sábado, 27 de dezembro de 2014

LIVRO, ORALIDADE E BOATO.


Postado por Luiz Carlos Facó

O livro tem perdido, nos últimos tempos, muito do seu charme e deixou de ser o único ou mais importante suporte da cultura. Ainda que descendente dos códices, o livro adaptou-se aos tempos da imprensa, evoluiu em seu formato, sua composição, sua capa, ilustrações, tornando-se um símbolo da vida literária das sociedades, em todo mundo.
A função da imprensa editoria, desde os tipos móveis até os sistemas eletrônicos da atualidade, foi a de fazer recircular textos que jaziam nos grandes códices e sobreviviam nas múltiplas formas da oralidade. O conhecimento, antes restrito a grupos, sujeito as manipulações interessadas, teve no livro uma propagação importante, ampliando a capacidade comunicadora dos textos, como mensagens difundidas universalmente.
Foi com o livro que se ampliou o horizonte da utilização das coleções antigas, codificadas muitas delas durante a Idade Média, e que trouxeram para os dias de hoje textos fundantes das civilizações, repletos de valores predominantes entre os povos, a começar pela Bíblia, em si um livro, mas internamente um conjunto de textos, bem ordenado, para cumprir um sentido religioso. Os católicos extraíram da Bíblia a essência da história sagrada e produziram uma exegese na representação litúrgica, que é a Missa, guardando nos dois hemisférios, o da escrita e o da oralidade.
Desde a edição fragmentária da Bíblia de Gutenberg que as oficinas gráficas assumiram um papel que tem acompanhado a evolução da sociedade, acelerando dos debates temáticos, bibliografando os sistemas filosóficos, fixando crenças e valores que, em última análise balizam a organização e a convivência social. O tempo fez criar direito em torno dos livros, tanto para o autor, quanto para o leitor. O direito autoral, novidade no século XIX, protegeu os escritores, responsáveis pela elaboração dos textos, enquanto o direito do leitor assegura que lhe chegue, continuamente, as informações que alimentam o conhecimento, a reflexão que nutre o saber, universalizado pela saga humana.
Há outras formas de direitos ligados ao autor e ao leitor, variando de sociedade para sociedade, no contexto do tempo. Presentemente mais do que o direito assegurado, de um percentual definido (10% no Brasil), e que incide sobre os preços da comercialização dos livros, o autor luta para garantir direitos dos novos meios de comunicação que reproduzem em cópias diretas, como fotocópias processadas nos ambientes universitários e fora deles, cds, páginas e sites de computadores, ou outros suportes difusores, os textos.
Já se faz, comumente, uso da leitura na tela, acessando a editoras eletrônicas que reproduzem textos, sem respeito a autoria. O leitor adquiri, assim, direitos amplos de recepção de textos, sem que necessariamente tenha custos. Este quesito está, então, como parte de um processo, nem sempre controlado, da chamada indústria cultural. Visto por outro ângulo, as sociedades ganham a oportunidade de estabelecer contatos com fontes arquetípicas dos repertórios culturais. Isso quer dizer que a comunicação eletrônica permite a que de um lugar qualquer, retornem, por exemplo versões e variantes de textos produzidos na França, na Espanha, na Itália, em Portugal, sobreviventes na oralidade, o que nem sempre ocorria quando o suporte dos textos era o livro.
As mudanças para com o livro, atingem as bibliotecas, os centos de pesquisas, e vão modificar, no futuro, as relações dos leitores, em face do conhecimento e do saber.  A própria escola, que regrou o conhecimento, terá de atualizar seu universo de informações e reflexões, para merecer a credibilidade dos seus usuários, de todos os graus de estudos. Revistas, Teses, Monografias, Dissertações, Boletins, seguem a mesma trajetória do livro, pela semelhança editorial e de formatação.
Roger Chartier tem estudado, exaustivamente, a questão da leitura, do livro, da oralidade e da vida europeia, tomando a França como cenário histórico de suas abordagens. Há fatos comuns, tanto lá, como entre os brasileiros, embora sejam poucos os estudos no Brasil que alcancem o o universo da produção e da circulação de textos. Há, também, certas singularidades que guardam pertinência específica àquela cultura, do mesmo modo com há, no Brasil , forma singulares, originais, de expressão literária, como por exemplo, os Álbuns, de poesias e de pensamentos, organizados e guardados como verdadeiros tesouros íntimos, repletos de sentimento e emoção, por moças principalmente.
Na década de 20 do século passado, e por décadas seguidas, os cadernos simples de uso escolar, eram transformados em livros manuscritos, denominados Álbuns, nos quais eram colocados poemas, dos grandes poetas em voga, do mundo e do Brasil, e textos próprios, de autores próximos e da mesma convivência além dos poemas, parte deste mostruário lírico, os organizadores escreviam e pediam  aposição de pensamentos, pequenos textos sentenciais, ditos, ou quadras e advinhas, que complementavam o conteúdo de tais obras.
A leitura, portanto nunca esteve restrita apenas aos livros ou a formalidade da escola. Ao contrário, alimentou hábito comum, antes atribuído apenas às pessoas abonadas, que aprendiam a língua francesa para a leitura produzida em Paris, como sinônimo de atualização e brilho cultural.
As paróquias que de algum modo ocupam o lugar das freguesias e capelanias, tiveram livros de tombo e neles fizeram registros importantes de festas, eventos religiosos, e de fatos ligados ao calendário anual.
Desgraçadamente, os livros católicos sumiram com o tempo, abandonados às traças, ou perdidos nos desvãos do desinteresse. Em algumas poucas Igrejas do interior ainda é possível recuperar informações, tão precisas como aquelas que estão na memória dos fieis.
Em certo sentido a oralidade cumpre, junto à escrita, uma relação biunívica, espécie de mão dupla, no entrelaçamento constante que justifica o oral fixar-se em texto escrito e este cair em domínio público das conversas e parar na memória do povo. O melhor exemplo desse fenômeno é o boato, tido como “notícia sem fundamento”, presente em toas as sociedades do mundo.
O boato tem duas formas, é essencialmente oral no cotidiano social, mas ganha forma escrita em situações especiais, como as campanhas eleitorais, tal qual a de 2014 para a presidência da República, por exemplo, por exemplo. Nesta época são muitos os panfletos, jornais, publicações na internet vinculando boatos que visam atingir os contendores. Mantidos no anonimato do seu autor ou dos autores, são geralmente, desrespeitosos e injuriosos, difamatórios, muita vez, impressos clandestinamente.
Oral ou escrito, o boato é uma narrativa popular, frequente, estruturada como texto tronco, do qual proliferam as variantes, como se tomasse por empréstimo do Folclore a expressão “quem conta um conto, aumenta um ponto”, ganhando cunho de veracidade e força de credibilidade em outra expressão popular: “quando o povo diz “ou fala”, ou foi, ou é, ou tá pra ser.”
Na própria raiz etimológica do termo, do latim “boatus”, de “boare”, os dicionaristas da língua portuguesa, como Caldas Aulete, definiram o boato como a novidade, no sentido de notícia, que circula no público, sem autor que a autentique. E assim o boato resiste presente em todas as sociedades, alimentando o imaginário com o seu poder motivador e a sua capacidade de convencimento.
Foi isso que aconteceu na recente eleição brasileira: o boato venceu. A vitória pendeu para quem mais dele se utilizou. 

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