segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A BARCA DE GLEYRE: UMA METÁFORA PARA A VIAGEM EPISTOLAR DE MONTEIRO LOBATO E GODOFREDO RANGEL (EXCERTO)

Livro

Vale a pena ser lido

Emerson Tin
Facamp

Sir Edvard Poynter - England

Resumo
Numa carta de 1904, Lobato expõe a Rangel sua interpretação do quadro Le Soir ou Les Illusions Perdues de Gleyre, baseada numa leitura de um ensaio de Taine. Em 1944, ao organizar essa correspondência, a metáfora é retomada para batizar o livro, num movimento de reafirmação da imagem utilizada anteriormente.
(... )

Monteiro Lobato


A Barca de Gleyre foi o título escolhido por Monteiro Lobato (1882-1948) em 1944 para dar nome ao volume de mais de 500 páginas que reunia parte de sua
correspondência com o amigo Godofredo Rangel (1884-1951), publicado pela Companhia Editora Nacional. Amigos desde os bancos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, o escritor taubateano e o juiz – e escritor bissexto – mineiro trocaram cartas assiduamente ao longo de quatro décadas, desde os primeiros jocosos bilhetes, datados do ano de 1903, até a consignação do pacto epistolar, firmado entre os correspondentes a partir da primeira carta, datada de 09 de dezembro de 1903: “sigo logo para a fazenda e quero de lá corresponder-me contigo longa e minuciosamente, em cartas intermináveis – mas é coisa que só farei se me convencer de que realmente queres semelhante coisa” (LOBATO, 1964, t.1, p.32).
O livro reunia, assim, parte das cartas escritas por Lobato a Rangel ao longo dos quarenta anos de amizade. Mas por que A Barca de Gleyre? Trata-se, evidentemente, de uma metáfora. A metáfora, na consagrada lição de Lausberg, é definida como a “substituição de um verbum proprium por uma palavra, cujo significado entendido proprie, está numa relação de semelhança com o significado próprio da palavra substituída” (LAUSBERG, 1972, P.163). O verbum proprium aqui seria “cartas”, ou “epistolário”, ou “correspondência”.
Inicialmente, Lobato chegou a pensar num verbum proprium para o livro: poderia ser Correspondência Epistolar entre Lobato e Rangel, como afirma em carta de 28 de setembro de 1943: “Correspondência Epistolar entre Lobato e Rangel ou seja lá que nome venha a ter. Difícil botar um nome decente numa tijolada dessas. Penso em consultar a Emília, que é a ‘dadeira de nomes’ lá do Picapau Amarelo” (LOBATO, 1964, t.2, p.358). Acabou, entretanto, optando por A Barca de Gleyre. O verbum proprium ficaria reservado ao subtítulo da obra: Quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godrofredo Rangel.


Por que teria adotado o nome metafórico? Ensina Jerônimo Soares Barbosa, em sua “tradução em linguagem portuguesa” da Institutio Oratoria de Quintiliano que na Metáfora, pois, transfere-se o nome, ou o verbo do lugar, em que é próprio, para aquele, em que, ou não há o próprio, ou o metafórico é melhor que o próprio. Fazemos isto, ou porque o termo metafórico é necessário, ou porque é mais expressivo que o próprio, ou, como disse, mais decente. (QUINTILIANO, 1944, p.111-112)
No caso, havia o nome próprio – “cartas”, “epistolário” ou “correspondência” –, então a razão para se usar o nome metafórico viria do fato de ele ser melhor, no dizer de Soares Barbosa, não por ser mais decente, nem por ser necessário – já que existente o nome próprio –, mas por ser mais expressivo. Sendo mais expressivo o nome metafórico A Barca de Gleyre que o de Correspondência Epistolar entre Lobato e Rangel, acabou sendo o escolhido pelo escritor ao publicá-las em 1944. Mas qual a origem desse nome? Como Lobato teria chegado até ele?  Em carta datada de 15 de novembro de 1904, o escritor descreve um quadro do pintor Charles-Marc-Gabriel Gleyre (1808-1874), intitulado Le Soir, ou Les Illusions Perdues.
Nunca viste reprodução dum quadro de Gleyre, Ilusões Perdidas? Pois o teu artigo me deu a impressão do quadro de Gleyre posto em palavras. Num cais melancólico barcos saem; e um barco chega, trazendo à proa um velho com o braço pendido largadamente sobre uma lira – uma figura que a gente vê e nunca mais esquece (se há por aí os Ensaios de Crítica e História do Taine, lê o capítulo sobre Gleyre). O teu artigo me evocou a barca do velho. Em que estado voltaremos, Rangel, desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho de Gleyre? Cansados, rotos? As ilusões daquele homem eram as velas da barca – e não ficou nenhuma. Nossos dois barquinhos estão hoje cheios de velas novas e arrogantes, atadas ao mastro da nossa petulância. São as nossas ilusões. Que lhes acontecerá? (LOBATO, 1964, t.1, p.80-81).
Segundo Sueli Cassal, “o quadro Le soir foi exposto no Salão de 1843. O público da época aproximou-o do livro As ilusões perdidas, de Balzac, romance publicado em folhetins de 1837 a 1843.” (CASSAL, 2002, p.51) Esse “quadro posto em  palavras”, a que alude Lobato, no trecho, apareceria mencionado num ensaio de Hippolyte Taine (1828-1893) sobre o pintor Charles Gleyre. Ali, encontramos a écfrase1 do quadro Le soir:
Muitas vezes, ao olhar seu sorriso calmo e triste, eu o comparei ao poeta de sua Barca; contudo, a hora estava mais avançada. No quadro, o poeta sentado na margem vê ainda, à luz do entardecer, as belezas e as verdades pelas quais ele se apaixonou; elas se afastam, mas estão somente a três passos dele; nada lhe escapa de suas formas encantadoras; as claridades rosas do entardecer pousam em seus colos e em suas faces. Uma hora depois, a barca desapareceu; a noite caiu; sob o céu apagado, há apenas a grande água imóvel e o homem solitário, que baixa a cabeça, se resigna e se cala. (TAINE, 1900, p.461-462).

 Entendo por écfrase a descrição literária de uma obra de arte.

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