Livro
Vale a pena ser lido
Emerson Tin
Facamp
Sir Edvard Poynter - England
Resumo
Numa carta de 1904, Lobato expõe a Rangel sua interpretação
do quadro Le Soir ou Les Illusions Perdues de Gleyre, baseada numa leitura de
um ensaio de Taine. Em 1944, ao organizar essa correspondência, a metáfora é
retomada para batizar o livro, num movimento de reafirmação da imagem utilizada
anteriormente.
(... )
Monteiro Lobato
A Barca de Gleyre foi o
título escolhido por Monteiro Lobato (1882-1948) em 1944 para dar nome ao
volume de mais de 500 páginas que reunia parte de sua
correspondência com o amigo
Godofredo Rangel (1884-1951), publicado pela Companhia Editora Nacional. Amigos desde os
bancos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, o
escritor taubateano e o juiz – e
escritor bissexto – mineiro trocaram cartas assiduamente ao longo de quatro
décadas, desde os primeiros jocosos bilhetes, datados do ano de 1903, até a consignação do pacto epistolar,
firmado entre os correspondentes a partir da primeira carta, datada de 09 de
dezembro de 1903: “sigo logo para a fazenda e quero de lá corresponder-me
contigo longa e minuciosamente, em cartas intermináveis – mas é coisa que só
farei se me convencer de que realmente queres semelhante coisa” (LOBATO, 1964,
t.1, p.32).
O livro reunia, assim, parte das cartas escritas por Lobato a
Rangel ao longo dos quarenta anos de amizade. Mas por que A Barca de Gleyre? Trata-se,
evidentemente, de uma metáfora. A metáfora, na consagrada lição de
Lausberg, é definida como a
“substituição de um verbum proprium por uma palavra, cujo significado entendido
proprie, está numa relação de semelhança com o significado próprio da palavra
substituída” (LAUSBERG, 1972, P.163). O verbum proprium aqui seria “cartas”, ou
“epistolário”, ou “correspondência”.
Inicialmente, Lobato chegou a pensar num verbum proprium para
o livro: poderia ser Correspondência Epistolar entre Lobato e Rangel, como
afirma em carta de 28 de setembro de 1943: “Correspondência Epistolar entre
Lobato e Rangel ou seja lá que nome venha a ter. Difícil botar um nome decente
numa tijolada dessas. Penso em consultar
a Emília, que é a ‘dadeira de nomes’ lá do Picapau Amarelo” (LOBATO, 1964, t.2,
p.358). Acabou, entretanto, optando por A Barca de Gleyre. O verbum proprium ficaria reservado ao
subtítulo da obra: Quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro
Lobato e Godrofredo Rangel.
Por que teria adotado o nome metafórico? Ensina Jerônimo
Soares Barbosa, em sua “tradução em linguagem portuguesa” da Institutio
Oratoria de Quintiliano que na Metáfora,
pois, transfere-se o nome, ou o verbo do lugar, em que é próprio, para aquele,
em que, ou não há o próprio, ou o metafórico é melhor que o próprio. Fazemos
isto, ou porque o termo metafórico é necessário, ou porque é mais expressivo
que o próprio, ou, como disse, mais decente. (QUINTILIANO, 1944, p.111-112)
No caso, havia o nome
próprio – “cartas”,
“epistolário” ou “correspondência” –, então a razão para se usar o nome
metafórico viria do fato de ele ser melhor, no dizer de Soares Barbosa, não por
ser mais decente, nem por ser necessário – já que existente o nome próprio –,
mas por ser mais expressivo. Sendo mais expressivo o nome metafórico A Barca de
Gleyre que o de Correspondência Epistolar entre Lobato e Rangel, acabou sendo o
escolhido pelo escritor ao publicá-las em 1944. Mas qual a origem desse nome?
Como Lobato teria chegado até ele? Em
carta datada de 15 de novembro de 1904, o escritor descreve um quadro do pintor
Charles-Marc-Gabriel Gleyre (1808-1874), intitulado Le Soir, ou Les Illusions
Perdues.
Nunca viste reprodução
dum quadro de Gleyre, Ilusões Perdidas? Pois o teu artigo me deu a impressão do
quadro de Gleyre posto em palavras. Num cais melancólico barcos saem; e um
barco chega, trazendo à proa um velho com o braço pendido largadamente sobre
uma lira – uma figura que a gente vê e nunca mais esquece (se há por aí os
Ensaios de Crítica e História do Taine, lê o capítulo sobre Gleyre). O teu
artigo me evocou a barca do velho. Em que estado voltaremos, Rangel, desta
nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de Gleyre?
Cansados, rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca – e não ficou
nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de velas novas e arrogantes,
atadas ao mastro da nossa petulância. São as nossas ilusões. Que lhes
acontecerá? (LOBATO, 1964, t.1, p.80-81).
Segundo Sueli Cassal, “o quadro Le soir foi exposto no Salão
de 1843. O público da época aproximou-o do livro As ilusões perdidas, de
Balzac, romance publicado em folhetins de 1837 a 1843.” (CASSAL, 2002, p.51)
Esse “quadro posto em palavras”, a que
alude Lobato, no trecho, apareceria mencionado num ensaio de Hippolyte Taine
(1828-1893) sobre o pintor Charles Gleyre. Ali, encontramos a écfrase1 do
quadro Le soir:
Muitas vezes, ao olhar seu sorriso calmo e triste, eu o
comparei ao poeta de sua Barca; contudo, a hora estava mais avançada. No
quadro, o poeta sentado na margem vê ainda, à luz do entardecer, as belezas e
as verdades pelas quais ele se apaixonou; elas se afastam, mas estão somente a
três passos dele; nada lhe escapa de suas formas encantadoras; as claridades
rosas do entardecer pousam em seus colos e em suas faces. Uma hora depois, a
barca desapareceu; a noite caiu; sob o céu apagado, há apenas a grande água
imóvel e o homem solitário, que baixa a cabeça, se resigna e se cala. (TAINE,
1900, p.461-462).
Entendo por écfrase a descrição literária de
uma obra de arte.
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