Joaci Góes
A certeza histórica da morte do Aleijadinho, nome
com que Antônio Francisco Lisboa passou a ser conhecido, a partir dos 40 anos,
agora completando dois séculos, contrasta com a insolúvel dúvida sobre o ano de
seu nascimento, se a 29 de agosto de 1730 ou de 1738, em Vila Rica,
depois Ouro Preto, Minas Gerais. É possível, aliás, que esta como outras
dúvidas sobre sua vida e obra contribuam para a elevação da mística do seu
merecido e crescente prestígio, como criador genial, elevado ao posto de
verdadeiro herói nacional e da própria raça humana, Brasil e mundo afora.
Afinal de contas, tangenciam a esfera do mitológico os notáveis feitos de
alguém que, além de nascido de infamante berço escravo, pelo labéu da cor,
ainda foi acometido, ao longo de sua maior parcela de vida adulta, de doença
incurável que lhe tolhia o uso regular das mãos. Entre os possíveis males que o
vitimaram, descarta-se a lepra, como se propala, uma vez que sua segregação do
convívio com as pessoas se deu por iniciativa própria, e não por imposição de
terceiros, como invariavelmente ocorria com os leprosos. Entre os diagnósticos
propostos para definir o mal que o flagelou, além da descartada lepra,
incluem-se o reumatismo deformante; a sífilis escorbuto; a tromboangeíte
obliterante; traumas decorrentes de uma queda; artrite reumatoide;
poliomielite; ulceração gangrenosa das mãos e dos pés e porfiria - doença
que acarreta fotossensibilidade, explicativa, talvez, da sua opção para
trabalhar à noite, ou sob a proteção de um toldo.
A alentada dúvida de oito anos decorre do seu
registro de nascimento aludir ao ano de 1730, enquanto seu atestado de
óbito, de 18 de novembro de 1814, também de Ouro Preto, afirmar que ele morreu
com 76 anos, o que significa que teria nascido em 1738. Pondo fim à polêmica, o
Museu Aleijadinho, em Ouro Preto, oficializou o ano de 1738 como o do
nascimento. Muito mais importantes do que a dúvida sobre o ano do seu
nascimento são as que se referem ao acervo de sua autoria - como escultor,
entalhador e arquiteto-, e a suas motivações artísticas, de tal modo
especialistas brasileiros e estrangeiros divergem a respeito, embora,
majoritariamente, considerem-no o maior artista barroco do continente
americano, com um lugar de destaque na história da arte ocidental. Para muitos,
ele é o Michelangelo brasileiro, comparável aos maiores mestres do Barroco,
capaz de criar obras-primas no isolamento da Capitania de Minas Gerais, sem
nunca ter saído do Brasil. Como observou o seu primeiro biógrafo, Rodrigo José
Ferreira Bretas, em 1858, “Quando um indivíduo qualquer se torna célebre e
admirável em qualquer gênero, há quem, amante do maravilhoso, exagere
indefinidamente o que nele há de extraordinário, e das exagerações que se vão
sucedendo e acumulando chega-se a compor finalmente uma entidade
verdadeiramente ideal”. A tendência a pintar com as cores do arco-íris a vida e
a obra do Aleijadinho tem sido uma constante de que não escaparam os
modernistas brasileiros, mais de um século depois de sua morte, quando,
motivados pelo propósito de construir um novo símbolo de brasilidade,
tomaram-no como modelo, cuja mulatice sintetizava nosso cultural, religioso e
multirracial sincretismo.
Fisicamente, o Aleijadinho foi descrito por Bretas:
“Era pardo-escuro, tinha voz forte, a fala arrebatada, e o gênio agastado: a
estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça
redondos, e esta volumosa, o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e
basto, a testa larga, o nariz regular e algum tanto pontiagudo, os beiços
grossos, as orelhas grandes, e o pescoço curto”.
A inexistência de retratos do Aleijadinho foi mitigada com a descoberta, em
1916, em Congonhas, de uma pequena pintura de um mulato bem vestido, com as
mãos parcialmente ocultas, vendida como sendo o retrato do artista, de autoria
atribuída a Mestre Ataíde.
O trabalho que disparou o interesse pelo nosso mais
famoso artista foi o do historiador e crítico de arte francês, Germain Bazin,
curador do Museu do Louvre no pós-guerra, no livro póstumo, O Aleijadinho. Além
da excepcional qualidade do seu trabalho, a genialidade do Aleijadinho
consistiu no fato de antecipar-se ao Romantismo, construindo uma obra que era a
expressão de sua alma - aspirações e sofrimentos-, e de sua visão do mundo. O
período que viveu coincidiu com a transição do Barroco para o Rococó. O Barroco
nasceu no início do Século XVII em reação ao classicismo do Renascimento,
opondo a assimetria à simetria, o excesso à proporcionalidade, a expressividade
e a irregularidade à racionalidade e ao equilíbrio formal. Mais do que simples
estética, essas características dos dois períodos correspondiam aos seus
respectivos modos de viver. O Barroco enfatizava o contraste, o grandiloquente,
o dramático, o conflituoso, o dinâmico, a superação dos limites, tudo isso
acompanhado de opulência e luxo, receituário perfeito para a afirmação das
monarquias absolutistas e da Igreja Católica da Contra-Reforma. O surto de
construções monumentais nos domínios da fé, do poder e da cultura - como as
igrejas, os palácios e os teatros-, teve o propósito subliminar de mesmerizar
as pessoas, subjugando-as pela paixão do grandioso, do monumental, do
espetacular. É por isso que, para ser compreendida, a arte barroca tem que ser
analisada no contexto em que emerge, pois que dele é a expressão. No
plano verbal, o estilo barroco se impôs tanto ao ensino religioso quanto ao
laico, com sua retórica hiperbólica, a um só tempo grandiloquente e minuciosa,
de que o Padre Vieira foi a expressão máxima em língua portuguesa. Contrariando
os que têm o Aleijadinho na conta de um mestre do Rococó típico, alguns
intérpretes de peso vêem sua obra como a transição entre o Barroco e o Rococó,
tendo fugido do primeiro sem chegar ao último.
Prova adicional de como tudo que se relaciona ao
Aleijadinho é objeto de infindáveis querelas exegéticas, é muito discutida sua
filiação a qualquer das escolas mencionadas. Alguns apontam em sua obra a
presença do Gótico, que teria conhecido através de gravuras florentinas. Mário
de Andrade, expressando o regozijo da descoberta do Aleijadinho como um
modernista que se antecipou em 150 anos ao movimento de 1922, falou dele como
um épico, ao sustentar que: “o artista vagou pelo mundo. Reinventou o mundo. O Aleijadinho
lembra tudo! Evoca os primitivos italianos, esboça o Renascimento, toca o
Gótico, às vezes é quase francês, quase sempre muito germânico, é espanhol em
seu realismo místico. Uma enorme irregularidade cosmopolita, que o teria
conduzido a algo irremediavelmente diletante se não fosse a força de sua
convicção impressa em suas obras imortais”. Boa parte da critica moderna o vê
como excepcional artista, o primeiro genuinamente brasileiro, um fenômeno
singular na evolução da arte no Brasil, representando uma síntese das várias
raízes sociais, étnicas, artísticas e culturais que fundaram a nação. Enquanto
Bazin o saudou como o “Michelangelo brasileiro”, para Carlos Fuentes ele foi o
maior “poeta” da América colonial. José Lezama Lima, considerado o patriarca
das letras cubanas, e grande estudioso do Barroco, disse que ele foi a
“culminação do Barroco americano”; enquanto muitos lhe conferem lugar de relevo
na história da arte internacional, outros tantos afirmam que suas obras já se
identificam com o Brasil, ao lado do samba e do futebol.
O resultado disso é que o número de peças
atribuídas a ele subiu de 163, na primeira catalogação feita em 1951, para 425,
num catálogo publicado por Márcio Jardim, em 2006. E a tendência desse número é
crescer, forçada pelos setores interessados na magnificação do seu prestígio.
Quase nada se conhece da vida pessoal do
Aleijadinho, a não ser que gostava de se divertir nas “danças vulgares”, comer
bem, e que se amancebou com a mulata Narcisa, tendo com ela um filho, retrato
falado dos homens em todas as épocas. Nada se sabe, também, do que pensava
sobre arte. Vivia da meia oitava de ouro que ganhava por dia pelas encomendas
que executava, renda insuficiente para torna-lo rico, inclusive porque seu
desleixo em matéria de dinheiro tornava-o presa fácil dos vigaristas de todas
as eras, o que não comprometeu sua habitual generosidade com os pobres. Seus
três escravos cumpriam diferentes missões: Maurício, seu ajudante principal;
Agostinho, auxiliar de entalhes, e Januário era quem guiava o burro em que se
transportava. Não há elementos que permitam inferir o pensamento político do
Aleijadinho, embora se saiba que manteve relações de amizade com o inconfidente
Cláudio Manoel da Costa, o que não impede ilações como as de Gilberto Freyre e
outros estudiosos de verem em suas criações um veemente protesto contra a
opressão dos portugueses sobre os brasileiros e dos brancos sobre os negros. De
acordo com essa visão, cada um dos profetas do Aleijadinho seria um
inconfidente bíblico com roupagem barroca. Há até quem distinga nos profetas
uma série de símbolos maçônicos.
Antônio Francisco Lisboa era filho da escrava
africana Isabel com seu amo, o respeitado mestre-de-obras e arquiteto
português, Manoel Francisco Lisboa, que o alforriou no ato do nascimento.
Supõe-se que foi com o pai que Aleijadinho aprendeu desenho, escultura e
arquitetura. Do mesmo modo, acredita-se que ele tenha estudado gramática,
latim, matemática e religião. Com a morte do pai, em 1767, Aleijadinho não foi
contemplado no testamento, em face de sua condição de filho bastardo.
Até 1777, período anterior à doença, suas obras se
caracterizam pela serenidade, equilíbrio e harmonia. A partir da doença,
Aleijadinho começa a imprimir uma feição mais expressionista às suas criações.
A obra máxima do Barroco brasileiro - as 66 figuras dos Passos da Paixão, em
tamanho natural, esculpidas em cedro, iniciadas em 1796 e concluídas em 1799, e
os 12 profetas, em pedra-sabão, da Igreja de Bom Jesus de Matosinhos, em
Congonhas do Campo, esculpidos entre 1800-05-, é desse período.
A partir de 1812, sua dependência de terceiros para
transportá-lo de um lugar a outro, ou para amarrar em seus braços os
instrumentos de trabalho, foi total. Vencido pela doença e pela cegueira,
terminou por recorrer à generosidade da nora, em cuja casa e sob cujos cuidados
viria a morrer no dia 18 de novembro de 1814, sendo sepultado na Matriz de
Antônio Dias, junto ao altar de Nossa Senhora da Boa Morte, cuja festa, como
juiz, julgara pouco antes de aninhar-se nos braços da eternidade. Conforme
declarou a nora a Bretas, um lado do seu corpo ficou coberto de chagas,
enquanto ele, repetidamente, implorava a Cristo que pusesse fim ao seu
sofrimento, pisando seus santos pés sobre o seu corpo miserável.
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