Crônica de Luiz Carlos Facó
Publicada na Tribuna da Bahia e no livro Memória a Conta-Gotas
Raramente
afeiçoo-me de bate-pronto, por alguém. Não há empatia que me leve a voos
homéricos nessa direção, sem que a biruta permita-me ou aconselhe-me. O
conchego, a amizade, no meu caso vêm aos poucos. Chegam de mansinho e passam a
inundar o meu coração de alegrias. Daí em diante, quando da ligação entre
defesa, meio campo e ataque afinam-se, não tem jeito. É bola na rede,
continuando a usar os jargões futebolísticos, tão ao gosto do brasileiro.
Afinal
de contas, sempre jogamos limpo, não abrindo mão da inteligência, utilizando a
técnica, o drible da vaca, a puxeta, o lençol, o corta-luz, as pedaladas, a
bicicleta, os passes de longa distância – quarenta metros – folhas-secas, que
só Didi, nosso professor mor, sabia executar, com mestria. Daí tanta afinidade,
tanto carinho, tanto respeito.
No
caso de Jayme, nossa vivência começou através da internet – êta tecnologia
porreta, quando usada apropriadamente – ao tempo em que participávamos, com
obstinada frequência, de uma rede de relacionamento, patrocinada por antigos
estudantes do Colégio da Bahia, os “centralinos”, cujus dirigentes são vossa
excelência JU, João Ubaldo Ribeiro – seu presidente “ad perpetuam rei memoriam”
– e Hélio Contreiras, que se constituem na alma e no destino dela. Entidades
nas quais deposito esperanças para que esse esforço comunitário não embolore ou
desapareça com o passar do tempo.
Construída
tijolo a tijolo até alcançar pé direito soberbo, ou melhor, ideia a ideia,
nossa relação cruza oceanos. As culminâncias do zênite – império celeste – mesmo
enfrentando seus maus humores (e não é pouco). Com intrepidez e lealdade dos
nossos corações. Corações de garimpeiros, de aventureiros à procura dos
tesouros do saber, da compreensão dos mistérios da vida, da verdade, que,
quando içada como estandarte, às vezes, mostra-se “pathos”.
Amizade
tão sólida em alicerces, que lhe permite dizer-me, sem constrangimentos: “...do
seu artigo ou crônica só aproveitei as últimas três orações”. E ouvir de mim, em réplica jocosa:
“do seu livro, Crônicas recolhidas, acolhi pouco mais de três páginas”.
Sentimento, da minha parte, acompanhado de muitos outros, fundamentalmente, da
admiração. Admiração por suas múltiplas sabedorias.
De
formação cartesiana, Jayme é engenheiro civil, como ele se nomeia “um tocador
de obras”. Revelou-se, ao longo da vida, dono de humanismo ímpar. Fez-se
prosador – cronista e poeta – dos bons, cujos textos que assina esparramam a
agudeza da inteligência privilegiada e a grandeza da sua universal
erudição. Afora tais qualificações, que
enchem de inveja a quem o cerca, ele o bonifica com outras tantas. É senhor de
rara bonomia, marcada no semblante, cujo riso aflorado naturalmente confere-lhe
expressão de felicidade. Ademais, é um Lord. Lord inglês. Daqueles de posturas
e modos elegantes, de falar fácil, sempre eivado de ironia e humor, cativantes.
Foram
todos esses atributos que me levaram a comungar com sua alma. Algumas vezes,
pensei beijá-lo e abraçá-lo num fraterno desvelo. Mas, impedido, fui fazê-lo,
diante da maledicência baiana, condimento não usual da sua culinária, mas que
tempera os usos e costumes de sua gente. Gente ainda sonâmbula em relação aos
sentimentos entre pessoas de igual sexo, mesmo encanecidas e com passado
irreprochável, entrevada nos esconsos da Idade Média.
Modesto,
jamais pretendeu dar publicidade a sua obra literária. Porém, instado por
Frederico Mesquita Martins (um mecenas da pesada), amigo de décadas, baixou a
guarda assentindo em ver-se publicado. O que é uma dádiva para o leitor, que se
sente prazeroso ao ler bons e variados textos, tão raros nesses tempos bicudos
ou desertificados em que se debate o atual panorama literário.
Na
orelha do livro, assim escreve outro dileto amigo e compadre Guilherme Radel:
“...” Jaymão é homem de muitas facetas e são muitas as suas obras. “Causer”,
gourmet, enólogo (conhece de cor as boas safras), articulista, cronista,
declamador de poesia, engenheiro consultor na área de transporte, pinta quadros
a óleo e pinta o sete...”.
Uma
definição supimpa, que, se acrescentada do hedonismo, que, se acrescentada do
hedonismo defendido pelo perfilado e de que sua prosa é poesia, pois tem
subliminar divisão rítmica, alçaria à perfeição, o retrataria mais fielmente do
quanto feito.
Da
visceral preguiça – é sempre bom falar – que o acompanha, havida como apanágio
e dela orgulhada, como nos revela em A preguiça ao alcance de todos: “Meu maior
trabalho na vida tem sido justificar minha preguiça. Tarefa laboriosa, afinal,
não se trata de indolência que vez por outra ataca a maioria dos viventes. A
pachorra que cultivo é sólida, determinada, monumental, permanente. É uma
preguiça macunaímica, tal qual concebeu Mário de Andrade para o personagem
representante da nossa gente...”. Mandriice tão grande quanto à de Eça de
Queirós, que nunca teve pejo em expô-la: “Não há profissão mais absorvente do
que a vadiagem.” O que me leva desculpar a avareza quanto ao tamanho dos seus
textos, de tão pequenos, nos deixa sempre com gosto de quero mais. Para Jayme,
o essencial dito em poucas linhas, da maneira brilhante como o faz, dispensa o
esforço em acrescentar mais alguma coisa para agradar o leitor. É melhor ser
lacônico por ser menos trabalhoso.
Foi
nas páginas abrasadas de talento, de Crônicas recolhidas, que pude dimensionar
sua grandeza como escritor. Os temas abordados, inusuais, num estilo peculiar e
inconfundível, levam o leitor a pensar. E sabedor ser a prosa, como advoga
Manuel Bandeira, dirigida à inteligência, não poupa esforços em atingi-la,
conquanto seus textos também despertem a sensibilidade de quantos os leem. É
verdade, como diz o poeta acima citado, “...nessa linguagem continuada (a
prosa), há parágrafos. Mas o corte da prosa em parágrafos atende tão somente à
necessidade de ordenação das ideias...” Boa disposição que Jayme cumpre à
perfeição.
Falar
mais do quanto é admirável esse livro de crônicas é citar algumas delas que se
constituem em momentos felizes da criação: A improvável vírgula de Saramago; A
língua fácil; A vírgula, essa desconhecida; Ad infinitum; Breve ensaio sobre a
bunda; De amor e de regência; Dos infinitos finitos.
Reservo
espaço, ao cabo dessa apreciação sobre o homem, o escritor, o criador de
passarinhos soltos para mandar recado.
Desde
o início do nosso encontro, estávamos fadados nos tornar excelentes
companheiros, amigos por descobrirmos ser comum recitarmos de cor os verbos
beber, comer, sonhar. Afora outros inconfessáveis, cujas conjugações nos
remetem à figura feminina, verdadeiro oásis da criação, à qual bendiremos “ad
eternum”, acaso nos reservem um lugarzinho no céu.
Recado
dado, texto acabado.
Em
01 de abril de 2009.
*O livro “Crônica
recolhidas” de autoria de Jayme Barbosa, só foi publicado graças ao empenho de
Frederico Mesquita Martins. Jaime era infenso a quaisquer manifestações que
pudessem ser havidas como ostentações, ou por ter horror à publicidade, enfim,
por pura modéstia. Por isso, suas belíssimas crônicas só apareciam em parcas
publicações locais ou através de distribuições voluntárias dos amigos
privilegiados, que as recebiam. A iniciativa de Frederico em editá-lo, deu vez
para que uma grande parcela da população o conhecesse e tomasse conhecimento da
obra desse autor que considero, sem medo de errar ou exagerar, o melhor
cronista que a Bahia produziu no século XX. Foram poucas as suas crônicas divulgadas diante da grande quantidade que
produziu. Minha esperança e da Bahia culta é que elas venham a lume em futuro
próximo, através de outra iniciativa ou gesto de um mecenas de igual bom gosto
e inteligência, tais quais os de Frederico Mesquita Martins.
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