Conto de Luiz Calos Facó
Seus lábios roçando os meus estavam ali sem que eu pudesse dispensá-los.
Sua língua quente e viscosa, ainda passeava no meu rosto, na minha nuca. Suas
mãos firmes e deliciosamente pequenas, sofregamente, continuavam a explorar o
meu corpo.
Dentre
o cipoal das minhas lembranças, que se enleia e se avoluma com o passar dos
anos, sendo preciso abrir picadas para nele penetrar, vejo-me entre treze e
quatorze anos, com boa estatura, entrado prematuramente na puberdade, cujos
sinais mais visíveis eram um incipiente buço e a voz em falsete. Morando na Rua
Gabriel Soares, nos Aflitos, local aprazível, bem em frente ao mar, com fácil
visão para a Bahia de Todos os Santos e a ilha de Itaparica.
Naquele
bucólico logradouro, viviam famílias de classe média, constituída por
profissionais liberais e servidores públicos. Além de uma numerosa colônia
sírio-libanêza. Todas mantendo entre si laços de amizade e solidariedade.
As
crianças, a meu ver, constituíam a maioria da população. Desprezíveis como
elementos de influência na comunidade, mas com imensa propriedade de provocar
alarido, perturbações, com as disputas entre si. Próprias da idade, incapazes
de proporcionar constrangimentos aos seus maiores. Nesse rol eu me incluía,
conquanto já tivesse certo contato com os adultos, compartilhando com alguns
boas conversas e entretenimento.
Por
isso mesmo foi fácil travar amistosas relações com uma família que morava a
poucos metros da minha casa, ao lado da residência dos gêmeos Renavan e
Renatinho.
No
princípio, cerimoniosas, restrita a distantes cumprimentos; com o passar do
tempo, íntimas e sólidas.
Ela
compreendia dona Zulmira, viúva, e suas duas filhas, Maria Olívia e Maria
Odete, apelidada de Detinha. Ambas, bem acima dos trinta anos.
A
matriarca, matrona, portadora de uma miopia exacerbada, era de uma bondade
inexcedível e possuidora de raro talento para a arte culinária. Disso se
aproveitava para aumentar a renda familiar produzindo e vendendo doces, bolos
deliciosos e artisticamente confeitados, para as diversas recepções que
ocorriam na cidade.
Sua
clientela era constituída pela elite da sociedade baiana.
As
filhas ajudavam-na sempre que possível. Mas se sentiam melhor produzindo
elaborados bordados e flores artificiais, trabalhos apreciados e disputados
pelas freguesas da mãe.
Maria
Olívia, a mais velha, não se constituía num exemplo de beleza. Ao contrário.
Tinha feições comuns, sem traços marcantes, sem verdor, descuidando-se, as mais
das vezes, propositadamente, da aparência, quiçá consciente da sua condição de titia.
Já
Maria Odete era o oposto da irmã. Graciosa, sem ser bonita, realçava o corpo,
bem proporcionado, com roupas sensuais. Baixinha, de fala quase sussurrante,
cativava a todos pela languidez dos gestos e simpatia esfuziante. Conduzia-me a
impressão de estar no aguardo de um grande amor.
Fiz-me,
delas, amigo. Frequentava a casa onde moravam, com a assiduidade que me
permitiam as folgas dos deveres escolares e das atividades lúdicas,
invariavelmente partilhadas com a turma da minha faixa etária.
Nossos
encontros tinham hora marcada. Logo depois do ângelus. Continuamente na varanda
da casa delas. Onde se postavam, depois da ceia, para uma conversa
descontraída, ou para observarem o movimento da rua.
Minha
chegada, já aguardada, era festejada. D. Zulmira corria à cozinha para apanhar
os petiscos que separava para me agradar. Já as filhas, cobriam-me de carinhos.
Os de Detinha, mais efusivos e envolventes.
Naquele
aconchego, comentávamos sobre os fatos da nossa rua, pessoas, embalados por um
fundo musical vindo de uma velha vitrola postada na sala de visitas, contígua à
varanda. Sistematicamente, música romântica cantada pelos ídolos da época.
Gregório Barrios, Carlos Ramirez, Pedro Vargas, Charles Trenet, Edith Piaff,
Maurice Chevallier, Dolores Duran, Dick Farney. A seleção musical era confiada
ao bom gosto de Maria Odete.
Num
daqueles dias, Detinha perguntou-me se namorava e se sabia dançar. Diante da
minha negativa, puxou-me pelas mãos até a sala, colocou no surrado aparelho
fonográfico um disco com a canção “Un jour tu veras” cantada por Edith Piaff,
enleou-me entre seus braços, encostou o seu corpo bem junto ao meu e, ao
ouvido, segredou-me carinhosamente:
-
Vou lhe ensinar ambos os prazeres.
Decorridos
os primeiros instantes de susto, pasmo, rubor facial, desconforto, passei a
experimentar de um indescritível êxtase. Graças aos ardilosos meneios que a
experiente mulher produzia para acalmar-me. A cada acorde da música, mais o seu
corpo penetrava no meu, num compasso rítmico cadenciado, que pela prolongada
continuidade – o disco fora repetido algumas vezes – fizeram-me atingir o
clímax do prazer. Cujas pistas denunciadoras foram encobertas pela camisa
comprida que eu usava, calhando disfarçar, sem maiores preocupações, a região
da genitália, comprometida por enorme e reveladora mancha. Quanta vergonha
passei até chegar a minha casa! Cheio de cuidados para esconder a roupa usada.
Concluída
aquela primeira aula de dança, recebi da mestra um aviso ousado:
-
Estamos namorando. Este segredo nos pertence. Não traía minha confiança.
Ainda
afogueado, recolhi-me ao quarto. Passei uma noite indormida. As lembranças eram
muitas. O desejo ainda maior. Os abraços e apertos de Detinha continuavam a me sufocar.
Seus lábios roçando os meus estavam ali sem que eu pudesse ou quisesse
dispensá-los. Rezei, quanta contradição, pela continuidade do pecado, ou
melhor, do sonho. Na esperança de que o amanhã fosse o prolongamento desta
noite memorável.
Às
seis horas da manha seguinte já estava preparado para ir à escola. Para espanto
de minha mãe que, diariamente, travava verdadeira batalha para tirar-me da
cama. Enquanto aguardava o desjejum arquitetei um plano. Como era um dia de
sábado, o único da semana que podia chegar em casa depois das vinte e trinta
horas, resolvi deixar de ir à sessão de cinema, da qual era contumaz
frequentador, na residência do coronel aviador
Orli Sampaio, pai dos meus amigos Renavan e Renatinho.
Dono
de um projetor cinematográfico, o oficial, todo fim de semana exibia para os
filhos e seus amigos, dois filmes, quer westerns, aventuras comédias, musicais,
chanchadas e, raras vezes, de guerra. Na sua tela desfilavam astros e estrelas
como Bob Hope, Dorothy Lamour, Gary Cooper, Errol Flynn, Fred Astaire, Cid
Charisse, Betty Grabel, Charles Chaplin, Tyrone Power, os Irmãos Marx, Linda
Darnell, Alice Faye, Fred MacMurray, o Gordo e o Magro, os Três Patetas, Dyanna
Dublin, Shirley Temple, Clark Gable, Roy Rogers, Katherin Grayson, Mario Lanza,
Oscarito, Grande Otelo, para o delírio da plateia mirim.
Ao
abdicar daquele prazer, estaria me proporcionando um ainda maior. Estar perto
daquela que me fizera sentir os maravilhosos encantos das primícias do sexo.
Para
surpresa de D. Zulmira, na hora do cinema eu estava em frente à sua casa. Para
justificar meu comportamento de trocar os filmes pela companhia dela, disse-lhe
que os que seriam exibidos naquela noite já assistiram.
Como
de praxe, no horário habitual, D. Zulmira e Maia Olívia, avisaram que iriam se recolher.
Detinha, entretanto, argumentou que ficaria mais um pouco ao meu lado, pois
desejava ensinar-me outros ritmos e passos de dança, prometendo, em sequencia,
à mãe e à irmã que a música não lhes atrapalharia o sono, pois seria tocada em
volume pianíssimo.
Meu
coração vibrou. Fomos para a sala e, instantes mais tarde, nossos corpos
estavam entrelaçados que qualquer desavisado juraria só haver um.
Àquela
preliminar, tão excitante, sucedeu o convite de Detinha para sentarmos no sofá.
Melhor seria dizer deitarmos. O que nos propiciou um contato tão íntimo que me
levou a possui-la. Uma bendita posse. Inimaginável até então – mais
condimentada do que o acarajé apimentado nos tabuleiros das nossas baianas, que
sempre colocam o molho a mais do quanto necessário visando tirar uis e ais de
prazer dos seus clientes – mas plena, com final surpreendentemente relaxante,
que jamais supusera existir. Ainda hoje, decorridos tantos anos, não encontro
palavras para descrevê-la. Ninguém se esquece da sua primeira vez...
Durante
uns trinta dias mantive quase a mesma rotina daquela noite, até o instante que
recebi meu boletim escolar. As notas do mês nele inseridas, à exceção da de
disciplina, estavam todas abaixo do sofrível. Em matemática nota dois, provável
generosidade do professor.
Como
consequência, meus pais me puseram de castigo até a chegada do próximo. Nada de diversões, folguedos com amigos,
conversas com D. Zulmira e suas filhas, cinema. Os meus direitos restringiam-se
a ir e vir de casa à escola e da escola para casa. E no sentido de precaver-se
contra uma possível burla à norma estabelecida, meu pai me acompanhava quer na
ida ou vinda ao colégio. Às tardes e a noites ficava aos cuidados de minha mãe
zelar pelo procedimento combinado.
Foi
uma pena que aceitei sem resmungos. Eu sabia das razões que me levaram a ela.
Não podia revelá-las. Seria quebrar o pedido feito de confidencialidade por
Detinha, a mulher que me fez um homem inteiro.
Desassossegado,
permanentemente com o pensamento e o coração voltados para a mulher cobiçada,
dediquei-me inteiramente aos estudos. Só assim readquiriria a minha liberdade.
Os
frutos da minha obstinação medraram. Minhas notas, naquele mês, foram as
melhores do ano. Em poucas matérias não tirei dez. Fui o primeiro da classe. O
boletim assim atestava, tanto que, como um troféu, orgulhosamente, o entreguei
aos meus pais.
Naquele
dia já absolvido, contei os minutos que me separavam de Detinha. Sôfrego,
aguardava o anoitecer fazendo mil planos para o nosso reencontro. Fantasiava
vê-la de braços abertos para receber-me. Sentir os carinhos que me reservara.
Sorver a doçura de suas palavras desejando-me boas vindas.
Vestindo
a melhor roupa, perfumado, no horário de costume, com firmeza e decisão fui à
casa da viúva, que me recebeu como de costume, muito bem, cuja culminância
ocorreria acaso ali estivesse Maria Odete.
Vã
esperança. Da sala vinha à melodia “Douce France” cantada por Charles Trenet,
denunciadora de sua presença. Mas ela não apareceu.
Impaciente
inquiri a Maria Olívia sobre a irmã. A resposta veio acompanhada de um sorriso
matreiro e sarcástico:
-
Ela tem um novo aluno de dança. É o Nicolau Darzé, seu amigo. Estão aí na sala.
Entre, vá cumprimentá-los.
Aquelas
palavras conduziram-me ao inferno. O meu corpo tremia como tênues vegetais
castigados pelos ventos. Era a desesperação, a raiva, o ódio, o amargor, a
perfídia invadindo meu coração. Antevia Nicolau, um jovem de quase vinte anos,
bem apessoado, filho de um imigrante libanês, desfrutando dos prazeres que eu
apreciara e considerava só meus. Foram segundos de desfalecimento e angústia,
logo soterrados pela retomada de um surpreendente equilíbrio, insuspeitado, que
jamais pensara residir em mim.
Com
altivez, encaminhei-me à sala e vi o casal, de maneira sensual e excitante,
dançando.
Não
resistindo à cena, corri para minha casa, gritando, atabalhoada e
repetidamente: dancei, dancei, dancei...
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