segunda-feira, 22 de setembro de 2014

MOTIVO DE COMEMORAÇÃO

 Crônica de Jayme Barbosa
Extraída do livro Crônicas recolhidas


O povo brasileiro anda tão carente de divertimento, coitado, que qualquer comemoração sem cacete e gás lacrimogêneo é bem vinda; pelo menos enquanto for lembrada a festa do achamento, com farta distribuição de porrada entre índios e sem- terra, para solenizar 500 anos de injustiças.
Por isso vem a calhar a tese de que o novo século, junto com o milênio, só vai acontecer na entrada de 2001: razões para festejos e celebrações de novo. Mas como ainda se tem meio ano pela frente, é bom catar motivos intermediários para alegrar a vida enquanto chega o evento: embora felicidade nunca venha desatrelada de tristeza, para servir de contraponto.

Veja o nosso Nordeste, fazendo louvação às barragens cheias neste fim de século, inclusive a de Cocorobó, onde, cem anos antes, nossas forças armadas destruíram Canudos e mataram todos seus defensores. Naquela época, longe dali, Lord Kelvin, presidente da Royal Society Science, afirmava ser impossível o voo em aparelho mais pesado que o ar. Ora, o homem já pisou na Lua e mandou sonda a Marte, mas os viventes do nosso semiárido continuam a sofrer as mesmas agruras geradora de Conselheiro e Canudos. Tanto prodígio tecnológico de um lado e miséria permanente de outro, encaixados num mesmo século, é descompasso ruim de suportar. Não dá para comemorar.
Depois, há somente meio século, um dos papas da cibernética, declara que o Cérebro Eletrônico – nome que então se dava ao computador – não pesaria no futuro mais que uma tonelada e meia. Faz tempo que se produz computador de colo tão leve como criança nordestina subalimentada: avanço da tecnologia, estagnação no social. Não há razão, portanto, para regozijo.
Neste mesmo século, as vacinas e penicilinas permitiram quadruplicar a raça humana. Com tanta boca para comer – mesmo umas quase nada – e vaidade de poderosos para lustrar, o binômio ciência e tecnologia foi superestimado. As nações desenvolvidas avançaram com determinação na engenharia espacial, na automação e na informática; geraram, por um lado, glórias, conforto, alimento e, por outro, desemprego para os subdesenvolvidos. O balanço não permite comemoração.
Sem sair do tema, Vinicius definiu 73 como o ano sem critério, pois mandou para o cemitério três Pablos de um só vez: Neruda, Casals, Picasso. Allende, mesmo morto no “descriterioso” período, não entrou no soneto, por ser somente Salvador.

Agora, 32 anos depois, pode-se apreciar a condenação de Pinochet: motivos para festas, congratulações neste fim de ano. Vamos comemorar!    

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