segunda-feira, 10 de novembro de 2014

“RIO DE LÁGRIMAS”

 Ainda choramos Mário Cabral...
O autor ao lado do arquiabade do mosteiro de São Bento – Ba.

Crônica de Luiz Calos Facó
Extraída do Livro Sergipanos Ilustres na Bahia


Antevejo que irei provocar discussões entre os leitores. Hão de lamentar a minha atitude, alguns criticar. Outros me farão motivo de zombaria e de motejo, perguntando-se: como se atreve este fedelho da literatura polemizar uma de suas figuras maiores?
Como prévia defesa, devo dizer-lhes que não se trata de críticas, mas de uma contestação, e que me cabe, como leitor e analista, como ser humano perceptivo, sensível, expressar minha opinião, seja ela contra ou a favor. Mário Cabral continua sendo para mim o amigo, o amado mestre, o ídolo, o cristal bem polido, sem riscos ou estrias. Mesmo assim, dele posso divergir. É um imperativo da minha consciência, forjada em ideais libertários.

Nos dias atuais, que costumamos designar de período da modernidade, quando o tempo nos escasseia, por ser arrisco, célere, como que escapando entre nossos dedos, escorregadio como enguia impondo-nos disciplina para melhor aproveitá-lo, fujo de aliar-me a ele, mesmo com contribuições pequeninas, para que não se apresse ainda mais. Malgrado a impessoalidade que os envolve, utilizo, quase sempre para comunicar-me com os amigos, meios rápidos e consentâneos com a implacável agilidade temporal: telefone, internet. Uso esses avanços da tecnologia, confesso, por comodidade e, por que não revelar, por preguiça. Evidentemente que aqueles não são os melhores meios de comunicação. Uma conversa pessoal é mais convincente, própria, sobretudo, extraordinariamente bem mais agradável. Amo o diálogo face a face, por permitir observar os olhos do interlocutor, suas reações, seus gestos. Expressões que são retratos contínuos e reveladores da intencionalidade de pensamento. Mais importantes que uma palavra, se bem que haja pessoas que desprezem este detalhe.
Embora o telefone seja um meio de comunicação frio, sem vida, limitado, transmissor de mensagens quase impessoais, que nos veda observar fisionomias, reações, troco mil palavras por um gesto, um significativo olhar de aprovação ou desaprovação do interlocutor, optamos, praticabilidade e comodidade do invento de Graham Bell, eu e Mário, elegê-lo como ponte para nos comunicarmos. Mas, desta vez, pela importância do que teria a transmitir-lhe, resolvi fazê-lo por escrito. Ponderando que através das letras esparramo melhor as minha emoções. Consigno todas as ideias, sem direito a recuos. Declaro tudo quanto penso. Espraio meus pontos de vista sem contestações incontinentes, inclusive do destinatário, o próprio Mário, o sempre cultor da liberdade, do direito de dissentir.
No seu penúltimo livro, alvo dos meus cuidados, respeito e elogios, Jornal da Noite, o último saiu agora e se intitula, Cidade Morta, ele escreve no capítulo doze, com alguma ironia e certo humor, a crônica Rio de Lágrimas; Nela diz com ênfase: “Secou o Rio de Lágrimas. Hoje em dia ninguém chora por ninguém. Naturalmente há exceções. Mas antigamente, cerca de trinta anos passados, o mundo chorava de maneira constante e obsessiva. Quando uma pessoa viajava de trem, ou de navio, era comum a presença da família e dos amigos. E no momento da partida tanto choravam  os que partiam como os que ficavam. E havia também lenços brancos, tremulando, agitando o ar, como se aquilo fosse o adeus do nunca mais... Chorava-se a rodo, convulsivamente, quando alguém viajava. Hoje, não... A nossa sociedade, utilitária e competitiva, já não sabe chorar. Sabe agredir, sabe matar, sabe difamar, sabe atingir os cornos da lua. Mas chorar, não sabe... a última choradeira coletiva do século foi quando o Brasil perdeu o Campeonato do Mundo de 1950. Cerca de 200.000 pessoas choravam. Duvido que esse espetáculo se repetisse nos dias atuais. Hoje haveria insultos, xingamentos, agressão ao juiz, tentativa de massacre aos jogadores adversários. Tudo mudou. Mas para pior. E a verdade aí está: secou o coração do homem contemporâneo.”  
Quanto ceticismo, quanta dúvida, quanta descrença, querido Mário, no homem de hoje. Como parte dessa multidão de anônimos, que você confundiu, cabe defender-me e ir em socorro dela. O homem de hoje chora, sim, e muito. Talvez um pouco menos em público. Mas chora muito. A banalização da tragédia através dos meios de comunicação, principalmente da televisão, levou-o ao choro solitário, escondido. Mas nós choramos, sim. Choramos pelas vítimas da fome na Coréia do Norte, do Iraque, que não tem remédios para os seus filhos que morrem ceifados por simples gripe, em virtude do bloqueio econômico que lhes foi imposto pelas Nações Unidas. Choramos pelos que tombam em guerras fratricidas na Europa e na África. Choramos pelos deserdados da Chechênia, Kosovo e Timor Leste. Os calcinados por incêndios. Vitimados por desmoronamentos, alagamentos, enchentes e terremotos mundo afora. Atos de sabotagem e terrorismo. Pelos que morrem por acidentes de trânsito nas ruas e estradas das nossas cidades, em imprudentes acidentes. Choramos, sim, amigo, pelas crianças abandonadas que vivem ainda a mendigar pelo pão de cada dia, apesar do Bolsa Família. Pelos milhões de excluídos. Pela vergonhosa distribuição da renda nacional. Mas de forma silente. Quando não em protestos quase diários. Não é necessário que rolem as lágrimas para que sintamos o choro. O coração nos diz que choramos.
Você também esqueceu, prezado mestre, que depois da Copa do Mundo de 1950, quando eu chorei a valer, apesar de ainda criança, choramos convulsivamente, com a morte de Tancredo Neves. Aliás, toda a Nação chorou num coro uníssono. Choramos pouco tempo atrás com a morte de Airton Senna e dos “Mamonas Assassinas”, no início de uma carreira promissora. Enfim o mundo chorou, de forma copiosa, com a morte da Princesa Diana. Choramos por amor. Por aquele que enaltece e pelo que angustia. Choramos por nossas perdas. Pelos parentes e amigos que nos deixaram. E choramos, ainda, movidos pela alegria. Eu, particularmente, por tem um amigo como você. 

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