segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A AULA DE DANÇA

 Conto de Luiz Calos Facó

 

Seus lábios roçando os meus estavam ali sem que eu pudesse dispensá-los. Sua língua quente e viscosa, ainda passeava no meu rosto, na minha nuca. Suas mãos firmes e deliciosamente pequenas, sofregamente, continuavam a explorar o meu corpo.

Dentre o cipoal das minhas lembranças, que se enleia e se avoluma com o passar dos anos, sendo preciso abrir picadas para nele penetrar, vejo-me entre treze e quatorze anos, com boa estatura, entrado prematuramente na puberdade, cujos sinais mais visíveis eram um incipiente buço e a voz em falsete. Morando na Rua Gabriel Soares, nos Aflitos, local aprazível, bem em frente ao mar, com fácil visão para a Bahia de Todos os Santos e a ilha de Itaparica.
Naquele bucólico logradouro, viviam famílias de classe média, constituída por profissionais liberais e servidores públicos. Além de uma numerosa colônia sírio-libanêza. Todas mantendo entre si laços de amizade e solidariedade.
As crianças, a meu ver, constituíam a maioria da população. Desprezíveis como elementos de influência na comunidade, mas com imensa propriedade de provocar alarido, perturbações, com as disputas entre si. Próprias da idade, incapazes de proporcionar constrangimentos aos seus maiores. Nesse rol eu me incluía, conquanto já tivesse certo contato com os adultos, compartilhando com alguns boas conversas e entretenimento.

Por isso mesmo foi fácil travar amistosas relações com uma família que morava a poucos metros da minha casa, ao lado da residência dos gêmeos Renavan e Renatinho.
No princípio, cerimoniosas, restrita a distantes cumprimentos; com o passar do tempo, íntimas e sólidas.
Ela compreendia dona Zulmira, viúva, e suas duas filhas, Maria Olívia e Maria Odete, apelidada de Detinha. Ambas, bem acima dos trinta anos.
A matriarca, matrona, portadora de uma miopia exacerbada, era de uma bondade inexcedível e possuidora de raro talento para a arte culinária. Disso se aproveitava para aumentar a renda familiar produzindo e vendendo doces, bolos deliciosos e artisticamente confeitados, para as diversas recepções que ocorriam na cidade.
Sua clientela era constituída pela elite da sociedade baiana.
As filhas ajudavam-na sempre que possível. Mas se sentiam melhor produzindo elaborados bordados e flores artificiais, trabalhos apreciados e disputados pelas freguesas da mãe.
Maria Olívia, a mais velha, não se constituía num exemplo de beleza. Ao contrário. Tinha feições comuns, sem traços marcantes, sem verdor, descuidando-se, as mais das vezes, propositadamente, da aparência, quiçá consciente da sua condição de titia.
Já Maria Odete era o oposto da irmã. Graciosa, sem ser bonita, realçava o corpo, bem proporcionado, com roupas sensuais. Baixinha, de fala quase sussurrante, cativava a todos pela languidez dos gestos e simpatia esfuziante. Conduzia-me a impressão de estar no aguardo de um grande amor.
Fiz-me, delas, amigo. Frequentava a casa onde moravam, com a assiduidade que me permitiam as folgas dos deveres escolares e das atividades lúdicas, invariavelmente partilhadas com a turma da minha faixa etária.


Nossos encontros tinham hora marcada. Logo depois do ângelus. Continuamente na varanda da casa delas. Onde se postavam, depois da ceia, para uma conversa descontraída, ou para observarem o movimento da rua.
Minha chegada, já aguardada, era festejada. D. Zulmira corria à cozinha para apanhar os petiscos que separava para me agradar. Já as filhas, cobriam-me de carinhos. Os de Detinha, mais efusivos e envolventes.
Naquele aconchego, comentávamos sobre os fatos da nossa rua, pessoas, embalados por um fundo musical vindo de uma velha vitrola postada na sala de visitas, contígua à varanda. Sistematicamente, música romântica cantada pelos ídolos da época. Gregório Barrios, Carlos Ramirez, Pedro Vargas, Charles Trenet, Edith Piaff, Maurice Chevallier, Dolores Duran, Dick Farney. A seleção musical era confiada ao bom gosto de Maria Odete.
Num daqueles dias, Detinha perguntou-me se namorava e se sabia dançar. Diante da minha negativa, puxou-me pelas mãos até a sala, colocou no surrado aparelho fonográfico um disco com a canção “Un jour tu veras” cantada por Edith Piaff, enleou-me entre seus braços, encostou o seu corpo bem junto ao meu e, ao ouvido, segredou-me carinhosamente:
- Vou lhe ensinar ambos os prazeres.
Decorridos os primeiros instantes de susto, pasmo, rubor facial, desconforto, passei a experimentar de um indescritível êxtase. Graças aos ardilosos meneios que a experiente mulher produzia para acalmar-me. A cada acorde da música, mais o seu corpo penetrava no meu, num compasso rítmico cadenciado, que pela prolongada continuidade – o disco fora repetido algumas vezes – fizeram-me atingir o clímax do prazer. Cujas pistas denunciadoras foram encobertas pela camisa comprida que eu usava, calhando disfarçar, sem maiores preocupações, a região da genitália, comprometida por enorme e reveladora mancha. Quanta vergonha passei até chegar a minha casa! Cheio de cuidados para esconder a roupa usada.


Concluída aquela primeira aula de dança, recebi da mestra um aviso ousado:
- Estamos namorando. Este segredo nos pertence. Não traía minha confiança.
Ainda afogueado, recolhi-me ao quarto. Passei uma noite indormida. As lembranças eram muitas. O desejo ainda maior. Os abraços e apertos de Detinha continuavam a me sufocar. Seus lábios roçando os meus estavam ali sem que eu pudesse ou quisesse dispensá-los. Rezei, quanta contradição, pela continuidade do pecado, ou melhor, do sonho. Na esperança de que o amanhã fosse o prolongamento desta noite memorável.
Às seis horas da manha seguinte já estava preparado para ir à escola. Para espanto de minha mãe que, diariamente, travava verdadeira batalha para tirar-me da cama. Enquanto aguardava o desjejum arquitetei um plano. Como era um dia de sábado, o único da semana que podia chegar em casa depois das vinte e trinta horas, resolvi deixar de ir à sessão de cinema, da qual era contumaz frequentador, na residência do coronel aviador  Orli Sampaio, pai dos meus amigos Renavan e Renatinho.
Dono de um projetor cinematográfico, o oficial, todo fim de semana exibia para os filhos e seus amigos, dois filmes, quer westerns, aventuras comédias, musicais, chanchadas e, raras vezes, de guerra. Na sua tela desfilavam astros e estrelas como Bob Hope, Dorothy Lamour, Gary Cooper, Errol Flynn, Fred Astaire, Cid Charisse, Betty Grabel, Charles Chaplin, Tyrone Power, os Irmãos Marx, Linda Darnell, Alice Faye, Fred MacMurray, o Gordo e o Magro, os Três Patetas, Dyanna Dublin, Shirley Temple, Clark Gable, Roy Rogers, Katherin Grayson, Mario Lanza, Oscarito, Grande Otelo, para o delírio da plateia mirim.
Ao abdicar daquele prazer, estaria me proporcionando um ainda maior. Estar perto daquela que me fizera sentir os maravilhosos encantos das primícias do sexo.
Para surpresa de D. Zulmira, na hora do cinema eu estava em frente à sua casa. Para justificar meu comportamento de trocar os filmes pela companhia dela, disse-lhe que os que seriam exibidos naquela noite já assistiram.


Como de praxe, no horário habitual, D. Zulmira e Maia Olívia, avisaram que iriam se recolher. Detinha, entretanto, argumentou que ficaria mais um pouco ao meu lado, pois desejava ensinar-me outros ritmos e passos de dança, prometendo, em sequencia, à mãe e à irmã que a música não lhes atrapalharia o sono, pois seria tocada em volume pianíssimo.
Meu coração vibrou. Fomos para a sala e, instantes mais tarde, nossos corpos estavam entrelaçados que qualquer desavisado juraria só haver um.
Àquela preliminar, tão excitante, sucedeu o convite de Detinha para sentarmos no sofá. Melhor seria dizer deitarmos. O que nos propiciou um contato tão íntimo que me levou a possui-la. Uma bendita posse. Inimaginável até então – mais condimentada do que o acarajé apimentado nos tabuleiros das nossas baianas, que sempre colocam o molho a mais do quanto necessário visando tirar uis e ais de prazer dos seus clientes – mas plena, com final surpreendentemente relaxante, que jamais supusera existir. Ainda hoje, decorridos tantos anos, não encontro palavras para descrevê-la. Ninguém se esquece da sua primeira vez...
Durante uns trinta dias mantive quase a mesma rotina daquela noite, até o instante que recebi meu boletim escolar. As notas do mês nele inseridas, à exceção da de disciplina, estavam todas abaixo do sofrível. Em matemática nota dois, provável generosidade do professor.
Como consequência, meus pais me puseram de castigo até a chegada do próximo.  Nada de diversões, folguedos com amigos, conversas com D. Zulmira e suas filhas, cinema. Os meus direitos restringiam-se a ir e vir de casa à escola e da escola para casa. E no sentido de precaver-se contra uma possível burla à norma estabelecida, meu pai me acompanhava quer na ida ou vinda ao colégio. Às tardes e a noites ficava aos cuidados de minha mãe zelar pelo procedimento combinado.
Foi uma pena que aceitei sem resmungos. Eu sabia das razões que me levaram a ela. Não podia revelá-las. Seria quebrar o pedido feito de confidencialidade por Detinha, a mulher que me fez um homem inteiro.
Desassossegado, permanentemente com o pensamento e o coração voltados para a mulher cobiçada, dediquei-me inteiramente aos estudos. Só assim readquiriria a minha liberdade.
Os frutos da minha obstinação medraram. Minhas notas, naquele mês, foram as melhores do ano. Em poucas matérias não tirei dez. Fui o primeiro da classe. O boletim assim atestava, tanto que, como um troféu, orgulhosamente, o entreguei aos meus pais.
Naquele dia já absolvido, contei os minutos que me separavam de Detinha. Sôfrego, aguardava o anoitecer fazendo mil planos para o nosso reencontro. Fantasiava vê-la de braços abertos para receber-me. Sentir os carinhos que me reservara. Sorver a doçura de suas palavras desejando-me boas vindas.
Vestindo a melhor roupa, perfumado, no horário de costume, com firmeza e decisão fui à casa da viúva, que me recebeu como de costume, muito bem, cuja culminância ocorreria acaso ali estivesse Maria Odete.
Vã esperança. Da sala vinha à melodia “Douce France” cantada por Charles Trenet, denunciadora de sua presença. Mas ela não apareceu.
Impaciente inquiri a Maria Olívia sobre a irmã. A resposta veio acompanhada de um sorriso matreiro e sarcástico:
- Ela tem um novo aluno de dança. É o Nicolau Darzé, seu amigo. Estão aí na sala. Entre, vá cumprimentá-los.
Aquelas palavras conduziram-me ao inferno. O meu corpo tremia como tênues vegetais castigados pelos ventos. Era a desesperação, a raiva, o ódio, o amargor, a perfídia invadindo meu coração. Antevia Nicolau, um jovem de quase vinte anos, bem apessoado, filho de um imigrante libanês, desfrutando dos prazeres que eu apreciara e considerava só meus. Foram segundos de desfalecimento e angústia, logo soterrados pela retomada de um surpreendente equilíbrio, insuspeitado, que jamais pensara residir em mim.
Com altivez, encaminhei-me à sala e vi o casal, de maneira sensual e excitante, dançando.
Não resistindo à cena, corri para minha casa, gritando, atabalhoada e repetidamente: dancei, dancei, dancei...

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