Conto da
Alexandre Dumas, Pai
Beaudoin o
Calvo, conde das Flandres, fez cercar Bruges de muralhas e construiu nelas
quatro portões. Beaudoin o Jovem aí estabeleceu as feiras e concedeu grandes
privilégios aos mercadores. Beaudoin da Bela Barba completou as muralhas e instituiu
para administrar a cidade treze fiscais de preços e vários outros conselheiros,
que escolheu na burguesia e nos grandes e pequenos ofícios.
Depois veio
Beaudoin à la Hache, ou Balduíno do Machado, assim denominado porque tinha o
hábito de servir-se, em vez da espada, de um machado pesando quinze quilos. Era
um severo justiceiro esse conde. A reforma de quase todos os abusos e a punição
de todos os crimes datam de seus dias. Relatarei dois exemplos da maneira como
fazia justiça.
Antes de partir, os
mercadores enviaram na frente servidores com o encargo de lhes prepararem os
alojamentos. Pensando que não tinham nada a temer, deixaram Bruges duas horas
após seus mensageiros.
Henry de Calloo e seus amigos deixaram que eles tomassem a dianteira. Então, alcançando-os no momento em que atravessavam um bosque, caíram sobre eles e os assassinaram. Tendo conduzido os cadáveres à parte mais densa do bosque, apoderaram-se de todo o ouro e jóias que os infelizes mercadores tinham consigo.
Henry de Calloo e seus amigos deixaram que eles tomassem a dianteira. Então, alcançando-os no momento em que atravessavam um bosque, caíram sobre eles e os assassinaram. Tendo conduzido os cadáveres à parte mais densa do bosque, apoderaram-se de todo o ouro e jóias que os infelizes mercadores tinham consigo.
Entretanto, os
servidores, depois de terem tudo preparado para a chegada de seus senhores,
vieram aguardá-los na porta da cidade. Como o tempo corria e os mercadores não
chegavam, começaram a preocupar-se, e viram então chegar Henry de Calloo com
seus companheiros. Saíram imediatamente ao seu encontro, para lhes perguntar
se, posto que dispunham de tão boas montarias, não tinham encontrado e
ultrapassado seus senhores. Mas os flamengos responderam, com um ar
perfeitamente natural, que não compreendiam essa pergunta, visto que os
mercadores, tendo partido de Bruges bem na frente deles, já deveriam ter
chegado a Thourout àquela hora.
Essa resposta
redobrou os temores dos criados, que a partir daí se separaram. Três ficaram na
porta da cidade e três voltaram pelo caminho de Bruges. Chegados ao bosque,
viram a terra manchada de sangue. Seguiram o rastro, e após alguns passos
dentro do bosque encontraram os três cadáveres. Então, sem perder um instante,
sem mesmo fazê-los transportar, foram correndo a Wynendaele, onde estava o
conde, para denunciar o crime e pedir-lhe vingança.
Beaudoin ouviu-os
com a atenção e a gravidade que exigia semelhante denúncia. Quando terminaram o
relato e o conde lhes tinha feito detalhar todas as circunstâncias, perguntou-lhes
se não tinham alguma suspeita sobre quais seriam os autores do assassinato. Os
pobres servidores entreolharam-se, tremendo e sem ousar responder. Mas
interrogados novamente pelo conde de maneira mais premente, responderam que as
únicas pessoas sobre as quais podiam recair suas suspeitas, se lhes era dado
ousar suspeitar de poderosos senhores, eram Henry de Calloo e seus dois
companheiros.
A acusação era
tanto mais grave quanto atingia personagens dos mais elevados. Beaudoin então
ordenou que os denunciantes fossem mantidos sob vigilância num castelo,
enquanto ia sozinho a Thourout. Com efeito, mandou selar seu cavalo, e sem
dizer a ninguém para onde ia nem permitir que ninguém o acompanhasse, partiu a
galope. De resto, como era habitual vê-lo fazer essas expedições solitárias, e
contanto que levasse seu machado, ninguém se preocupava. Seus criados viram-no
afastar-se ao longe, dizendo entre si:
— Bem, amanhã
ouviremos contar alguma coisa de novo.
Atravessando a
grande praça de Thourout, Beaudoin notou um grande ajuntamento de povo, que
começava a se dissolver. É que naquele mesmo lugar acabavam de ser executados
dois falsários de moedas, de sorte que os caldeirões cheios de azeite fervente,
onde haviam sido jogados, estavam ainda lá. Beaudoin, ao passar, ordenou que se
reacendesse o fogo sob os caldeirões, a fim de que o azeite se mantivesse num
grau de ebulição conveniente, e continuou seu caminho.
Chegando ao
albergue onde estavam hospedados Henry de Calloo e seus dois companheiros,
fez-se reconhecer pelo hospedeiro, e como eles haviam saído, subiu com este ao
quarto. Seus cofres estavam no chão e fechados a chave. O conde mandou romper
as fechaduras, e aí encontraram as joias dos mercadores.
Logo Beaudoin fez
prender Henry de Calloo e seus dois cúmplices. Tendo-os feito conduzir à praça
pública, onde os aguardava, interrogou-os com tal severidade que, graças às
provas que o conde tinha já em mãos, não ousaram sequer por um instante negar
seu crime.
Assim que a confissão foi feita, e sem dar-lhes tempo de tomar nenhuma providência, o conde fê-los agarrar, vestidos e armados como estavam, e os fez jogar nos caldeirões, à vista do povo, que teve assim dois espetáculos no mesmo dia.
Um outro dia,
Beaudoin acabava de ter a assembleia de seus Estados em Ypres. Como era uma
grande cerimônia, e para dar-lhe ainda mais brilho, havia naquele dia armado
seis cavaleiros, todos pertencentes às mais nobres famílias das Flandres.
Segundo o juramento habitual, estes haviam prometido dar proteção aos fracos,
às viúvas e aos órfãos, mediante o que Beaudoin lhes dera com suas próprias
mãos.
Concluída a cerimônia, Beaudoin retornou a seu castelo, acompanhado dos novos cavaleiros que armara. Quando atravessavam a floresta dos seus domínios, notou os preparativos de uma festa. Detiveram-se um instante, e viram efetivamente chegar um cortejo de camponeses acompanhando um novo casal. Beaudoin avançou até a esposa, e tirando um anel de seu dedo, entregou-o a ela e disse:
Concluída a cerimônia, Beaudoin retornou a seu castelo, acompanhado dos novos cavaleiros que armara. Quando atravessavam a floresta dos seus domínios, notou os preparativos de uma festa. Detiveram-se um instante, e viram efetivamente chegar um cortejo de camponeses acompanhando um novo casal. Beaudoin avançou até a esposa, e tirando um anel de seu dedo, entregou-o a ela e disse:
— Posto que o acaso
conduziu-me pelo vosso caminho, que este acaso seja para vós uma providência.
Se tiverdes alguma vez necessidade de mim, enviai-me este anel e pedi minha
assistência, ela não vos faltará.
A exemplo dele, cada um dos cavaleiros que o seguia deu um presente à jovem, e a cavalgada senhorial retomou o caminho do castelo.
A exemplo dele, cada um dos cavaleiros que o seguia deu um presente à jovem, e a cavalgada senhorial retomou o caminho do castelo.
A oportunidade de
usar o anel não se fez esperar. No meio de seu primeiro sono, o conde foi
acordado por um de seus escudeiros. Mostrando-lhe o anel, este lhe disse que um
camponês ofegante e coberto de pó acabava de trazê-lo da parte da recém-casada
da floresta. Beaudoin mandou logo que fosse introduzido o camponês, que era
irmão do marido. Relatou que, quando a recém-casada era conduzida à nova
residência do casal, fora raptada pelos seis novos cavaleiros. O esposo e seus
amigos quiseram opor resistência, mas como estavam sem armas, foram repelidos.
Dois ou três camponeses haviam recebido ferimentos bastante graves, tanto que a
pobre jovem não teve senão tempo de jogar o anel, gritando ao seu marido: “Leve
este anel ao Conde Beaudoin!” Mas o marido, que quis vingar-se por si mesmo,
dera o anel ao seu irmão, incumbindo-o da missão. Em seguida, chamando toda a
aldeia em seu auxílio, preparou-se para perseguir os raptores.
Beaudoin, não
querendo acreditar em tamanha audácia, subiu aos aposentos dos cavaleiros e os
encontrou vazios. Interrogou a sentinela, que confirmou que os cavaleiros
haviam saído cerca de uma hora e meia antes.
O conde voltou ao
pequeno camponês, perguntou-lhe para que lado se tinham dirigido os raptores, e
este lhe respondeu que tinham tomado o caminho da Maison Rouge, uma taverna
muito mal afamada, situada nos arredores do castelo. Beaudoin não duvidou mais
que os culpados estivessem lá. Mandou que dez de seus homens se armassem o mais
rapidamente possível e o alcançassem, levando pregos e cordas. Quanto a ele,
saltou no primeiro cavalo, com o machado à mão, e dirigiu-se para a taverna
suspeita.
Logo que avistou a Maison Rouge, Beaudoin convenceu-se de que não se enganara. O primeiro andar, fortemente iluminado, reboava com gargalhadas, imprecações e blasfêmias, enquanto o andar térreo estava escuro, mudo e solitário. Beaudoin apeou, amarrou seu cavalo a uma das argolas da parede e bateu à porta. Mas depois da terceira vez, vendo que ninguém vinha atendê-lo, arrombou a porta com um ponta-pé e entrou.
O andar inferior
estava solitário e escuro. Guiado pelas vozes que ouvia, Beaudoin subiu a
escada e logo achou-se diante da porta do recinto do qual provinha todo o
barulho. A chave estava na fechadura, pois os cavaleiros acreditavam estar
suficientemente protegidos pelas precauções que tomaram no andar térreo.
Beaudoin abriu a porta sem dificuldade, lançou um olhar rápido pelo quarto e
viu a jovem fortemente amarrada, enquanto seus raptores jogavam dados para ver
a quem ela pertenceria.
A aparição de Beaudoin foi como um raio para os culpados. Lançaram um grito de terror, ao qual a jovem respondeu por um grito de alegria. Pelos olhares que Beaudoin dardejava, viram logo que estariam perdidos se não fugissem o mais depressa possível. Precipitaram-se em direção à escada, mas o conde postou-se diante da porta, com seu machado à mão, ameaçando fender a cabeça do primeiro que fizesse qualquer movimento. Todos permaneceram imóveis.
Nesse momento,
Beaudoin viu fora a luz das tochas e ouviu o galope dos cavalos que conduziam
seus homens de armas.
— Aqui! —
gritou-lhes ele.
Entraram pela porta
arrombada, subiram a escada e apareceram detrás do conde.
— Tendes os pregos
e as cordas?
— Sim, meu senhor.
— Fixai seis pregos
nesta trave e preparai seis cordas.
Os cavaleiros
empalideceram, vendo bem que tudo estava terminado para eles. Alguns começaram
a pedir perdão, outros a se confessar em voz alta. Mas Beaudoin, sem dar-lhes
ouvidos, apressava a montagem, de modo que depois de alguns minutos os pregos
estavam afixados e os nós corrediços prontos.
Então fez colocar um banco debaixo das cordas, e ordenou aos seis cavaleiros que subissem no banco. Uns obedeceram com resignação, outros quiseram oferecer resistência, mas uns e outros acabaram subindo. Ao cabo de um instante, os seis cavaleiros tinham a corda ao pescoço. Beaudoin lançou um último olhar sobre eles, para ver se estava tudo bem em ordem. Depois, satisfeito com a inspeção, afastou o banco com um pontapé, e os seis cavaleiros acharam-se bem e devidamente enforcados.
Nisto ouviu-se um
grande alarido. Era o marido, que chegava com todos os jovens da aldeia,
armados de picaretas e forcados. Beaudoin fê-los entrar todos no quarto,
mostrando-lhes de um lado a jovem, que devolvia a seu esposo, virgem como havia
sido raptada, e de outro os culpados já punidos. A justiça do conde andara mais
depressa que a vingança do marido.
Beaudoin morreu
deixando a Carlos da Dinamarca o seu Condado de Flandres, em recompensa pelos
grandes serviços que este prestara aos cristãos na Palestina. Carlos da
Dinamarca, depois chamado Carlos o Bom, era filho de São Canuto, Rei da
Dinamarca, e de Adélia da Frísia.
Alexandre Dumas,
Pai
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