Literatura
Conto de domínio público de Artur Azevedo
(foi observada a ortografia original)
(IMPRESSÂO
DA LEITURA DE UM CONTO FRANCES)
Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo foi um dramaturgo, poeta, contista
e jornalista brasileiro.
-
Com efeito, Francelina! Que tempo levaste para ires ali à venda! Querias lá
ficar?
-
Não, senhora; é porque estas casas novas parecem-se todas umas com as outras, e
por isso, em vez de entrar no 15, entrei no 17. Varei por ali adentro até a
cozinha!
-
Que estás dizendo?
-
A verdade, patroa. De agora em diante não entro em casa sem olhar para o número
da porta!
-
Depois te habituarás. Isso aconteceu porque estás na casa há oito dias apenas.
Bom. Compraste o que tinhas de comprar?
-
Sim, senhora.
-
Não falta mais nada?
-
Não, senhora.
-
Então, até logo. Fecha a porta da rua e trata de preparar o jantar. As cinco
horas estarei de volta.
E
D. Isabel, que já estava pronta para sair, passou para o corredor, desceu a
escada e desapareceu.
A
Francelina fechou a porta da rua, conforme a patroa lhe recomendara, e foi para
a cozinha.
Não
havia passado meia hora, quando a mulata (a Francelina era mulata) ouviu bater
levemente à porta da rua. Correu à janela da sala de visitas para ver quem era,
e deu com uma senhora idosa, bastante idosa, pequenina, curvada, esperando que
lhe abrissem a porta.
A
criada não a conhecia, mas pensou consigo que não haveria inconveniente em
abrir a porta a uma velha, e por isso fê-la entrar.
-
Ora, graças! Julguei que me deixassem ao sol durante uma hora! Dá cá a mão,
rapariga! Ajuda-me a subir a escada! Bem sabes que já não tenho olhos!
-
Que deseja a senhora? - perguntou Francelina quando chegaram à sala de visitas.
-
Excusas de falar baixo! Bem sabes que já não tenho também ouvidos! Nem olhos,
nem ouvidos, nem pernas! E por isso leva-me à cadeira de balanço. Onde está
ela?... Já mudou de lugar! Que mania a de minha sobrinha! Está sempre com os
móveis daqui para ali.
A
Francelina levou a velhota para a cadeira de balanço, onde a instalou
comodamente.
-
Ora, espera! Parece-me que eu não a conheço! Você é nova na casa?
-
Sim, senhora! Estou aqui há oito dias.
-
Grite!
-
Estou aqui há oito dias.
-
Grite mais alto!
-
Estou aqui há oito dias,
-
Há oito dias? Então não me conhece, porque há um mês que eu cá não venho. Sou
tia da sua patroa. Onde está ela?
-
Saiu.
-
Hem?
-
Saiu.
-
Mais alto!
-
Saiu.
-
Saiu? Também aquilo não faz senão saracotear! Então agora que veio morar na
cidade! Olha, ó... como te chamas?
-
Francelina.
-
Hem?
-
Francelina.
-
Olha, Marcelina, vai buscar uma xícara de café bem quente, com uma gotinha de
conhaque, mas antes disso descalça-me estas botinas, e traze-me os chinelos da
sua patroa, e também um dos travesseiros da cama. Enquanto ela não vem, vou
passar pelo sono.
A
Francelina fez tudo quanto ordenou a velha, e deixou-a adormecida na sala, com
os pés e a cabeça metidos nos chinelos e no travesseiro de D. Isabel.
Quando
esta chegou da rua, às cinco horas da tarde, a criada disse-lhe:
A
tia da patroa está dormindo lá na sala. A minha tia? Mas eu não tenho tia!
-
Como não tem tia?
E
a Francelina contou-lhe tudo quanto se passara.
-
Ora essa! - exclamou D. Isabel, e correu para a sala, acompanhada pela criada.
A
velha dormia profundamente.
-
Mas eu não conheço, não sei quem é esta senhora! Que quer isto dizer?... Que
mistério será este?... Vou acordá-la.
E
D. Isabel começou a sacudir a velha, que não acordava.
A
Francelina teve uma frase estúpida:
-
Sacuda com força, patroa, porque ela é surda!
D.
Isabel sacudiu com mais força, e nada!.
-
Meu Deus! Esta rigidez!... Esta rigidez!...
E
a dona da casa soltou um grito estridente.
-
Que é, patroa?
-
Esta velha está morta!
-
Morta?!
Efetivamente,
a pobre velhinha, durante o sono, sem se sentir, passara desta para melhor.
Imagine-se
a aflição das duas mulheres diante daquele cadáver misterioso; mas D. Isabel,
que era inteligente, pensou:
-
Quem sabe se a velha não entrou no 15 pensando que era o 17?
E
pelo muro do terraço chamou a vizinha:
-
Ó vizinha? Vizinha?...
-
Que é?
-
A senhora não tem uma tia velha, surda e catacega?
-
Tenho, sim, senhora.
D.
Isabel respirou.
-
Pois mande buscá-la, porque ela está na minha casa. Entrou aqui por engano.
-
Ela que venha; não é preciso mandar buscá-la.
-
Isso é, porque está... doente... Adoeceu aqui...
Meia
hora depois a pobre velha era removida... para o Necrotério.
Nenhum comentário:
Postar um comentário