segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A BAHIA (SALVADOR) NOS ANOS 40 E 50 DO SÉCULO PASSADO


Por Luiz Carlos Facó

Os dias, no final do decênio dos anos quarenta e no subsequente, transcorriam lânguidos, quase modorrentos na velha e decadente província baiana. Viam-se, ainda, pelas estreitas e tortuosas ruas de sua capital, Salvador, carregando típicos balaios e tabuleiros, vendedores mercadejando seus produtos os mais diversos como alféloas, acaçás de milho e leite enrolados em folhas de bananeiras, quebra-queixos, pães, sorvetes acondicionados em catimploras, ovos, verduras, frutas. Todos, sem exceções, oferecendo suas mercadorias cantando refrãos sugestivos e criativos para interessar os fregueses e mostrar-lhes a boa qualidade de tudo quanto vendiam: “Imbu sete a dúzia”, “ovos de fora, bem fresquinhos para a madama”, ou seja, umbu por sete centavos (tostões) e ovos de sítios ou fazendas do interior do estado. Estribilhos que, de tão irreverentes, beirando a licenciosidade, não ousávamos, embora tivéssemos vontade, repeti-los para não exacerbar, tampouco ferir o brio dos nossos pais, arvorados em censores morais da sociedade, tal qual a nossa de então, mergulhada inteiramente no anacronismo, em um mar de preconceitos, que, de tão exagerados, chegava a dar dó.
     
Paralelamente, sírios e libaneses, acionando compulsivamente as matracas que portavam, mascateavam roupas, utensílios domésticos, tecidos e uma enorme quantidade de quinquilharias.
Tocando triângulo, também passavam os vendedores de tabocas, moldadas em formas cônicas e cilíndricas. Seguidos pelos baleiros com seus cestos de queimados a tiracolo, para deleite da meninada.
Ao som de estridentes realejos desfilavam os amoladores de facas, tesouras ou quaisquer outros objetos cortantes, partícipes daquela procissão que a nós parecia interminável, mas multicolorida, sonora e única.
Quase no roçar do meio-dia, lá vinham às baianas, encaminhando-se aos seus pontos de vendas.  Pareciam fazer parte de um cortejo nada clerical, porém secular. Donde evolavam cheiros misteriosos saídos dos seus tabuleiros, encantadoramente forrados por belíssimas toalhas bordadas ou rendadas, quase sempre de linho. Eram os agradáveis aromas dos acarajés, do vatapá, dos camarões, da pimenta malagueta, da amoda, da cocada, das queijadas, agridoces que nos enchiam de água da boca.
E a elas se juntavam as filhas-de-santo portando belas caixinhas decoradas, contendo de um lado a imagem do seu santo protetor e do outro o local para guardar o óbolo que angariavam para promover, em seus terreiros, festas ou ritos em homenagem a eles.
Modernidade, ares de metrópole talvez só pudéssemos respirar na Rua Chile, abrigo de livrarias, cafés, lojas e magazines que vendiam artigos mais elaborados e finos. Por isso mesmo, para lá acorriam às senhoras mais elegantes da sociedade, por pura exibição ou simplesmente fazer compras. Afinal, a Rua Chile era considerada uma passarela da vaidade feminina e masculina.
Os homens de negócios, fazendeiros abastados, funcionários públicos, doutores, políticos de todas as facções partidárias, jornalistas, intelectuais, de modo geral elegiam a “Gruta de Lurdes”, apelidada por muitos como o Café de Bernadete, como ponto de encontros que, por via de consequência, era transformado em tribuna popular. Pois ali se discutiam a política regional, nacional, amenidades, tendências artísticas, o último lançamento editorial, o preço da arroba do cacau, e, invariavelmente, punham em dia os mexericos da cidade. Alguns impróprios e censuráveis por atingirem a honra e a dignidade das pessoas.  Salvador, nessa época, era essencialmente fofoqueira, maldizente.
Mas tanta placidez ou mesmice não podia ser confundida como sinal de indolência ou estagnação. O Estado, através do seu governador recém-empossado, precisamente em 1º de abril de 1947, Otávio Mangabeira, uma das maiores expressões da vida pública nacional, juntamente com um secretariado onde luziam os nomes João da Costa Pinto Dantas Junior, titular da Secretaria da Fazenda; Albérico Fraga, da pasta da Justiça; Rogério Rodrigues da Farias, do Interior; Anísio Spínola Teixeira, da Educação e Saúde, Arnaldo Pimenta da Cunha, da Viação e Obras Públicas; Nestor Duarte, da Agricultura; Antônio Oliveira Brito, da Segurança Pública; Epaminondas Berbert de Castro, da de Governo e Wanderley Pinho, Prefeito da Capital, construíam, açodadamente, um conjunto de obras preparando a cidade do Salvador para as festividades dos centenários que ali ocorreriam em 1949: a 29 de março, o 4º da fundação da cidade e a 5 de novembro, o primeiro do nascimento de Rui Barbosa.
Daquela azáfama, já se descortinavam as obras do bairro do Tororó, da Liberdade, a abertura da Avenida Centenário, do Rio Vermelho, Amaralina-Itapuã, o viaduto da Sé, a construção do Hotel da Bahia, o estádio de futebol, Fonte das Pedras ou Fonte Nova, o edifício que abrigaria a justiça baiana, logo batizado de Forum Rui Barbosa, em cuja cripta estão depositados os restos mortais do ilustre brasileiro, e a reforma do Teatro do Instituto Normal da Bahia.
O mais admirável, contudo, era o clima de liberdade que os baianos experimentavam naquela quadra da vida.
Acabáramos, em 1945, de pôr termo a uma das páginas mais negras da nossa história. Havíamos saído de uma ditadura que, como todas, foi sinistra, conduzida por Getúlio Vargas, guindado à posição de ditador, graças à eclosão da revolução de 1930, quando perdêramos nossa dignidade, submetidos que fomos a toda sorte de coações e desmandos. E mais, quando vimos nossos direitos desrespeitados e a nossa voz silenciada. Enfim, quando nos acenavam com prisões injustificáveis, torturas e nos impunham verdadeira lavagem cerebral. O culto à personalidade de Vargas se fazia sentir com intensidade desusada através do DIP – Divisão de Imprensa e Propaganda, órgão do governo do títere Getúlio.
Sós os ventos libertários soprados das terras europeias onde nossos pracinhas lutavam contra as forças nazi-facistas, combinados com a oposição de brasileiros destemidos e conscientes, trouxe-nos de volta a liberdade que tanto aspirávamos.
Por ter sido um dos homens públicos durante aquele regime de exceção, preso e exilado, de 1933-1934 e, novamente, com a decretação do “Estado Novo” em 1937, Otávio Mangabeira conduzia nosso estado sob a égide das leis, o acatamento à justiça, primando, sobremodo, em garantir o direito de livre expressão da gente de sua terra, dos brasileiros. Daí a harmonia e a concórdia que enlaçava a sociedade baiana, embora ela jamais houvesse abdicado do direito de contestar e se opor. Era a Bahia rediviva nas figuras de seus grandes líderes como Simões Filho, Clemente Mariani, Medeiros Neto, Miguel Calmon, Oscar Cordeiro, Miguel Calmon, Edgar Santos, Jorge Calmon, dentre tantos.

Naquela época, a Bahia passou por um grande susto. O susto do vamos acordar para construir, progredir, mudar velhos e carcomidos hábitos, costumes, de reaprender a viver livremente, de dar asas a imaginação. Afinal, tudo na terra do Senhor do Bonfim pode acontecer e, geralmente, acontece.

Nenhum comentário:

Postar um comentário