bem-aventurança. A noite correu deliciosa; um pouco de música, muita
conversa, muito espírito, um chá familiar, alguns olhares animadores, e um
aperto de mão significativo no fim. Com estes elementos era difícil não ter os
melhores sonhos do mundo. Teve-os Maciel, e o domingo da Ressurreição também o
foi para ele.
Na
seguinte semana viram-se três vezes. Eulália parecia mudada; a solicitude e a
graça com que lhe falava estavam longe de tal ou qual frieza e indiferença dos
últimos tempos. Este novo aspecto da moça produziu os seus naturais efeitos.
Sentiu-se outro jovem médico; reanimou-se, colheu confiança, fez-se homem.
A
terceira vez que a viu nessa semana foi em uma soirée. Acabaram
de valsar e dirigiram-se para o terraço da casa, donde se via um magnífico
panorama, capaz de fazer poeta o mais soez espírito do mundo. Ali foi fácil
declaração, inteira, cabal, expressiva do que sentia o namorado; ouviu-lhe
Eulália com os olhos embebidos nele, visivelmente encantada com a palavra de Maciel.
-
Poderei crer no que me diz? perguntou ela.
A
resposta do jovem médico foi apertar-lhe muito a mão, e cravar nela uns olhos
mais eloqüentes que duas catilinárias. A situação estava definida, a aliança
feita. Bem o percebeu Fernanda, quando os viu regressar à sala. Seu rosto
cobriu-se de um véu de tristeza; dez minutos depois e o desembargador
interrompia a partida de whist para acompanhar a sobrinha a Santo Amaro.
A
leitora espera decerto ver casados os dois namorados e espaçada a viagem a
Carangola até o fim do século. Quinze dias depois da declaração inicial Maciel
deu os passos necessários ao consórcio. Não têm número os corações que
estalaram de inveja ao saber da preferência da viúva Seixas. Esta pela sua
parte sentia-se mais orgulhosa do que se desposasse o primeiro dos heróis da
terra.
Donde
veio este entusiasmo e que varinha mágica operou tamanha mudança no coração de
Eulália? Leitora curiosa, a resposta está no título. Maciel pareceu
insosso, enquanto lhe faltou o sainete de outra paixão. A viúva
descobriu-lhe os méritos com os olhos de Fernanda; e bastou vê-lo preferido
para que ela o preferisse. Se me miras, me miram, era a divisa de um célebre
relógio do sol. Maciel podia invertê-la: se me miram, me miras; e mostraria
conhecer o coração humano, - o feminino pelo menos.
MANASSÉS.
in
Primeira publicação em "A Época", do Rio de Janeiro, a 1 de dezembro
de 1875.
Fonte:
Contos Avulsos - Machado de Assis - org. de R. Magalhães Júnior
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