sexta-feira, 24 de outubro de 2014

FACÓ: UMA FAMÍLIA TEIMOSA

 Crônica de Luiz Carlos Facó


Conta-nos Anna Facó, uma tia avó de meu pai, há muito desaparecida, teatróloga, poeta ou poetisa, como dizem os mais modernos, educadora, autodidata, membro da Academia de Letras do Ceará, , que Francisco Baltazar Ferreira Facó, seu pai, casado com Maria Adelaide de Queiroz Facó, , teve o Facó aditado ao nome quando foi registrado em cartório, fato que ocorreu 2º anos após seu nascimento. O nome Facó, segundo a autora citada, pura invenção de uma tia materna, Maria Ferreira, lhe foi dado por esta desde sua mais tenra idade e em tão boa hora que dentro de pouco tempo ninguém o conhecia senão através do apelido. Facó o chamavam seus pais. Facó o chamavam todos.
Já Esperidião de Queiroz Lima, no seu livro Antiga Família do Sertão, que trata da genealogia romanceada da família, dá outra versão ao episódio.

Segundo ele, Francisco, ao nascer, foi entregue aos cuidados  de uma antiga escrava com pouquíssima afinidade com a língua portuguesa. Por isso mesmo, chamar o menino pelo prenome lhe era extremamente difícil. Assim, Francisco através de uma feliz corruptela, adotada por aquela generosa negra, dócil e muito dedicada aos seus deveres, quase maternais, transformou-se em Facó, apelido assimilado por toda gente da região. Acabando por transformar-se  em nome familiar.
De uma ou outra maneira, nascia aí uma família que sempre se orgulhou de manter rigorosa tradição de honradez e veracidade, justamente pelo excesso de intransigência de princípios e de exatidão de afirmações. Adquirindo por isso mesmo fama de exagero e teimosia.
A propósito dos Facós, há um caso ocorrido há mais de um século e meio, com dois irmãos do primitivo Francisco Facó, os quais, apesar de muito unidos e amigos, por mais paradoxal que pareça, viviam às turras, em contínuas discussões, procurando dirimir tolas questiúnculas.
Eles eram Severino Severiano Lopes Ferreira e Balthazar do Vale Biá, que moraram sempre juntos em companhia da tia Dindinha, D. Maria da Penha Teixeira, morrendo ambos solteirões, sem descendentes.
Numa bela noite de lua, Biá e Severino partiram a cavalo de Beberibe, vila onde moravam, no Estado do Ceará, para Cascavel, localidade vizinha, onde haveria uma tradicional festa religiosa seguida de manifestações profanas, cujo ponto alto se concentrava num famoso “arrasta-pés” e numa concorridíssima quermesse. Ao chegarem perto da passagem do Rio Choró, divisa entre as duas povoações, avistaram à frente uma superfície branca, reluzente aos raios do luar. Diante daquela visão assombrosa e belíssima observou Severino:
- O rio está muito cheio; a água está alagando o caminho!
- Aquilo não é água, é areia! Retrucou Biá.
- Só um cego não vê que é água.
-Cego é que não vê que é areia.
- É água!
-É areia!
Contenda árida e vazia que se arrastou por bom tempo sem que houvesse vencido ou vencedor.
Havia realmente lugar para dúvida, pois algumas vezes a ilusão é perfeita. Sobremodo, em noites de lua cheia, quando os seus raios se espargem sobre aquelas superfícies emprestando-lhes aparências inusitadas, às vezes tão fantasmagóricas que só a nossa imaginação pode concebê-las e decifrá-las.
Quando os cascos vararam a areia fofa e crepitante, exclamou Biá vitorioso:
- Não te dizias que era areia!?
- Bemn estás vendo água! Respondeu o obstinado Severino.
Biá, na ânsia de provar a veracidade de sua afirmativa, apeou do animal resfolegante, dado o extenso caminho percorrido, abaixou-se, pegou um punhado de areia entre as mão e arremessou-o no irmão, que estrilou:
- Não me molhes! Que brincadeira de mau gosto! Não posso ir a festa desse jeito.
Amuado, Severino voltou à casa para trocar de roupa, convencido de que a usada estava irremediavelmente imprestável. Além de molhada, segundo ele. Toda enlameada.
Com a morte de Severino, aos 54 anos, em 1883, surgiu uma anedota:
Chegando à porta do céu, Severino quis entrar sem maiores formalidades. São Pedro, porém embargou-lhe o passo, dizendo que tinha de consultar primeiro os assentamentos celestiais. Feita a verificação, voltou pouco depois o venerando porteiro, que lhe disse de maneira alvissareira:
- Podes entrar, meu filho; teu único pecado foi a teimosia, que não está na lista dos pecados mortais. Tens direito a participar das delícias do paraíso. Assim está escrito e assim será cumprido.
- Pois agora não entro! Balbuciou Severino Severiano, acrescentando a seguir, com firmeza e disposição, fico aqui fora esperando o Biá.

Se assim fora, teria Severino passado 28 anos no aguardo do irmão, que só veio a falecer em 1911, aos 82 anos de idade.

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