terça-feira, 2 de setembro de 2014

BEAUDOIN À LA HACHE (MACHADO)

Conto da Alexandre Dumas, Pai


Beaudoin o Calvo, conde das Flandres, fez cercar Bruges de muralhas e construiu nelas quatro portões. Beaudoin o Jovem aí estabeleceu as feiras e concedeu grandes privilégios aos mercadores. Beaudoin da Bela Barba completou as muralhas e instituiu para administrar a cidade treze fiscais de preços e vários outros conselheiros, que escolheu na burguesia e nos grandes e pequenos ofícios.
Depois veio Beaudoin à la Hache, ou Balduíno do Machado, assim denominado porque tinha o hábito de servir-se, em vez da espada, de um machado pesando quinze quilos. Era um severo justiceiro esse conde. A reforma de quase todos os abusos e a punição de todos os crimes datam de seus dias. Relatarei dois exemplos da maneira como fazia justiça.
Três mercadores de jóias e perfumes, que pelas roupas podiam ser reconhecidos como orientais, dirigiam-se, no ano de 1112, a uma feira que devia ter lugar em Thourout, e pousaram no Hotel da Cruz de Ouro. Sucedeu que no mesmo hotel estava hospedado, com alguns de seus amigos, o Sr. Henry de Calloo, um dos mais ricos e nobres senhores do País de Gales, o qual precisamente acabara de perder no jogo somas enormes. Por mais rico que fosse, não sabia como pagá-las. Vendo os mercadores e suas esplêndidas mercadorias, o demônio o tentou, e veio-lhe a idéia fatal de apoderar-se de suas jóias e dinheiro.
Antes de partir, os mercadores enviaram na frente servidores com o encargo de lhes prepararem os alojamentos. Pensando que não tinham nada a temer, deixaram Bruges duas horas após seus mensageiros.
Henry de Calloo e seus amigos deixaram que eles tomassem a dianteira. Então, alcançando-os no momento em que atravessavam um bosque, caíram sobre eles e os assassinaram. Tendo conduzido os cadáveres à parte mais densa do bosque, apoderaram-se de todo o ouro e jóias que os infelizes mercadores tinham consigo.
Entretanto, os servidores, depois de terem tudo preparado para a chegada de seus senhores, vieram aguardá-los na porta da cidade. Como o tempo corria e os mercadores não chegavam, começaram a preocupar-se, e viram então chegar Henry de Calloo com seus companheiros. Saíram imediatamente ao seu encontro, para lhes perguntar se, posto que dispunham de tão boas montarias, não tinham encontrado e ultrapassado seus senhores. Mas os flamengos responderam, com um ar perfeitamente natural, que não compreendiam essa pergunta, visto que os mercadores, tendo partido de Bruges bem na frente deles, já deveriam ter chegado a Thourout àquela hora.
Essa resposta redobrou os temores dos criados, que a partir daí se separaram. Três ficaram na porta da cidade e três voltaram pelo caminho de Bruges. Chegados ao bosque, viram a terra manchada de sangue. Seguiram o rastro, e após alguns passos dentro do bosque encontraram os três cadáveres. Então, sem perder um instante, sem mesmo fazê-los transportar, foram correndo a Wynendaele, onde estava o conde, para denunciar o crime e pedir-lhe vingança.
Beaudoin ouviu-os com a atenção e a gravidade que exigia semelhante denúncia. Quando terminaram o relato e o conde lhes tinha feito detalhar todas as circunstâncias, perguntou-lhes se não tinham alguma suspeita sobre quais seriam os autores do assassinato. Os pobres servidores entreolharam-se, tremendo e sem ousar responder. Mas interrogados novamente pelo conde de maneira mais premente, responderam que as únicas pessoas sobre as quais podiam recair suas suspeitas, se lhes era dado ousar suspeitar de poderosos senhores, eram Henry de Calloo e seus dois companheiros.
A acusação era tanto mais grave quanto atingia personagens dos mais elevados. Beaudoin então ordenou que os denunciantes fossem mantidos sob vigilância num castelo, enquanto ia sozinho a Thourout. Com efeito, mandou selar seu cavalo, e sem dizer a ninguém para onde ia nem permitir que ninguém o acompanhasse, partiu a galope. De resto, como era habitual vê-lo fazer essas expedições solitárias, e contanto que levasse seu machado, ninguém se preocupava. Seus criados viram-no afastar-se ao longe, dizendo entre si:
— Bem, amanhã ouviremos contar alguma coisa de novo.
Atravessando a grande praça de Thourout, Beaudoin notou um grande ajuntamento de povo, que começava a se dissolver. É que naquele mesmo lugar acabavam de ser executados dois falsários de moedas, de sorte que os caldeirões cheios de azeite fervente, onde haviam sido jogados, estavam ainda lá. Beaudoin, ao passar, ordenou que se reacendesse o fogo sob os caldeirões, a fim de que o azeite se mantivesse num grau de ebulição conveniente, e continuou seu caminho.
Chegando ao albergue onde estavam hospedados Henry de Calloo e seus dois companheiros, fez-se reconhecer pelo hospedeiro, e como eles haviam saído, subiu com este ao quarto. Seus cofres estavam no chão e fechados a chave. O conde mandou romper as fechaduras, e aí encontraram as joias dos mercadores.
Logo Beaudoin fez prender Henry de Calloo e seus dois cúmplices. Tendo-os feito conduzir à praça pública, onde os aguardava, interrogou-os com tal severidade que, graças às provas que o conde tinha já em mãos, não ousaram sequer por um instante negar seu crime.

Assim que a confissão foi feita, e sem dar-lhes tempo de tomar nenhuma providência, o conde fê-los agarrar, vestidos e armados como estavam, e os fez jogar nos caldeirões, à vista do povo, que teve assim dois espetáculos no mesmo dia.
Um outro dia, Beaudoin acabava de ter a assembleia de seus Estados em Ypres. Como era uma grande cerimônia, e para dar-lhe ainda mais brilho, havia naquele dia armado seis cavaleiros, todos pertencentes às mais nobres famílias das Flandres. Segundo o juramento habitual, estes haviam prometido dar proteção aos fracos, às viúvas e aos órfãos, mediante o que Beaudoin lhes dera com suas próprias mãos.
Concluída a cerimônia, Beaudoin retornou a seu castelo, acompanhado dos novos cavaleiros que armara. Quando atravessavam a floresta dos seus domínios, notou os preparativos de uma festa. Detiveram-se um instante, e viram efetivamente chegar um cortejo de camponeses acompanhando um novo casal. Beaudoin avançou até a esposa, e tirando um anel de seu dedo, entregou-o a ela e disse:
— Posto que o acaso conduziu-me pelo vosso caminho, que este acaso seja para vós uma providência. Se tiverdes alguma vez necessidade de mim, enviai-me este anel e pedi minha assistência, ela não vos faltará.
A exemplo dele, cada um dos cavaleiros que o seguia deu um presente à jovem, e a cavalgada senhorial retomou o caminho do castelo.
A oportunidade de usar o anel não se fez esperar. No meio de seu primeiro sono, o conde foi acordado por um de seus escudeiros. Mostrando-lhe o anel, este lhe disse que um camponês ofegante e coberto de pó acabava de trazê-lo da parte da recém-casada da floresta. Beaudoin mandou logo que fosse introduzido o camponês, que era irmão do marido. Relatou que, quando a recém-casada era conduzida à nova residência do casal, fora raptada pelos seis novos cavaleiros. O esposo e seus amigos quiseram opor resistência, mas como estavam sem armas, foram repelidos. Dois ou três camponeses haviam recebido ferimentos bastante graves, tanto que a pobre jovem não teve senão tempo de jogar o anel, gritando ao seu marido: “Leve este anel ao Conde Beaudoin!” Mas o marido, que quis vingar-se por si mesmo, dera o anel ao seu irmão, incumbindo-o da missão. Em seguida, chamando toda a aldeia em seu auxílio, preparou-se para perseguir os raptores.
Beaudoin, não querendo acreditar em tamanha audácia, subiu aos aposentos dos cavaleiros e os encontrou vazios. Interrogou a sentinela, que confirmou que os cavaleiros haviam saído cerca de uma hora e meia antes.
O conde voltou ao pequeno camponês, perguntou-lhe para que lado se tinham dirigido os raptores, e este lhe respondeu que tinham tomado o caminho da Maison Rouge, uma taverna muito mal afamada, situada nos arredores do castelo. Beaudoin não duvidou mais que os culpados estivessem lá. Mandou que dez de seus homens se armassem o mais rapidamente possível e o alcançassem, levando pregos e cordas. Quanto a ele, saltou no primeiro cavalo, com o machado à mão, e dirigiu-se para a taverna suspeita.

Logo que avistou a Maison Rouge, Beaudoin convenceu-se de que não se enganara. O primeiro andar, fortemente iluminado, reboava com gargalhadas, imprecações e blasfêmias, enquanto o andar térreo estava escuro, mudo e solitário. Beaudoin apeou, amarrou seu cavalo a uma das argolas da parede e bateu à porta. Mas depois da terceira vez, vendo que ninguém vinha atendê-lo, arrombou a porta com um ponta-pé e entrou.
O andar inferior estava solitário e escuro. Guiado pelas vozes que ouvia, Beaudoin subiu a escada e logo achou-se diante da porta do recinto do qual provinha todo o barulho. A chave estava na fechadura, pois os cavaleiros acreditavam estar suficientemente protegidos pelas precauções que tomaram no andar térreo. Beaudoin abriu a porta sem dificuldade, lançou um olhar rápido pelo quarto e viu a jovem fortemente amarrada, enquanto seus raptores jogavam dados para ver a quem ela pertenceria.

A aparição de Beaudoin foi como um raio para os culpados. Lançaram um grito de terror, ao qual a jovem respondeu por um grito de alegria. Pelos olhares que Beaudoin dardejava, viram logo que estariam perdidos se não fugissem o mais depressa possível. Precipitaram-se em direção à escada, mas o conde postou-se diante da porta, com seu machado à mão, ameaçando fender a cabeça do primeiro que fizesse qualquer movimento. Todos permaneceram imóveis.
Nesse momento, Beaudoin viu fora a luz das tochas e ouviu o galope dos cavalos que conduziam seus homens de armas.
— Aqui! — gritou-lhes ele.
Entraram pela porta arrombada, subiram a escada e apareceram detrás do conde.
— Tendes os pregos e as cordas?
— Sim, meu senhor.
— Fixai seis pregos nesta trave e preparai seis cordas.
Os cavaleiros empalideceram, vendo bem que tudo estava terminado para eles. Alguns começaram a pedir perdão, outros a se confessar em voz alta. Mas Beaudoin, sem dar-lhes ouvidos, apressava a montagem, de modo que depois de alguns minutos os pregos estavam afixados e os nós corrediços prontos.

Então fez colocar um banco debaixo das cordas, e ordenou aos seis cavaleiros que subissem no banco. Uns obedeceram com resignação, outros quiseram oferecer resistência, mas uns e outros acabaram subindo. Ao cabo de um instante, os seis cavaleiros tinham a corda ao pescoço. Beaudoin lançou um último olhar sobre eles, para ver se estava tudo bem em ordem. Depois, satisfeito com a inspeção, afastou o banco com um pontapé, e os seis cavaleiros acharam-se bem e devidamente enforcados.
Nisto ouviu-se um grande alarido. Era o marido, que chegava com todos os jovens da aldeia, armados de picaretas e forcados. Beaudoin fê-los entrar todos no quarto, mostrando-lhes de um lado a jovem, que devolvia a seu esposo, virgem como havia sido raptada, e de outro os culpados já punidos. A justiça do conde andara mais depressa que a vingança do marido.
Beaudoin morreu deixando a Carlos da Dinamarca o seu Condado de Flandres, em recompensa pelos grandes serviços que este prestara aos cristãos na Palestina. Carlos da Dinamarca, depois chamado Carlos o Bom, era filho de São Canuto, Rei da Dinamarca, e de Adélia da Frísia.
Alexandre Dumas, Pai

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